05 Novembro 2012
Nós, homens modernos, costumamos nos imaginar como seres racionais, que orientam suas ações pela lógica da causa e efeito, capazes de domar a natureza com os instrumentos avançados da ciência e da tecnologia. Construímos metrópoles, civilizações e uma inabalável autoconfiança. E então, de um dia para o outro, uma tempestade de proporções bíblicas ameaça a cidade-símbolo da riqueza e da potência humana. E a natureza cobra seu preço dos inquilinos de um planeta que se torna pequeno diante de suas ambições.
"Em primeiro lugar, deixe-me dizer que o furacão Sandy não foi um evento 'natural'." Com essas palavras, surpreendentes na boca de um filósofo da ciência, o australiano Peter Singer começa a entrevista que você lê a seguir. Professor de bioética da Universidade Princeton - pesquisador e ambientalista incansável na denúncia dos riscos do aquecimento global e na defesa dos direitos dos animais -, Singer espanta-se tanto diante dos que creem em um Deus onipotente e intervencionista a zelar pela vida dos homens quanto dos que relutam em acreditar nos dados científicos que atestam os efeitos nefastos da ação humana sobre o clima da Terra.
A entrevista é de Ivan Marsiglia e publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 04-11-2012.
Com o número de mortos em decorrência do Sandy aproximando-se da centena na sexta-feira e a campanha presidencial virtualmente paralisada nos Estados Unidos diante da tragédia, pelo menos um sintomático efeito político se fez sentir: o prefeito de Nova York, Michael Bloomberg, um independente que já esteve afinado com os republicanos, declarou apoio à reeleição de Barack Obama. Alarmado com a magnitude da destruição na cidade, Bloomberg tomou partido na celeuma sobre o tema ambiental, que divide democratas, defensores do investimento em energias verdes, dos "negacionistas" republicanos, que refutam a ideia de que o aquecimento global seja causado pela ação do homem.
Para Peter Singer, chegamos ao ponto em que não basta intensificar preparativos para emergências de grandes proporções em nossas metrópoles. Será preciso tomar uma atitude radical em relação às emissões de gases do efeito estufa, nas formas de geração de energia e em nossos próprios padrões de consumo - antes que seja tarde demais. "Tempestades extremas como essa", diz o professor, "evidenciam nossa ingenuidade ao imaginarmos que o conhecimento científico é suficiente para nos proteger delas."
Eis a entrevista.
As imagens do furacão Sandy sobre Manhattan lembram muito os filmes de catástrofe em Hollywood, que atraem multidões aos cinemas. Qual é o efeito desses grandes eventos naturais sobre a autoestima e a imaginação do homem atual?
Em primeiro lugar, deixe-me dizer que não devemos admitir que o furacão Sandy foi um evento "natural". Cientistas que pesquisam mudanças climáticas induzidas pela atividade humana já haviam previsto que eventos climáticos extremos iriam se tornar mais comuns. Por sua intensidade e força, é praticamente certo que o furacão esteja conectado aos danos que causamos ao meio ambiente. No que se refere ao clima, assim como às plantas, animais e tudo o que chamamos de "ambiente natural", não existe mais "natureza" neste planeta: estamos vivendo numa era em que a atividade humana afeta tudo, em todas as partes do mundo. Dito isso, tempestades extremas como essa, e também terremotos e tsunamis, evidenciam nossa ingenuidade ao imaginarmos que nosso conhecimento científico é suficiente para nos proteger deles. Às vezes podemos prever esses eventos, o que evidentemente nos ajuda a salvar muitas vidas, mas ainda assim eles mostram quão pífios podem ser nossos melhores esforços para enfrentá-los.
Então eles abalam, além de cidades, as nossas crenças?
Exato. Esse é um fator curiosamente ignorado muitas vezes. Em 1755, após um terremoto e um tsunami devastarem Lisboa, matando dezenas de milhares de pessoas, filósofos iluministas questionaram como o mundo poderia ter sido criado por um ser onipotente, onisciente e benevolente. Este não pode ser o melhor dos mundos, disse Voltaire por meio de seu personagem Cândido. Concordo com ele e me intriga o fato de cristãos tradicionais testemunharem semelhantes calamidades - com milhares de mortos, incluindo crianças, com sofrimento generalizado - e continuarem a crer em um deus com semelhantes atributos.
Mesmo com as previsões dos cientistas e com as precauções tomadas pelas autoridades americanas, a usina nuclear de New Jersey entrou em 'estado de alerta' devido à tempestade. Por mais que nos preparemos para tais eventos, chegaremos a estar seguros?
A energia nuclear é uma atividade inerentemente perigosa, e desastres como o tsunami que atingiu a planta nuclear de Fukushima deixaram isso bastante claro. Tanto que países como a Alemanha já acordaram para a necessidade de abandoná-la. Mesmo quando as probabilidades de algo dar errado são extremamente baixas, se isso acontece as consequências podem ser um desastre de proporções inéditas - e podem tornar uma extensa região inabitável por séculos. Claro que a energia nuclear não contribui para o aquecimento global e é, compreensivelmente, uma alternativa atraente aos olhos de muitos. Mas há outras opções mais seguras que o nuclear ou as termoelétricas a carvão, como a energia solar, eólica e hidrelétrica, com eficiência razoável e menor produção de lixo.
O sr. afirma que o Sandy não pode ser chamado de evento 'natural', mas alguns cientistas têm dito que, embora intenso, ele não foi tão diferente de outros furacões ou ciclones.
Sandy poderia ser chamado de "normal" no contexto de um fenômeno que ocorresse uma vez a cada cem anos. O problema é que esses "desastres naturais" têm tido frequência cada vez maior, de um a cada década. Seria difícil dizer, diante de um único furacão, que ele é resultado do aquecimento global. Mas no atual cenário de furacões, enchentes e secas cada vez mais frequentes no mundo, eu não chamaria o Sandy, de forma alguma, de "fenômeno natural".
Ou seja, a partir de agora as pessoas terão que desenvolver uma certa 'consciência de sobrevivência' para enfrentar desastres cada vez mais comuns?
Prefiro dizer que as pessoas - e os governos - terão de levar realmente a sério as mudanças climáticas. Nós temos de reduzir as emissões de gases antes que a situação se torne ainda pior. Mas enquanto isso não acontece as pessoas podem se preparar para perdas e desastres cada vez mais frequentes nas grandes cidades.
Quanto os urbanistas de hoje estão preparados para enfrentar essa situação?
O planejamento urbano começa a centrar foco na antecipação de emergências, mas é muito difícil estar preparado para ocorrências de tão grandes proporções. Na construção do novo World Trade Center em Nova York, por exemplo, a polícia solicitou que a base do edifício fosse forte o bastante para resistir a uma grande explosão. Só que esse é apenas um tipo de emergência possível. Existe, como se pôde perceber agora na cidade, muito pouca proteção para barrar as inundações. Mesmo as instalações de energia elétrica nova-iorquinas não estão protegidas: enquanto falamos aqui, a parte baixa de Manhattan continua às escuras, e pode levar dias até que a energia seja religada.
A campanha presidencial americana parou por causa do furacão. Grandes tragédias, como o furacão Katrina em 2005, sempre afetaram a política, mas de início parece haver um acordo tácito para enfrentá-las. Por quê?
Num primeiro momento, há a sensação de que todos devem se unir e trabalhar juntos para reduzir os danos. Mas é um sentimento que não dura muito. O Katrina, no fim, foi devastador para a administração Bush, principalmente porque a Fema (Federal Emergency Management Authority, agência governamental responsável pela prevenção de catástrofes) fez um trabalho péssimo - e ficou revelado que Bush havia nomeado um amigo político sem experiência no assunto para a chefia da agência. Agora, tanto as agências meteorológicas quanto a Fema fizeram um trabalho muito melhor do que no caso Katrina.
Aparentemente, Obama e Romney têm visões distintas sobre a importância da Fema.
De fato. E espero que os apoiadores do presidente Obama deixem bem claro que Mitt Romney disse, no ano passado, que pretendia extinguir a Fema e atribuir suas funções aos Estados. Depois do furacão Sandy ele já mudou o discurso, não quer mais abolir a Fema... O que prova que diz qualquer coisa para ser eleito. Há uma clara diferença entre os dois candidatos nesse assunto. Depois de Bush ter diminuído o status da Fema, Obama felizmente o recuperou. Mas os republicanos insistem na ideologia de reduzir o poder do governo federal, mesmo quando é óbvio ser impossível para as autoridades individuais dos Estados lidarem com um problema como o do furacão Sandy, que afeta vários deles.
Segunda-feira, quando as estatísticas americanas registravam menos de uma dezena de mortos, 52 pessoas já haviam morrido por causa do Sandy no Haiti. Nessas grandes tragédias as vidas das populações mais pobres contam menos?
É fato que populações pobres, distantes dos centros internacionais de mídia, recebem muito menos atenção. É um problema que sempre vimos e estamos vendo de novo agora. E vale ainda notar que pessoas mortas em furacões, terremotos, tsunamis e ataques terroristas ganham muito mais atenção do que as que perdem a vida por razões relacionadas à pobreza, à falta de saneamento, água potável ou atendimento médico. De acordo com a Unicef, as mortes de 8 milhões de crianças a cada ano em decorrência de fatores como esses poderiam ser evitadas. Isso é mais do que 20 mil óbitos por dia - tragédia muito maior que a do furacão Sandy, seja no Haiti, seja nos EUA. Uma tragédia cotidiana, que não rende imagens cinematográficas na TV; simplesmente não é noticiada.
Essa semana, uma corte italiana condenou por homicídio culposo sete sismólogos que não previram um terremoto que matou 300 pessoas em 2009. O que achou do caso?
Um absurdo e uma ameaça à pesquisa científica. Como podemos incentivar que pesquisadores deixem as universidades para prestar serviço em áreas de significância pública se os ameaçamos de prisão quando algo dá errado? Não está claro sequer se esses cientistas cometeram algum engano nesse caso - eles podem ter agido com base nas evidências que eram disponíveis. Podiam ter feito melhor? Como saber? E, ainda que tivessem cometido um equívoco genuíno, jamais se justificaria condená-los por homicídio culposo!
O que já aprendemos sobre a prevenção de grandes tragédias naturais?
Que não se pode esperar proteção completa diante de terremotos ou eventos climáticos extremos. Mas certamente podemos construir edifícios mais sólidos, erguer barragens anti-inundação e proteger os equipamentos de infraestrutura essenciais ao funcionamento das cidades. Organizações como a Geohazards International, por exemplo, têm sido pioneiras no desenvolvimento de projetos como o de parques altos em cidades costeiras, sujeitas a tsunamis, que podem acolher a população tão logo ocorra um alerta de terremoto oceânico. O problema, obviamente, é que tudo isso custa dinheiro, e quando os riscos de que determinado evento ocorra são pequenos, tendemos a não querer gastar com isso.
Como lidar com o potencial de destruição da natureza quando precisamos desesperadamente preservá-la da destruição humana?
O melhor que podemos fazer a ambos, a natureza e nós, é reduzir as emissões de gases do efeito estufa. Nesse sentido, não podemos ignorar que um dos fatores de maior geração desses gases é a produção de carne - especialmente a bovina, pois as vacas produzem metano, que contribui 72 vezes mais para o aquecimento global que o dióxido de carbono. Sem uma mudança efetiva em nossos padrões de consumo, não vamos conseguir desacelerar a mudança climática que torna cada vez mais frequentes desastres como o furacão Sandy.
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E o homem criou Sandy. Entrevista com Peter Singer - Instituto Humanitas Unisinos - IHU