17 Setembro 2012
"O mal dos golfinhos é ter um 'índice de fofulência' alto. Não fossem eles tão fofos, as pesquisas seriam mais fáceis e saberíamos muito mais sobre eles. Só que a referência da maioria das pessoas são os filmes do Flipper e os parques aquáticos. O que esses bichos fazem na vida real é muito mais legal que a 'fofulência' deles."
A declaração do biólogo Marcos Santos, do Instituto Oceanográfico da USP, sai em tom de desabafo diante de um barco parado de turistas que, aos gritinhos de "oh, que fofos", tiram fotos. Como o motor permanece ligado, logo os bichos se afastam, mas não rapidamente o suficiente para decepcioná-los. Felizes da vida, os turistas partem, deixando para trás um grupo de cientistas e jornalistas desapontados.
A reportagem é de Giovana Girardi e publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 16-09-2012.
Em uma praia da Ilha do Cardoso, município de Cananeia, tentávamos observar um comportamento de caça desses animais que é diferente do mais habitual da espécie, foi recém-descoberto e traz fortes indícios de que é passado de uma geração a outra. Como os animais se afastaram, era preciso que tudo ficasse tranquilo para que eles voltassem.
Muito quietos, com a água até os joelhos e equipados com um hidrofone, que capta os sons por baixo d'água, aos poucos os pesquisadores voltam a perceber os apitos de comunicação dos golfinhos cada vez mais próximos. E também algo parecido com um zumbido - um sinal sonoro que emitem quando estão fazendo o que os cientistas chamam de ecolocalização. É como um radar, uma forma de interagir com um meio que é turvo. Assim podem saber onde estão os peixes, o fundo, a praia, nossas pernas.
Uma nadadeira surge aqui, outra ali. Logo três animais, possivelmente uma fêmea com seu filhote e outro adulto, ficam mais próximos, calmamente se movimentando a uma distância de uns 4 metros da praia. Eles descem e sobem para respirar, ritmados. Dá para perceber que nos veem, mas, como estamos quase imóveis, vão se acostumando com nossa presença.
De repente, a cadência é interrompida. O intervalo entre as respiradas fica mais longo e os pesquisadores escutam pelo hidrofone uma espécie de grunhido, seguido de um apito mais intenso e mais rápido. "Ela vai atacar", alerta Pedro Cristales, doutorando de Santos.
Como um míssil sob a água, o golfinho se aproxima rapidamente da praia, faz uma curva para ficar paralelo à faixa de areia e abocanha os peixes que tinham procurado refúgio nas partes mais rasas. Então se afasta um pouco para comer a presa. Logo depois, lá está de novo, parecendo calminho, até que volta a "atacar a praia", como dizem os pesquisadores. Em várias ocasiões, aquele vulto enorme passava bem na nossa frente e segundos depois só víamos os peixes sendo jogados para cima.
Estratégia arriscada
Apelidados de beach hunters (caçadores da praia), esses animais da espécie Sotalia guianensis (botos-cinza) são acompanhados desde 1997 por Santos. Os bichos chamaram sua atenção porque passavam muito mais tempo na praia. Essa espécie é costeira, então é normal se aproximar, mas o usual para esses botos é caçar em águas um pouco mais profundas, mesmo que estejam a uma distância visível da praia. Chegar muito perto da areia traz o risco grande de encalhar ou de ser machucado por uma embarcação.
Em algum momento talvez recente, alguns indivíduos devem ter percebido que as presas corriam em direção à praia, contando com a proteção que lhes conferiam as águas rasas. Arriscaram vir atrás. Os que não encalharam devem ter tido sucesso e visto vantagem na estratégia. Afinal, a presa fica encurralada e há poucos competidores.
"Não é qualquer um que faz, a relação custo/benefício entre o quanto se investe de energia e o quanto consegue de alimento tem de ser boa. Só vão fazer se isso for bom para eles", diz Santos.
O fato é que eles permaneceram por ali. Daí surgiu a hipótese de que poderia ser um caso de transmissão cultural entre gerações. No mundo animal, esse tipo de "herança" passada de pais para filhos é bem documentada em primatas, mas só começou a ser investigada em todo o mundo em cetáceos a partir dos anos 2000. No Brasil, é o primeiro caso publicado com essa sugestão. O artigo saiu no Brazilian Journal of Oceanography.
Santos e equipe já observaram pelo menos 11 animais que usam frequentemente aquela praia da Ilha do Cardoso e uma outra a cerca de 3 km de distância, na Ilha Comprida, para caçar a presa. Na maioria, fêmeas. Foram identificados só dois machos, mas um deles sumiu depois de um tempo e o outro continua atacando a praia, mas não é tão assíduo. E ele já foi visto a 20 km de distância, coisa que nunca aconteceu com as fêmeas.
Segundo o pesquisador, há algumas hipóteses de que esse comportamento poderia ser enviesado para as fêmeas porque talvez os filhotes do sexo feminino passem mais tempo com a mãe que os machos, aprendendo, assim, a capturar as presas como elas. Essa tendência já foi observada, por exemplo, em espécies de golfinhos da Austrália, cujas fêmeas também aplicam uma estratégia diferenciada para capturar a presa.
Santos teoriza que caçar na praia pode ainda trazer uma vantagem para as mães com cria. "Ela fica ali com ele a tiracolo, sai para atacar a praia e volta rápido com alimento. É prático. Em águas mais profundas, e no meio de um grupo grande de animais, se ela mergulha para pegar peixes que ficam no fundo, o filhote fica mais vulnerável, pode acabar sendo ferido por outros adultos machos", explica.
A presença na praia também contribui para o aprendizado dos pequenos. "Às vezes vemos o filhote indo junto com a mãe na hora do ataque. Em outros momentos, ele fica para trás, mas percebe o sucesso da captura, vê que ela vai para o raso e volta com o peixe. Tenta fazer depois."
No início da semana, quando a reportagem acompanhou os pesquisadores, foi possível ver uma prova disso. Uma fêmea conhecida dos pesquisadores e seu filhote começaram o ritual, respirando sincronizados. Logo, ela fez seu ataque. Para nossa surpresa, porém, houve um outro movimento igual logo na sequência. "É o filhote, é o filhote", gritou Santos. Ele já aprendeu o caminho.
Morte de filhotes ameaça continuidade da tradição
Uma peça fundamental para mostrar que o comportamento dos beach hunters de Cananeia é passado para as próximas gerações é ver se as crias crescidas continuam "atacando" as praias. O melhor indicador que Santos teve disso foi com um filhote que ganhou o nome de Tortinha (porque ela nasceu com a nadadeira dorsal tombada para a esquerda), hoje com 12 anos. Ela é filha da fêmea Dez, uma beach hunter conhecida do pesquisador desde 1997 e que continua até hoje na ativa.
Tortinha não só aprendeu a técnica, como desenvolveu estratégias próprias. É o chamado waiting. Em vez de ficar só patrulhando de longe e partir para a praia num ataque rápido, ela se posiciona bem perto do raso, com a cauda virada para a areia. Ali ela espera os peixes chegarem para atacar.
O que se sabe até agora sugere fortemente que há a transmissão cultural, mas é preciso acompanhar mais animais ao longo de gerações. E, nesse caso, não só o tempo de estudo é um desafio. Segundo o biólogo Marcos Santos, o fluxo cada vez mais intenso de turistas nas duas praias ameaça essa tradição.
"Eu já vi fêmeas com filhotes no inverno, mas ao voltar depois do verão elas estavam sozinhas. Não deu tempo de eles ficarem independentes. Devem ter morrido", diz. "Para conseguir acompanhar os animais, é preciso proteger. Não tem como acelerar esse processo. Se os filhotes não vingarem e os adultos morrerem, esse conhecimento vai se perder."
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Boto aprende a caçar na praia e transmite cultura para filhote - Instituto Humanitas Unisinos - IHU