03 Dezembro 2012
Maior exportador de gás natural liquefeito, com a terceira maior reserva do mundo, o Catar, sede da 18.ª Conferência das Partes do Clima das Nações Unidas (COP-18), possui um recorde inconveniente para as discussões sobre as mudanças climáticas. É o maior emissor per capita de gases de efeito estufa e, até agora, não tem dado sinais de que anunciará alguma meta voluntária de reduzir as emissões.
A reportagem é de Giovana Girardi e publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 02-12-2012.
A contradição, no entanto, não está só no evento em si, mas no próprio momento que o país árabe vive. De um lado, o Catar - que tem 1,7 milhão de habitantes, a maioria vivendo em Doha - ainda é totalmente dependente dos combustíveis fósseis: 75% do consumo de energia é proveniente de gás natural e o restante do petróleo. Foi sua exportação que permitiu que o país saltasse de uma nação pobre para uma rica em menos de 20 anos, alcançando a maior renda per capita do mundo. Do outro lado, se vende para o mundo como uma nação que quer se transformar.
É, de fato, um país em construção. Não só em obras - como podem sugerir os guindastes e prédios que são erguidos por todos os lados (o próprio centro de convenção onde ocorre a COP-18 é novíssimo, foi lançado em 2011) -, mas em conceito.
Em 2008, o país lançou sua Visão Nacional para 2030 com o lema de se mover de uma economia baseada em carbono para uma apoiada no conhecimento. O país onde não falta dinheiro está disposto a atrair a nata de universidades estrangeiras a terem sede no Qatar. Já vieram, por exemplo, o Weill Cornell Medical College e as universidades College London, Georgetown, Carnegie Mellon e Northwestern.
Como exatamente esse conhecimento vai se opor à economia baseada em carbono e transformá-la em verde não está claro. Os EUA também estão repletos de pesquisadores pensando nos problemas ambientais e nem por isso estão agindo.
Tampouco está evidente que essa seja a real intenção. Já na coletiva de abertura, o presidente da COP soltou uma gafe que caiu mal entre os negociadores. Abdullah Bin Hamad Al-Atttiyah, ex-ministro de Energia e Indústria do Catar, menosprezou a importância de o país ser o maior emissor per capita. "Não devíamos nos concentrar nisso, mas na quantidade de emissões de cada país individualmente. A quantidade é o mais desafiante."
Para ele, como o gás natural emite menos que o petróleo, ao exportá-lo, o país "está resolvendo o problema dos outros". Apesar de o impacto ser menor, é um combustível fóssil, cuja queima emite gás carbônico. Vide o indicador per capita do Catar.
Liderança
Para ONGs locais, a melhor posição que o país poderia ter é anunciar uma meta voluntária de redução de suas emissões. Para Lama Al Hatow, da ONG IndyAct, a medida poderia influenciar os outros países árabes. "O Catar poderia provocar um efeito dominó na região", diz. Isso poderia começar, afirma ela, pelo chamado GCC (Países de Cooperação do Golfo, na sigla em inglês), do qual o Catar faz parte e com quem costuma tomar decisões em conjunto.
Lama diz que o fato de a COP ocorrer pela primeira vez no Oriente Médio trouxe a vantagem de ao menos mobilizar a população. Por causa do evento, foi lançado em novembro o Movimento Climático da Juventude Árabe. Inspirado na Primavera Árabe, nasceu para pressionar os governos locais em torno da urgência das mudanças climáticas. Em nove semanas, passou de 20 para mil membros.
Vestidos com camiseta preta com os dizeres "Árabes, é hora de agir", eles fizeram ações discretas na primeira semana da COP-18 e ontem promoveram a primeira marcha na história do país.
O governo reagiu rápido ao movimento e, num gesto que foi interpretado tanto como de boa-fé quanto como uma tentativa de enquadrar a ação, pagou as passagens de vários jovens vindos do Oriente Médio e do norte da África para a COP-18.
O porta-voz do governo, Fahad Bin Mohammed Alattiya, também manifestou apoio aos jovens e até os apresentou em coletiva à imprensa. Mas, questionado sobre como responderia aos pedidos de estabelecer uma meta de redução, desconversou, dizendo que uma estratégia de mitigação e adaptação para os próximos oito anos será apresentada durante a conferência.
Depois, se mostrou sensível ao problema. "O Catar enfrenta uma crítica vulnerabilidade: importamos 90% da comida. Isso se relaciona com as mudanças climáticas. Somos impactados quando produções de alimentos em todo o mundo sofrem com seca ou inundações." O país também não tem água doce. "Quase toda a água do nosso país vem de dessalinização. Os aquíferos estão quase esgotados", contou.
País tem primeira manifestação
Foi discreta, mas histórica. Ontem pela manhã, ONGs de ambientalistas, mulheres e organizações sindicais, tanto do Oriente Médio quanto internacionais, e o recém-nascido Movimento Climático da Juventude Árabe (AYCM) saíram em marcha para pedir uma ação urgente dos países presentes na COP-18 a fim de evitar as mudanças climáticas. Pela primeira vez na história recente do país a realização de uma manifestação pública foi permitida.
A autorização e o anunciado apoio do governo ao protesto chegaram a deixar no ar uma sensação de que seria uma passeata "chapa branca" - ainda mais depois que um dos líderes do evento, o consultor Khalid Al Monhammid, da ONG Doha Oasis, disse que a marcha foi possível porque o Catar é um país com liberdade de expressão. Mas, na hora da festa, o tom foi crítico como era esperado que fosse. A mensagem principal era: árabes, reduzam as suas emissões e assumam a liderança na mudança.
Durante uma hora e meia, cerca de mil participantes andaram por 2,5 quilômetros da Avenida Al Corniche, uma das regiões mais suntuosas da capital, cercada de um lado pelo Golfo Pérsico e do outro por arranha-céus modernosos. Clamaram quase o tempo todo frases como: "Líderes árabes, é hora de liderar"; "Sua ação é a nossa sobrevivência"; "Ação climática agora"; e "Nosso futuro está suas mãos", entre outras.
A bióloga marinha Reem al Mealla, de 24 anos, uma das criadoras da AYCM, era uma das líderes da marcha. Contou que só foi saber das mudanças climáticas quando foi fazer faculdade em Londres. No Bahreim, país vizinho onde nasceu, boa parte das escolas não traz o assunto no currículo. "Queremos ver mudanças e acho que é encorajador que a COP-18 esteja ocorrendo no Catar, apesar das emissões per capita. É a chance de assumirmos uma meta voluntária de reduções."
Ao final da marcha, Fahad Bin Mohammed Alattiya, porta-voz do governo na conferência do clima, apareceu no ponto de dispersão e falou aos participantes. Disse esperar que eles sejam ouvidos pelos delegados.
Participação
Só faltou audiência, afinal em Doha não se vê muitas pessoas andando a pé, mesmo com o calçadão à beira-mar. Mas os trabalhadores da construção civil das obras vizinhas pararam para ver. Migrantes em sua maioria, não têm autorização para participar de eventos assim. No meio dos pedidos da marcha, porém, eles estavam representados. Por mais segurança nas condições de trabalho e direitos humanos.
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Sede da COP, Catar vive contradições ambientais - Instituto Humanitas Unisinos - IHU