11 Outubro 2012
Roncalli foi um homem de uma humildade tão profunda que, dando-se conta de que era urgente uma reforma da Igreja, jamais quis delimitar os detalhes.
A opinião é do teólogo espanhol José María Castillo, com vários livros traduzidos para o português, em artigo publicado no blog Teología sin Censura, 09-10-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Aos 50 anos da inauguração do Concílio Vaticano II, o papa que teve a ideia de convocar esse Concílio, o Papa Roncalli, continua nos desconcertando. Entre outras razões, porque são poucos os que podem imaginar até onde chegou a bondade desse homem.
Ninguém sabe ao certo como ou por que esse idoso cardeal de Veneza chegou a ser papa. O que se disse em Roma, para explicar a sua designação, é que o conclave havia empacado, e os cardeais, como solução transitória, decidiram pôr no papado um homem de transição, para sair do impasse e buscar assim uma saída digna, utilizando um papa que pudesse viver pouco tempo. O que os homens do conclave não suspeitavam é o que Karl Rahner soube formular: "O papa de transição João XXIII pôs em marcha a transição da Igreja para o futuro".
O mais provável é que haverá pessoas que irão sorrir com desdém ao ler o que acabo de dizer. Porque não são poucos os que pensam que aquele papa bonachão, velho e rechonchudo, foi o homem que pôs em marcha o doloroso processo de decomposição da Igreja. E é verdade que João XXIII foi o papa que, com sua desconcertante liberdade ao serviço da bondade, desempacou a situação que o genial eclesiólogo que foi Yves Congar apontou em seu diário pessoal:
"Impressiona-me constantemente o irrealismo de um sistema que tem suas teses e seus ritos, também seus servidores, e que canta a sua canção sem olhar para as coisas e para os problemas tal como são. O sistema está satisfeito com suas próprias afirmações e suas próprias celebrações. Tudo se desenrola em um plano diferente dos problemas reais, em um universo completamente diferente do dos homens".
Congar anotava isso no dia 24 de novembro de 1954. E essa foi a situação que João XXIII desempacou. Não como deveria ter sido feito, reorganizando o papado e modificando a Cúria vaticana. Mas não pôde ser assim, entre outras razões, e por mais estranho que pareça, por causa da incompreensível bondade daquele papa. Mas foi precisamente essa bondade que abriu novos caminhos para a Igreja. O que eu quero dizer com isso?
Roncalli foi um homem de uma humildade tão profunda que, dando-se conta de que era urgente uma reforma da Igreja, jamais quis delimitar os detalhes. Sabe-se com certeza que, entre os seus mais achegados, ele gostava de dizer que não tinha competência universal alguma. Por isso, ele não quis presidir as assembleias conciliares. Confiava no corpo episcopal.
E o seu desapego pessoal chegou até limites impensáveis. Por exemplo, nomeou como cardeais a alguns de seus mais conhecidos adversários. E pôs como presidentes das comissões do Concílio aos mais destacados dirigentes da Cúria. Sua bondade (bem entendida? mal entendida?) chegou a ultrapassar a linha vermelha que marca o limite do que é "razoável" e colocou-se em cheio nas águas pantanosas daquilo que não é fácil entender a partir da lógica da "ordem marcada pelos poderes deste mundo".
Isso teve suas consequências. A principal delas é bem conhecida: os documentos do Concílio foram o resultado de fórmulas de compromisso. Fórmulas em que as duas partes, progressistas (centro-europeus) e conservadores (curiais), não tiveram outra escolha senão chegar a acordos em que cada parte teve que ceder. E a isso somaram-se as intervenções posteriores de Paulo VI, às vezes atormentado pelas suas dúvidas.
O exemplo mais claro foi a famosa "Nota explicativa prévia", que, em grande medida, deixou "poder pleno, supremo e universal" nas mãos do papa. Com isso, ficou sem se resolver o problema principal que o Concílio devia resolver: onde e como reside o sujeito de suprema potestade na Igreja. Mas disso falaremos outro dia.
Então, o que João XXIII contribuiu com o seu pontificado e o seu Concílio? O mais decisivo para os discípulos de Jesus: que a bondade é a força que muda o mundo, que renova a Igreja, que nos leva pelos mesmos caminhos que Jesus traçou. Isso não diz nada? Mais ainda, isso foi e continua sendo um fracasso? A vida de Jesus não terminou no mais estrepitoso dos fracassos? E, no entanto, não dizemos nós, fiéis, que aí, nisso, está o mistério daquilo que mais nos humaniza e mais nos faz felizes?
Amigos, aqui estamos tocando o fundo. Como o papa Roncalli tocou.
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João XXIII, o papa desconcertante - Instituto Humanitas Unisinos - IHU