15 Dezembro 2012
No seu discurso de Santo Ambrósio, o arcebispo de Milão, cardeal Scola, interpretou a laicidade como imposição de um único ponto de vista. Mas a laicidade é exatamente o contrário: é um método que permite que todos os pontos de vista convivam de modo fecundo, oferecendo à religião justamente a mais civilizada das garantias.
A análise é de Stefano Rodotà, professor emérito de direito civil da Universidade La Sapienza, de Roma, e ex-deputado do Parlamento italiano. O artigo foi publicado no jornal La Repubblica, 13-12-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Às vésperas de um aniversário simbólico, os 1.700 anos do Édito de Constantino, o cardeal de Milão fez uma crítica radical à laicidade do Estado, reivindicando o primado absoluto da liberdade religiosa e sublinhando os riscos que ela corre no tempo em que vivemos. Ele fez isso construindo um modelo de conveniência, do qual Vito Mancuso ressaltou as omissões, já que, dentre outras coisas, não se fala das perseguições as quais os justamente cristãos submeteram os fiéis de outras religiões.
Aquele "início da liberdade do homem moderno", que o Édito de Constantino teria aberto, na realidade, teve outros inícios e outras trajetórias. Ter-se-ia que esperar pelo Renascimento, com a sua exclamação "magnum miraculum est homo". Ter-se-ia que esperar pela afirmação plena da liberdade que encontrou a sua mesa na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, verdadeiro concílio laico quase dois séculos antes do Vaticano II, que abriu o caminho para a liberdade de todos.
Se hoje queremos discutir a laicidade, não podemos ignorar tudo isso, nem nos refugiarmos em uma visão caricatural de laicidade, atribuída ao seu modelo francês. É de se perguntar a razão de um reducionismo tão pouco sensato por parte de um prelado não desprovido de cultura e de visão histórica. Uma interrogação que merece alguma reflexão, justamente porque hoje o princípio da laicidade do Estado se confronta com uma nova necessidade de sagrado que atravessa as nossas sociedades e, ao mesmo tempo, se apresenta como um inevitável ponto de referência diante da "nova intolerância religiosa" (esse é o título do último livro de Martha Nussbaum). Se esse é um itinerário para identificar equilíbrios adequados entre religião e Estado, o caminho indicado por Angelo Scola certamente não é o que permite uma discussão útil.
Como é revivida a crítica à secularização? Partindo de duas premissas. Diz Scola: "Se a liberdade religiosa não se torna liberdade realizada posta no topo da escala dos direitos fundamentais, toda a escala entra em colapso". E acrescenta: "Até algumas décadas atrás, fazia-se referência substancial e explícita a estruturas antropológicas geralmente reconhecidas, ao menos em sentido lato, como dimensões constitutivas da experiência religiosa: o nascimento, o casamento, a geração, a educação, a morte".
O primado da liberdade religiosa identifica assim uma forma de Estado que, no fator religioso, encontra a sua única legitimação possível. Isso quer dizer que o Estado não pode ser identificado como espaço de convivência de opiniões e crenças diversas, segundo a versão que a laicidade foi assumindo, com o abandono de uma laicidade puramente "opositiva" com relação à religião.
E, falando de estruturas antropológicas, na realidade, referimo-nos aos muitos "nãos" que a Igreja pronunciou: não à procriação assistida; não ao reconhecimento jurídico de formas de convivência diferentes do casamento heterossexual; não à escola pública como estrutura essencial para o conhecimento e para a aceitação do outro; não ao testamento biológico.
Nessas posições, há mais do que uma repulsa da laicidade. Há a negação da liberdade de consciência e a afirmação de que a definição da antropologia do gênero humano é prerrogativa da religião. Não estamos diante de uma discussão dos temas complexos da secularização, mas sim do programa de uma restauração impossível, destinado, portanto, não a promover o diálogo, mas sim conflitos em torno da afirmação que sempre retorna de valores "inegociáveis".
A propósito de antropologia, vale a pena lembrar a crítica de Zygmunt Bauman à tese segundo a qual, na fase pré-moderna, era a religião que dava sentido à vida. Portanto, é uma aquisição histórica e cultural aquela que se refere à forte garra da religião católica sobre os temas da ética, não um dado indissoluvelmente ligado ao fator religioso. Com o passar do tempo, esse laço foi desfeito, graças à ampliação da reflexão ética e ao surgimento de uma nova antropologia, produzida pela revolução científica e tecnológica.
Contra essa antropologia, levanta-se a defesa da "natureza" impugnada por um fundamentalismo religioso que mostra não tanto uma atitude anticientífica, mas sim uma incapacidade de compreender as novas dimensões do mundo e da humanidade. É justamente o pensamento laico, ao invés, que forja os insrtumentos para que não nos rendamos a um desvio tecnológico, com a sua capacidade de garantir o humano através dos princípios de igualdade e dignidade, de autodeterminação da pessoa.
Além disso, não é verdade que a dimensão institucional é possuída apenas por um reconhecimento da liberdade religiosa como fato primorosamente individual. O artigo 10 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia afirma que pertence às pessoas a "liberdade de manifestar a própria religião, individual ou coletivamente, em público ou em privado".
A plena laicidade dessa afirmação consiste no fato de que não estamos diante de um privilégio ou de uma supremacia, mas sim de uma liberdade que se mede com todas as outras. O oposto da reconstrução do cardeal Scola da laicidade como uma imposição de um único ponto de vista, enquanto ela é um método que permite que todos os pontos de vista convivam de modo fecundo, oferecendo à religião justamente a mais civilizada das garantias.
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Laicidade: quando a Igreja volta a criticar a neutralidade do Estado. Artigo de Stefano Rodotà - Instituto Humanitas Unisinos - IHU