24 Setembro 2012
Sem nenhuma dúvida, a liberdade religiosa emergiu como a principal preocupação social e política da Igreja Católica no início do século XXI. O Papa Bento XVI ofereceu uma confirmação disso recentemente, no último sábado, durante a sua viagem ao Líbano.
A reportagem é de John L. Allen Jr., publicada no jornal National Catholic Reporter, 21-09-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Falando aos políticos, diplomatas e líderes religiosos (incluindo representantes de todos os quatro principais ramos do Islã no Líbano – sunitas, xiitas, drusos e alauítas), o papa afirmou que "liberdade religiosa é o direito fundamental, de que muitos outros dependem".
Um novo relatório divulgado na última quinta-feira pelo Pew Forum ilustra por que, ao menos nesse caso, é impossível argumentar que a preocupação é equivocada.
Com base na análise de 197 países e territórios, aqui está a preocupante conclusão: "Uma crescente onda de restrições à religião espalhou-se pelo mundo entre meados de 2009 e meados de 2010". Os principais resultados incluem:
- As restrições à religião cresceram em cada uma das cinco grandes regiões do mundo, inclusive os Estados Unidos. (Os EUA foram uma das 16 nações cujas pontuações em termos de restrições, tanto impostas pelo governo quanto sociais, deram um salto de mais de um ponto. Essa conclusão, aliás, não tem nada a ver com a polêmica entre os bispos dos EUA e a Casa Branca sobre os mandatos dos seguros, que não estavam na tela do radar durante o período abrangido pelo relatório. Ao contrário, ele cita novas restrições em sistemas prisionais à prática religiosa, zoneando dificuldades enfrentadas pelas Igrejas, tentativas legislativas para banir a sharia e um esforço em uma comunidade do Tennessee para proibir a construção de uma mesquita com base no fato de o Islã ser uma ideologia e não uma religião.)
- 37% das nações do mundo têm restrições altas ou muito altas sobre a religião, um aumento em comparação aos 31% de um ano atrás – um salto de seis pontos em apenas 12 meses.
- Três quartos da população mundial de 7 bilhões, ou seja, 5,25 bilhões de pessoas, vivem em países com restrições altas ou muito altas sobre a religião. Esse é um aumento em comparação aos 70% de um ano atrás.
- Às restrições cresceram não apenas em países que já tinham um clima difícil para a liberdade religiosa, mas mesmo em lugares que começaram com um histórico bastante bom como a Suíça.
- No período que terminou em meados de 2010, os cristãos enfrentaram assédio em um número maior de países – um total de 111 – do que qualquer outro grupo religioso. Eles também lideram em termos do número mais alto de países em que enfrentaram assédios entre 2006 e 2010, um total de 139.
O relatório do Pew avalia tanto as restrições governamentais quanto a "hostilidade social", ou seja, atos de assédio contra a religião por parte de indivíduos, organizações e grupos sociais privados, ou o que se pode pensar como a diferença entre as restrições de jure e de facto.
Moral da história: não se trata apenas de um caso de retórica eclesiástica superaquecida. As ameaças à liberdade religiosa em todo o mundo são reais e estão piorando cada vez mais.
Três reflexões parecem necessárias.
Primeiro, o relatório não distingue entre as restrições sobre as instituições de base religiosa, como onde uma instituição de caridade religiosa pode operar ou que serviços ela pode oferecer, e os limites à liberdade de fiéis individuais, como o direito de se converter de uma religião para outra sem assédio ou penalidades legais, como as "leis da blasfêmia" em alguns Estados de maioria muçulmana.
Em linhas gerais, as questões institucionais tendem a parecer maiores no Ocidente, com a recente disputa norte-americana dos mandatos de seguros como um bom exemplo. Ou considere-se as consequências da "Lei da Igualdade" de 2007 no Reino Unido, que tornou ilegal para as agências de adoção católicas se recusar a atender casais homossexuais, levando algumas delas a abandonar o negócio, outras a cortar os laços com a Igreja, e outras ainda aos tribunais.
Em outras partes do mundo, a violação das liberdades individuais é muito mais evidente. Embora isso vá além do escopo do estudo do Pew, é difícil evitar a suspeita de que os dois estão ligados, e que um clima em que a liberdade das instituições religiosas é reduzida é um clima em que, mais cedo ou mais tarde, as liberdades individuais também poderão ser atenuadas.
É claro, há um equilíbrio a ser alcançado entre permitir que uma instituição seja fiel à sua crença ao mesmo tempo em que se insiste que ela obedeça à lei da terra na arena pública, especialmente se ela recebe apoio público. As pessoas razoáveis podem diferir sobre onde os limites devem ser traçados.
No entanto, vale a pena pensar sobre aonde o cercamento da autonomia das instituições religiosas se destina – e se esse é um lugar ao qual realmente queremos ir.
Em segundo lugar, devemos lembrar que, por trás das estatísticas citadas no relatório do Pew, estão pessoas reais de carne e osso. Eu conheci algumas delas no último fim de semana, incluindo um grupo de cristãos refugiados da Síria que estão agora em um campo no Líbano porque estão aterrorizados diante das suas perspectivas em uma sociedade pós-Bashar Assad. (O fato de que os elementos das forças rebeldes tenham adotado o lema "Cristãos para o Líbano, alauítas para o túmulo!" obviamente não ajudou a acalmar essas ansiedades.)
Os refugiados estavam na missa papal na orla de Beirute na manhã de domingo, e embora estivessem emocionados por estar próximos do papa eles francamente não estavam convencidos de que as palavras de Bento XVI sobre a liberdade religiosa teriam muito impacto a curto prazo em termos de tornar segura a volta para casa.
Certamente todos pode concordar, quaisquer que sejam suas filiações políticas, que ser expulso do próprio país porque você pratica a fé errada é inaceitável – e que o esquecimento dessas pessoas seria um agudo fracasso moral.
Em terceiro lugar, o relatório do Pew está mais preocupado em documentar essa "crescente onda" das restrições à religião do que em explicar o que a está impulsionando. No entanto, muitas vezes, as sociedades atacam alguma coisa quando estão ou com medo disso ou bravas com isso, e assim as religiões podem se perguntar proveitosamente em que medida elas estão dando às pessoas uma boa razão para estarem com medo ou com raiva.
Por exemplo, independentemente de quão incipientes sejam as atuais propostas para banir a sharia em alguns Estados norte-americanos (afinal, Oklahoma ainda não está à beira de uma conquista muçulmana), elas são, no entanto, uma resposta a algo real – a ameaça global do radicalismo islâmico.
De uma forma diferente, se a polêmica dos mandatos de seguro sugere que alguns setores da sociedade norte-americana são menos deferentes para a Igreja Católica nos dias de hoje, isso provavelmente não é alheio aos escândalos de abuso sexual durante a última década. Francamente, a Igreja tornou a si mesma um alvo mais fácil.
Isso não quer dizer, é claro, que dois erros fazem um acerto. As correntes radicais do Islã não desculpam gestos legislativos vazios dirigidos contra os muçulmanos em geral, e a crise dos abusos sexuais também não deve abrir a temporada de caça às instituições católicas. No entanto, os líderes religiosos precisam reconhecer que, se existem passos que eles podem dar para melhorar o perfil de sua fé, sem trair suas crenças e sem entrar em modas populares, dar esses passos poderia ajudar a gerar um ambiente mais simpático para uma defesa da liberdade religiosa baseada em princípios.
Além disso, o relatório do Pew da última quinta-feira é um toque de despertar. A ameaça à liberdade religiosa não é um embuste e não se trata apenas de política. Ao contrário, é o drama humano do início do século XXI.
Para os nossos propósitos, a questão central é: como deveria ser um católico pensativo, unificado e construtivo? Quem oferecer uma resposta convincente terá muito a dizer sobre o futuro católico.
* * *
Eu já postei uma história-síntese sobre a viagem do Líbano, mas aqui vai um pensamento final.
Eu não sou uma dessas pessoas piedosas que vê a providência divina por trás de cada soluço da história, mas não é difícil ser tocado por alguns paralelos entre a viagem ao Líbano entre os dias 14 e 16 de setembro de Bento XVI e a viagem de João Paulo II em 2001 ao Cazaquistão, principalmente porque ambos chegaram no exato momento certo para projetar um pouco de simbolismo extremamente necessário.
O Cazaquistão é uma das ex-repúblicas soviéticas e, como o Líbano, é um país tanto com uma maioria muçulmana quanto com uma considerável minoria cristã. A viagem de João Paulo II ocorreu apenas 11 dias após os ataques terroristas às torres gêmeas do dia 11 de setembro, e o Cazaquistão não está muito longe da fronteira norte do Afeganistão, onde todos sabiam que os Estados Unidos iriam lançar operações militares em pouco tempo. Assim como com a viagem de Bento XVI ao Líbano, o que ocorreu em meio à guerra civil na Síria e os assassinatos de pessoal norte-americano na Líbia, houve uma grande especulação de que a viagem de João Paulo II ao Cazaquistão seria cancelada ou adiada por causa da situação de segurança, mas o pontífice seguiu em frente.
Em nenhum dos casos o momento histórico foi uma questão de planejamento astuto, porque, sejamos sinceros, o Vaticano não é exatamente designado para dar respostas rápidas. No entanto, como se viu, isso faz com que o papa, por duas vezes, tenha sido o primeiro líder ocidental a visitar uma nação muçulmana no rastro de um incidente que levantou profundas tensões entre o Islã e o Ocidente.
Em ambos os casos, a situação global emprestou um significado que, de outra forma, faltaria à viagem. Abstratamente, as viagens papais ao Cazaquistão ou ao Líbano pode, não parecer grandes notícias, mas, contra o pano de fundo das profundas ansiedades diante de um "choque de civilizações", ambas as viagens ofereceram uma contranarrativa que disse ao mundo: "Não precisa ser dessa maneira".
Tanto no Cazaquistão quanto no Líbano, imagens de solidariedade cristão-muçulmana foram notáveis. Quando João Paulo II celebrou uma missa ao ar livre em Astana, capital do Cazaquistão, no dia 23 de setembro de 2001, uma parte substancial da multidão era composta por jovens muçulmanos reverentes e respeitosos. Eu me lembro de andar entre eles e perguntar o que eles estavam fazendo em uma missa católica, celebrada simplesmente pelo papa, e sua resposta foi clara: "O papa veio ao nosso encontro vindo até aqui e queremos ir ao encontro dele".
Em um espírito semelhante, tanto clérigos muçulmanos quanto fiéis comuns estiveram presentes em quase todos os eventos do itinerário de Bento XVI no Líbano (até mesmo o Hezbollah colocou faixas de boas-vindas a Bento XVI), e ele retribuiu o favor. Durante um serviço de oração com patriarcas católicos orientais na noite do sábado, ele exortou os prelados a amar seus vizinhos muçulmanos e rezar por eles, porque, disse, "somos todos irmãos".
De fato, tanto o Cazaquistão quanto o Líbano refletem situações históricas e sociais únicas que não podem ser facilmente replicadas. Dentre outras coisas, os membros da minoria cristã no Cazaquistão não chegaram como conquistadores imperiais. Eles vieram acorrentados sob Stalin e foram acolhidos pela população muçulmana – uma memória que ninguém perdeu.
De fato, também, a afeição gerada pela viagem de João Paulo II de 2001 dificilmente foi o suficiente para parar duas guerras desencadeadas pelo 11 de setembro ou a propagação da violência terrorista. Da mesma forma, a viagem de Bento XVI ao Líbano provavelmente não irá deter os combates na Síria ou colocar o gênio de volta na garrafa das frustrações antiocidentais que varrem todos o Oriente Médio.
Dito isso, ambas as viagens, no entanto, propuseram exemplos convincentes de tolerância e de respeito em um momento em que o mundo, e especialmente essas regiões, precisava deles. No Líbano, Dom John Kozar, da Catholic Near East Welfare Association, disse que essa era "a Igreja no seu melhor estado", e eu me lembro de também ter pensado a mesma coisa depois da viagem Cazaquistão.
Quer se trate de providência ou apenas de sorte, às vezes os papas pegam a estrada exatamente no momento certo.
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Uma ''crescente onda'' de ameaças à liberdade religiosa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU