Por: Cesar Sanson | 12 Dezembro 2012
Após 20 anos, povo Xavante pode reaver suas terras. Notificações e listas oficiais do governo revelam envolvimento de latifundiários, vereadores, prefeitos e até um desembargador na ocupação ilegal.
A reportagem é de Andreia Fanzeres e Daniel Santini e publicado pela Agência Reporter Brasil, 11-12-2012.
Representantes dos Xavante protestam durante a Rio+20, no Rio de Janeiro. Foto: Daniel Santini
Começou nesta semana a retirada de invasores da Terra Indígena Marãiwatsédé, no nordeste de Mato Grosso. Com apoio do Exército, Força Nacional, Polícia Federal e Polícia Rodoviária Federal, representantes do Governo Federal organizaram uma operação para garantir a devolução das terras aos índios Xavante. O processo de desintrusão foi iniciado há mais de um mês, quando, em 7 de novembro de 2012, oficiais de Justiça percorreram todas as propriedades, residências e pontos comerciais que se estabeleceram de forma ilegal na área, notificando os ocupantes a deixar o local espontaneamente em até 30 dias. Incentivados por fazendeiros e políticos locais, alguns grupos decidiram não cumprir a decisão judicial e têm procurado desestabilizar o processo forçando conflitos com as tropas. Nos primeiros dias da desintrusão, a Força Nacional recuou disparando balas de borracha e bombas de gás.
Os manifestantes apareceram na Fazenda Jordão, onde a operação teve início, no momento em que as forças de segurança realizavam as primeiras abordagens. Segundo a listagem de propriedades do governo, a propriedade onde a confusão aconteceu pertence a Antonio Mamed Jordão, ex-vice-prefeito de Alto Boa Vista, que detém uma das maiores áreas invadidas dentro da Terra Indígena, um latifúndio com mais de 6 mil hectares. Em 2008, Jordão declarou patrimônio de R$ 4,5 milhões. Além dele, outros políticos donos de extensas porções da terra indígena são, ainda de acordo com as listas oficiais do governo, Mohmad Khalil Zaher, vereador em Rondonópolis (MT), Sebastião Ferreira Prado, Sebastião Ferreira Mendes, entre outros. Os latifundiários, representados pela Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária (CNA), reclamam da desintrusão e chegam a questionar se as terras são mesmo indígenas (leia nota divulgada nesta terça-feira, 11).
Além da presença de forças de segurança, outros órgãos do Governo Federal foram acionados para minimizar o impacto do deslocamento. Para os pequenos agricultores estabelecidos de maneira ilegal na área da reserva, foram oferecidos lotes em programas de reforma agrária. Segundo o INCRA, 140 pessoas haviam procurado o programa até a semana passada. "O processo [de desintrusão] já está acontecendo. Esperamos que aconteça da melhor forma, tanto para os indígenas quanto para os que vão receber outra terra. Esperamos que isso aconteça, que eles recebam outras terras", afirma Paulo César Moreira, coordenador da Comissão Pastoral da Terra no Mato Grosso. "Os pequenos devem ser beneficiados não só com a terra, mas também com crédito, inclusão em programas sociais. Já os grandes proprietários não receberão terra. O problema é que muitos não estão aceitando porque existe manipulação política", completa.
Nas TVs e rádios locais, a imprensa tenta enfatizar o drama de famílias que não têm para onde ir. Políticos de São Félix do Araguaia, Bom Jesus do Araguaia e Alto Boa Vista, municípios que têm áreas incidentes sobre Marãiwatsédé, articulam-se com seus pares no governo estadual e no Congresso Nacional agendando reuniões e encontros emergenciais com a Casa Civil e ministros do Supremo Tribunal Federal avisando à população que estão buscando o “cancelamento” do decreto que homologou a terra indígena em 1998 – mais uma medida desesperada que gera expectativa pela reversão deste processo, sem qualquer eco na legalidade.
Na segunda-feira, 10, a procuradora Márcia Zollinger, do Ministério Público Federal do Mato Grosso, concedeu entrevista coletiva em Cuiabá explicando que o processo de desintrusão está sendo cumprido por etapas e só será interrompido se houver alguma decisão judicial que determine o contrário. "O Ministério Público Federal está atuando para garantir o direito territorial do povo indígena Xavante de Marãiwatsédé e também realiza o acompanhamento das ações envolvendo a retirada dos ocupantes, especialmente aqueles que se encontram em estado de vulnerabilidade social".
Ela também lembrou que o processo de desintrusão que ocorre hoje foi fruto de uma Ação Civil Pública datada de 1995 que pleiteava a finalização dos trabalhos de demarcação e homologação da Terra Indígena Marãiwatsédé, além de sua desocupação com recomposição dos danos ambientais. Segundo ela, é de maio de 1995 a primeira liminar que a Justiça expediu determinando a desintrusão da terra indígena. "O que está acontecendo hoje é a confirmação de várias decisões desde 1995. Foi, portanto, um longo processo que deu tempo suficiente para análise de provas, contestações", afirma."O MPF convidou os órgãos envolvidos nos trabalhos de desintrusão no sentido de tomarmos todas as precauções para que a retirada dos ocupantes seja realizada de forma pacífica, privilegiando o diálogo".
Devastação ambiental
A reserva fica em uma área de transição entre Floresta Amazônica e Cerrado. Com 165 mil hectares (equivalente ao tamanho do município do Rio de Janeiro), a Terra Indígena localiza-se na região de Mato Grosso conhecida como Vale dos Esquecidos. Desde que foi invadida, Marãiwatsédé é a Terra Indígena que sofreu o mais avassalador processo de desmatamento da Amazônia Legal. Em apenas 20 anos, a mata nativa foi substituída por plantações de soja e exploração da pecuária. "Esse desmatamento afetou diretamente a vida dos inígenas. No lugar da mata entrou uma atividade agrícola que envolve uso intenso de agrotóxico e isso afetou o acesso de todos à água. ", diz Márcio Astrini, coordenador da campanha da Amazônia da organização ambientalista Greenpeace. Convidado pelos Xavantes, ele viajou para região em 2009 para fazer um levantamento sobre a situação. "Havia uma caixa d´água na aldeia, mesmo com um rio passando a menos de um quilômetro. E também marcou muito a chegada de um caminhão com caixas de isopor para vender peixes para os índios. Os Xavante são caçadores e acabaram vivendo ao lado de um rio sem peixes. Depender dos outros para se alimentar é algo muito constrangedor".
O impacto da pecuária dentro da reserva virou um relatório do Greenpeace, que seguiu acompanhando o tema. A Repórter Brasil, por sua vez, publicou um estudo relacionando o monocultivo de soja dentro da Terra Indígena com a devastação ambiental. "Dentro da própria reserva, a sensação de conflito era constante. Os índios caminhavam escondidos, sempre sujeitos a ataques, mesmo ocupando um espaço diminuto de cerca de suas terras [cerca de 10%]. Quando visitamos a aldeia, encontramos um menino que havia levado um tiro porque estava passando por uma fazenda. É uma vida de refugiados dentro da própria Terra Indígena", conta Márcio. "Fomos acompanhados da Funai e, mesmo sendo uma terra indígena demarcada e homologada, tivemos que viajar à noite porque era muito perigoso chegar durante o dia. O próprio governo brasileiro tem que entrar escondido em uma terra homologada porque não havia segurança", completa.
Os indígenas que vivem em Marãiwatsédé elencam diversos episódios de atentados que sofreram, desde que retornaram para a região após quase 40 anos de exílio. A partir de 2004, têm sido vítimas de incêndios criminosos no entorno da aldeia. Também tiveram destruído um ônibus escolar usado pelas crianças Xavante no Posto da Mata. Já houve roubo de gado dos índios, ameaças de morte, tiros a queima-roupa e um dos últimos casos, a perseguição ao filho do cacique Damião Paridzané no dia 3 de novembro de 2012. Motorista contratado pela SESAI, ele capotou o carro, que foi posteriormente incinerado de modo criminoso, deixando os cerca de 800 indígenas sem transporte no atendimento hospitalar fora da aldeia.
Os indígenas divulgaram a "Carta da comunidade Xavante para a sociedade brasileira" (leia aqui - parte 1, 2 e 3), assinada pelo cacique Damião Paridzané em 8 de dezembro de 2012, comemorando a retirada dos invadores. "Agora a desintrusão já começou. Os anciãos esperaram muito tempo para tirar os não-índios da terra. Sofreram muito. A vida inteira sofrendo, esperando tirar os fazendeiros grandes. A lei federal, a constituição, as autoridades estão do nosso lado. (...) Quem ocupava a terra eram nossos pais, nossos avós, nossos bisavós que nasceram aqui, cresceram aqui, fizeram festa para adolescente. Lutaram muito, fizeram ritual dentro do território de Marãiwatsédé nem fazendeiro nem posseiro viviam aqui antes de 1960. Era só índio os anciãos lembram, só tinham duas casas em São Félix do Araguaia. (...) A mata misteriosa que só os Xavantes de Marãiwatsédé conhecem seus segredos. Por isso os antepassados sempre preservaram a floresta, porque ela é da nossa cultura. Essa terra é a nossa origem. Quando a terra for devolvida para o nosso povo, a floresta vai viver novamente. Vai voltar animais e plantas. Nossa mãe vai ficar muito forte e muito bonita, como sempre foi. É assim que tem que ser".
No texto, os Xavante lembram ainda violências sofridas. "Antes da retirada de nossa terra mataram muito Xavantes. Os fazendeiros daquele tempo é muito bandido. Mataram com tiro. Morreu Tsereteme, Tserenhitomo, Tsitomowe, Pa´rada, Tseredzaró, tudo morto com tiro. Não vamos trair o espírito deles."
Dados da desintrusão
A Associação dos Produtores Rurais da Suiá-Missu (Aprosum) divulgou que sete mil posseiros seriam despejados pelo Governo Federal, informação amplamente divulgada a mídia mato-grossense que provocou comoção generalizada. Segundo dados oficiais do IBGE, no entanto, há 2.427 pessoas em Marãiwatsédé. E, destes, apenas 482 não se declararam indígenas no Censo de 2010.
Segundo relatório da Operação Tsa’amri, da Polícia Federal, de 7 a 17 de novembro de 2012, apenas 455 pessoas foram encontradas na área e notificadas a deixar a terra indígena, além de 242 empreendimentos (como casas, comércios e fazendas). Quarenta e três desses locais estavam abandonados. Dos 140 que procuraram o INCRA para se candidatar à reforma agrária, muitos relataram estar sob ameaça de fazendeiros, de acordo com a Polícia Federal. “Muitas famílias têm relatado ao pessoal do INCRA que os fazendeiros têm feito pressões e ameaças aos que manifestam interesse em serem assentados”, aponta o relatório.
A estimativa é de que os proprietários de 80% das localidades mapeadas dentro da Terra Indígena foram notificadas. Por falta de segurança, os oficiais de Justiça interromperam as notificações em 17 de novembro e a operação foi finalizada. Nos 10 dias, contudo, foi possível comprovar outras irregularidades, como o elevado número de trabalhadores sem carteira de trabalho assinada nas fazendas dentro da Terra Indígena Marãiwatsédé. De acordo com as certidões de notificação, também foram numerosos os casos em que esses caseiros declaravam que os proprietários residiam fora do estado, em diversas cidades de Goiás e em São Paulo, por exemplo.
Ainda segundo os relatos dos oficiais de Justiça, as notificações ocorreram de forma tranquila, com exceção de situações pontuais quando um veículo da Força Nacional de Segurança foi tombado, quando um agente da Polícia Rodoviária Federal foi agredido por populares e quando Filemon Limoeiro, atual prefeito de São Félix do Araguaia, acompanhado de outros fazendeiros, apareceu em Posto da Mata e interferiu no prosseguimento das diligências interpelando os coordenadores da operação e causando confusão.
“A população, na sua quase totalidade, está resignada com a situação. Muitos admitem que já sabiam da situação irregular quando chegaram à área, mas acreditavam em outra solução”, diz o relatório da Operação Tsa’amri, da Polícia Federal, que ainda considerou a população “ordeira e educada” durante suas intervenções. “No trabalho realizado em toda a área, não se ouviu o que propagado na mídia sobre derramamento de sangue ou necessidade de uso da violência. Este discurso é propagado pelas lideranças e não corroborado pela população em geral”, diz um trecho do relatório. “A imprensa funcionou como um catalisador da violência propagada pelos elementos isolados que tentavam agitar os demais populares”.
Muita terra para pouco fazendeiro
Desde os trabalhos da FUNAI de identificação do território Xavante nos anos 90 e durante as diligências do INCRA dentro do processo judicial pela desintrusão, a dificuldade de obtenção e divulgação de dados fidedignos foi uma constante. Por isso, o comando da operação de desintrusão trabalha com nada menos que três listas oficiais válidas, que tentam ser complementares: as relações da FUNAI, INCRA e IBAMA.
De acordo com esses dados, quase um terço da Terra Indígena Marãiwatsédé encontra-se nas mãos de 22 grandes proprietários. Muitos deles são justamente os que, em 1992, incentivaram a população a invadir o território Xavante em uma reunião no Posto da Mata transmitida ao vivo pela Rádio Mundial FM no dia 20 de junho. Clique aqui para baixar o arquivo de áudio. Algumas dessas mesmas pessoas ainda hoje insuflam a população a resistir à desintrusão. Este é o caso do atual prefeito de São Félix do Araguaia, Filemon Gomes Costa Limoeiro.
“Nós não vamos admitir que, hoje é nós que estamos aqui, que índio venha invadir onde nós estamos”, afirmou Filemon Limoeiro, em 20 de junho de 1992, durante a reunião que organizou a invasão de Marãiwatsédé na semana em que a empresa AGIP Petroli declarou na Eco 92 que devolveria a área da fazenda aos Xavante. “Tem um monte de país que não tem índio, pode levar a metade, pode levar (palmas). Na Itália tem índio? Não, não tem. Leva, leva pra lá, carrega pra lá; agora não vem jogar em nós não; atrapalhar uma região, um município recém criado acaba", completou.
Outro nome na lista do Governo Federal é Manoel Ornellas de Almeida, desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso, que consta também na lista de infratores ambientais do IBAMA. O ex-prefeito de Alto Boa Vista, Aldecides Milhomem de Cirqueira e seu irmão Antonio Milhomem de Cirqueira são, juntos, donos de seis propriedades.
Gilberto Luiz de Resende, conhecido na região como Gilbertão, é dono de quase 2.700 hectares em Marãiwatsédé. Ele e seu irmão Admilson Resende são apontados como responsáveis pela entrada de posseiros na terra indígena após entrega de documentos que dariam a elas algum direito sobre a terra. Isso foi apelidado pelos fazendeiros de “reforma agrária privada”, conforme vídeo divulgado pelos próprios proprietários na internet. Clique aqui para baixar o vídeo.
O vídeo diz que “o Baixo Araguaia é uma das regiões agrícolas mais promissoras de Mato Grosso, aqui um grupo de mais de setecentos posseiros vive uma experiência inédita. Sem qualquer conflito, duzentos e oitenta já receberam a escritura das propriedades que invadiram há onze anose duzentas e cinqüenta famílias já negociaram, e aguardam apenas a homologação do acordo. Esta experiência está sendo reconhecida como reforma agrária privada, uma negociação pacífica que beneficia a todos está mudando a história da região”.
Antonio José de Almeida, conhecido como Baú, que é prefeito eleito de São Félix do Araguaia, também é figura tarimbada na história da ocupação de Marãiwatsédé. Em 1992, ele também falou à Rádio Mundial FM: “nós como autoridades temos que dar respaldo aos anseio (sic) da população (palmas). Se a população achou por bem que deve tomar conta dessas terra em vez de dá-la para o índio nós temos que dar esse respaldo para o povo, seria irresponsabilidade nossa se nós estivéssemos de braços cruzado, deixando as coisas correr naturalmente”.
Alheios a essa articulação, os Xavante tentam se manter unidos na aldeia sob a guarda da força-tarefa que conduz a operação de desintrusão, como a Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, Exército, Força Nacional de Segurança, e FUNAI. Apreensivos com todo o processo, eles estão felizes com a concretização de um sonho de 46 anos, conforme previu o ancião Francisco Tsipé há exatamente um ano. “Confiamos que no ano de 2012 teremos esperança, chegará o grande dia”.
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Invasores começam a ser retirados de Terra Indígena Marãiwatsédé - Instituto Humanitas Unisinos - IHU