07 Janeiro 2013
Farsi prossimo [Fazer-se próximo] é o título do quarto volume da série Il pensiero, il cuore, la parola di Carlo Maria Martini. Inclui as cartas pastorais escritas nos anos 1980 do período milanês.
A introdução é do padre Gino Rigoldi, capelão do Instituto Penal para Menores "Cesare Beccaria", de Milão, que aqui publicamos. O artigo foi publicado no jornal Corriere della Sera, 30-12-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
É preciso usar com prudência o nome de Deus, porque um perigo grave e nada distante é o de imaginar Deus, justamente imaginar, com base nos relatos das vovós, de um sacerdote que nos impressionou particularmente, de uma oração que aprendemos quando pequenos ou de uma ideia que tivemos por conta própria. Quando um cristão diz que acredita em Deus, deve estar consciente de que está falando de Jesus Cristo que é Deus, isto é, de um homem com comportamentos humanos, que nasceu, morreu e ressuscitou porque é Deus.
Pode-se afirmar que, quando Deus quis nos remover das nossas imaginações, das imagens com as quais a humanidade ao longo dos séculos representou Deus, ele se fez homem. Ele comeu, dormiu, falou, caminhou, ensinou como um verdadeiro homem. Ele é um homem que se enraivece, se enternece, tem compaixão, tem simpatia, é um amigo extraordinário dos seus companheiros, polêmico com os inimigos, mas pronto para o perdão.
É Deus, a face de Deus, aquela que nós podemos conhecer e seguir, porque é a face de um homem: é Jesus chamado o Cristo, o Filho de Deus. Eu aconselharia os cristãos a não dizer mais que acreditam em Deus, nem a se empenhar em imaginar as suas características ou os seus comportamentos, deduzindo-os de conceitos teológicos, embora refinados, mas sim a dizer que acreditam em Jesus que é Deus: graças aos Evangelhos, o seu modo de ser homem entre homens poderá nos iluminar sobre como podemos nós também podemos sê-lo.
O cardeal Martini era prudente e gentil demais para fazer declarações como as minhas, ou, ao menos, não dessa maneira. Martini afirmava, lia a Bíblia, a interpretava com competência e delicadeza para explicar aos cristãos que o seu mestre é Jesus de Nazaré. O cardeal Martini nos exorta a não indultar nas afirmações e nas demonstrações da existência de Deus através do raciocínio e das declarações rituais, mas sim a testemunhar a existência de Deus com os fatos e as escolhas concretas da vida cotidiana.
Para um cristão, Jesus está vivo e é um companheiro de estrada, não um registro histórico, e muito menos um conceito. É através da Eucaristia que afirmamos a sua presença. E o cardeal ainda nos convida a dar um passo além, a renovar o testemunho da nossa fé n'Ele através da nossa própria vida, um testemunho que chamamos de tarefa missionária de cada crente, uma tarefa que é, ao mesmo tempo, relação e contemplação, dois aspectos que não podem ser separados. Ele nos lembra a qual risco vamos ao encontro: "De fato, Tu estás sempre conosco. Somos nós, ao invés, que nem sempre permanecemos contigo, não habitamos em ti. Por isso, não sabemos nos tornar a tua presença ao lado dos irmãos" (Partenza da Emmaus, p.198).
Quando pensamos no testemunho, é necessário se referir a quem é companheiro de fé como a quem nunca foi ou quem não é mais crente. A quem está geograficamente distante, mas também a quem está tão perto de nós que, às vezes, corremos o risco de não ver e de não nos importar com ele. Alguém disse que uma das tarefas mais difíceis para as pessoas e, talvez, também para Deus é de tornar cristãos os padres e os católicos.
Eu não acho distante dos pensamentos do arcebispo Martini a preocupação – e também um pouco a tristeza – ao constatar como as nossas comunidades cristãs raramente abordam a missão. Muito ocupados em cuidar de suas próprias comunidades, parecem não ter tempo, mas acima de tudo paixão, pelo testemunho da fé para com aqueles que estão longe, geograficamente, é claro, mas eu diria sobretudo culturalmente. É o próprio cardeal que nos lembra que: "O risco para a vida paroquial é de ficar privada, pouco a pouco, de fortes e dramáticas estimulações e de se acomodar na repetição dos gestos e dos ritos" (Partenza da Emmaus, p.208).
A missão, o testemunho de fé se expressa somente em uma pequena parte com as palavras. Ao invés, é através dos gestos, dos comportamentos motivados pela capacidade de se compadecer, que o cristão capta e expressa mais propriamente o testemunho de Jesus. E eis que o cardeal Martini faz seguir a Partenza da Emmaus [Partida de Emaús] pela carta Farsi prossimo [Fazer-se próximo], indicando na Caridade a expressão mais concreta da fé cristã.
Emblemática e fascinante é a exegese, o comentário sobre a parábola do Bom Samaritano que abre a Carta para o ano pastoral de 1985-1986. Os poucos personagens protagonistas conseguem representar as diversas e extremas atitudes possíveis diante das necessidades e do sofrimento: da indiferença à participação.
Seria preciso dizer, e não só nesse relato, que Jesus se indignava com os religiosos do seu tempo, e isso também deveria ser um elemento de reflexão para nós, religiosos, deste tempo.
Os dois religiosos estão indo para o Templo, veem o ferido no chão, decidem que não é tarefa deles e depois não têm tempo nem podem ficar impuros por terem tocado em sabe-se lá qual ferido.
O Samaritano tem um único pensamento e tem uma única atitude: há um ferido no chão, eu estou aqui, me ocupo dele e depois assumo a responsabilidade por ele. Nenhum julgamento, o único motivo é a necessidade do outro.
Martini ressalta que o comportamento do samaritano é definido por uma única palavra grega que significa "foi movido por compaixão". É o mesmo termo que descreve os sentimentos de Jesus diante da dor da viúva de Naim que chora a morte do seu filho único.
Nas intenções do arcebispo, o relato do Bom Samaritano não quer significar apenas a intervenção nas emergências, mas sim uma atitude constante, um estilo de vida que devemos tentar expressar todos os dias. É preciso se colocar na história do próprio tempo, "ver" as pessoas, abandonar a tentação do julgamento para ativar o sentimento de verdadeira compaixão.
E a resposta deve manter unidos dois aspectos necessários: a capacidade de construir relações educativas e espirituais, e a de saber responder concretamente às necessidades materiais.
No Último Juízo, o critério será: "Tive fome. Tive sede. Estava sem casa. Era um detido na prisão. Estava doente. Vocês vieram para me socorrer. Eu estava lá". O cardeal Martini sabia bem que não era tarefa da Igreja substituir as responsabilidades das administrações e da política. O nosso arcebispo sabia muito bem que a caridade pode e deve significar também que os cristãos são ativos em exigir justiça, em particular para afirmar e defender os direitos de todos, com um cuidado especial por aqueles que não têm voz. Para Martini, assim como para outro bispo de Milão que se tornou o Papa Paulo VI, a política é um importante exercício de caridade.
Eu recolho o seu convite e eu tento tornar minhas, para vocês, as suas indicações, propondo alguns exemplos de testemunho cristão que seja concreto, colocado no nosso tempo, acolhedor para todos os homens e as mulheres comprometidos em construir uma sociedade melhor. Tentemos concretizar a caridade também com relação a algumas necessidades que já se tornaram emergência cotidiana. Que o apoio à família não seja expresso apenas com palavras, mas, por exemplo, com o compromisso de tornar acessíveis os aluguéis; que o apoio ao mundo juvenil não seja apenas um desejo, mas se torne investimento nos oratórios e em todas as formas de preparação e de acesso ao trabalho.
Por outro lado, é o próprio cardeal que nos convidou "a não se contentar dizendo: 'Senhor, Senhor', mas a fazer concretamente a vontade do Pai e a pôr em prática as palavras do Senhor" (Farsi prossimo, p.281).
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Martini, a lição da piedade - Instituto Humanitas Unisinos - IHU