24 Novembro 2012
"De onde tu és?", póthen eî sý? No pretório de Jerusalém, o governador Pôncio Pilatos, "juiz romano racionalista", que "já havia expressado o seu ceticismo" ("O que é a verdade?") faz ao acusado a pergunta decisiva. Bento XVI começa A infância de Jesus a partir daí, quase como se fizesse de Pilatos um ícone da incredulidade contemporânea.
A reportagem é de Gian Guido Vecchi, publicada no jornal Corriere della Sera, 21-11-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Joseph Ratzinger começara em 2003 o seu Jesus de Nazaré como cumprimento de um "longo caminho interior" e, ao mesmo tempo, impulsionado por uma "urgência", escrevia ele na publicação do primeiro volume, em 2007: a percepção de " uma situação dramática da fé". A ideia de que, com o progresso das pesquisas "histórico-críticas", em si válidas, a figura de Jesus havia se tornado "cada vez mais nebulosa", voltava no segundo volume de 2011, juntamente com a necessidade de recompor o "rasgo" entre o "Jesus histórico" e o "Cristo da fé".
E agora a obra acabou. O livro mais esperado foi publicado no dia 21 de novembro. Nove anos de trabalho resumindo o sentido de uma vida inteira (a epígrafe é o Salmo 27: "É a tua face, Senhor, que eu busco. Não me escondas a tua face") se completam com Die Kindheitsgeschichten, a terceira parte sobre os "relatos da infância de Jesus".
Mas aquele que, no início, devia ser um "capítulo" tornou-se muito mais do que a "pequena sala de entrada aos dois volumes anteriores" sobre a qual o autor fala no prefácio. A pesquisa do "Jesus real" torna-se convincente ao falar do período mais misterioso da sua vida, apenas quatro capítulos e 180 versículos entre os Evangelhos de Mateus e Lucas. E é na análise desses textos que Bento XVI realiza o sentido da sua obra: porque as "narrações" da infância "não são mitos ulteriormente desenvolvidos" ou "lendas piedosas", escreve ele, muito menos podem ser adscritas ao gênero do "midrash hagádico", o antigo gênero literário judeu que interpreta a escrita por parábolas.
Escreve o papa: "Aqui se conta uma história que explica a Escritura e, por outro lado, o que a Escritura, em muitos lugares, quis dizer, torna-se visível somente agora, por meio dessa nova história".
"Eu tenho confiança nos Evangelhos", explicava ele no primeiro volume. E agora argumenta: "Quais são as fontes?". A resposta é, aparentemente, surpreendente: a "fonte" fundamental é Maria. "Lucas, às vezes, faz referência ao fato de que a própria Maria, a mãe de Jesus, era uma das suas fontes", e o faz em particular quando se lê no Evangelho que "sua mãe guardava todas estas coisas no seu coração".
Bento XVI escreve: "Só ela poderia referir o evento da Anunciação, que não tivera testemunhas humanas". Certamente, "a exegese moderna" pode considerar "ingênuas" essas conexões, mas Ratzinger responde:" Por que não deveria haver tal tradição, conservada e, ao mesmo tempo, modelada no círculo mais restrito? (...) Por que Lucas deveria ter inventado?". O próprio "aparecer tardio" das "tradições marianas" se explica "na discrição da Mãe e dos círculos em torno dela", até a sua morte.
Mateus também "nos conta a verdadeira história" que "foi meditada e interpretada teologicamente", e não ao contrário. As narrações "provêm da tradição familiar". Com Klaus Berger, o papa afirma que, "até prova em contrário, é preciso supor que os evangelistas não pretendem enganar os seus leitores, mas querem relatar fatos históricos" e considera: "Contestar por pura suspeita a historicidade desse relato vai além de toda imaginável competência dos historiadores".
Considerações que recorrem no livro. O massacre dos inocentes "não tem nada de impossível". Disse-se que Jesus teria nascido em Nazaré, enquanto Belém, cidade de Davi, seria um lugar teológico, mas "eu não vejo como se possa citar fontes verdadeiras a uma teoria dessas". O mesmo vale para o nascimento na gruta e as "tradições locais" ("na região desde sempre se usam grutas como estrebaria").
A palavra "primogênito" referida a Jesus indica "uma qualidade teológica" e "não se refere" a outros filhos. Quanto ao boi e ao jumento, no Evangelho, "não se fala de animais", mas "a meditação guiada pela fé" levou a uma passagem de Isaías, e "nenhuma representação do presépio renunciará ao boi e ao jumento".
Mais delicada é a questão do parto virginal de Maria. "É um evento histórico real ou uma lenda piedosa? É verdade o que dizemos no Credo?". A resposta "sem reservas é: sim". E com o grande teólogo protestante Karl Barth, ele diz que "há dois pontos nos quais a ação de Deus intervém imediatamente no mundo material: o nascimento da Virgem e a ressurreição do sepulcro". Dois pontos "são um escândalo para o espírito moderno", escreve o papa: "A Deus é concedido agir na esfera espiritual, mas não sobre a matéria. Isso perturba. Ali não é o seu lugar". Mas esses pontos são "pedras de toque para a fé", é disto que se trata: "Se Deus não tem poder também sobre a matéria, então Ele não é Deus".
Além disso, "Jesus não nasceu e apareceu em público no impreciso 'uma vez' do mito. Ele pertence a um tempo exatamente datável e a um ambiente geográfico exatamente indicado: o universal e o concreto se tocam". E não só isso: o texto deve ser lido também para o que diz agora, "diz respeito a mim?". Isso vale para o grito das mães depois do massacre das crianças; "na nossa época, esse grito a Deus ainda permanece".
Vale para a política; "o meu reino não é deste mundo", diz Jesus, e Ratzinger considera: "Às vezes, no curso da história, os poderosos deste mundo o atraem para si; mas precisamente então ele está em perigo: eles querem relacionar o seu poder com o poder de Jesus, e justamente por isso deformam o seu reino, o ameaçam".
Vale também para a relação com a ciência, confiada às páginas sobre os Reis Magos, que marcam o "fim da astrologia" ("o Menino guia a estrela") e, ao mesmo tempo, o alargamento da razão para o todo, a "autossuperação da ciência". O papa não se isenta nem da pergunta sobre se a estrela "realmente existiu". Ele cita a conjunção de Júpiter, Saturno e Marte no ano 7 e 6 a.C., a data "verossímil" do nascimento de Jesus (houve, como se sabe, um erro de cálculo da era cristã), tabelas chinesas que, no ano 4 a.C., indicam uma "estrela luminosa".
Um livro escrito com a simplicidade que é a meta do espírito e ao mesmo tempo "dois livros em um", dizia no dia 20 o presidente da RCS Libri, Paolo Mieli: um texto denso, complexo, que fala a todos, porque diz respeito a todos. O cardeal Gianfranco Ravasi citou as palavras de Maria em um texto teatral: "Este Deus é o meu filho. Esta carne divina é a minha carne. Ele é feito de mim, tem os meus olhos, e esta forma da sua boca é a forma da minha. Ele se parece comigo. É Deus e se parece comigo!". Depois, sorriu: "O autor, ateu, é Jean-Paul Sartre".
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''A virgindade de Maria não é um mito''. Ratzinger e a infância de Jesus - Instituto Humanitas Unisinos - IHU