Por: Jonas | 11 Agosto 2012
Após o pronunciamento condenatório do Ministro do Interior da Espanha, a respeito do saque feito a um supermercado, em Écija, para alimentar pessoas necessitadas, o teólogo José Ignácio González Faus direcionou-lhe uma carta aberta, publicada pelo sítio Religión Digital, 09-08-2012. A tradução é do Cepat.
Eis a carta.
Meu querido senhor Ministro, acabo de ouvir pelo rádio suas declarações a respeito do que ocorreu no supermercado de Écija. Você reconhece que há muita gente passando mal, mas argumenta com o clássico axioma moral: o fim não justifica os meios. Como o ideário de seu partido apela para os “princípios do humanismo cristão”, permito-me recordá-lo que segundo esses princípios naquela ação não houve nenhum uso dos meios moralmente ilegítimos (neste momento, não entro em sua legalidade).
Os princípios do humanismo cristão proclamam que “em casos de extrema necessidade todas as coisas são comuns” (in extrema necessitate omnia sunt communia). Porque “a distribuição e apropriação das coisas que derivam do direito humano não podem impedir que estas coisas socorram as necessidades dos homens. Por isso, todo aquele que tem demais, deve aos pobres para seu sustento. E se a necessidade de alguém é tão grave e tão urgente que é preciso socorrê-la com a primeira coisa que se tem na mão..., então, qualquer um pode aliviar a sua necessidade com os bens dos demais, tanto retirando isso publicamente, como secretamente; e esta ação não se reveste com o caráter de roubo, nem de furto”.
Estas palavras não são do prefeito de Marinaleda, nem do inominável Karl Marx. Elas são de Santo Tomás de Aquino, um dos pilares desse humanismo cristão que vocês dizem seguir. E podem ser encontradas na Summa Theologica.
Para estas palavras, o cardeal Cayetano, grande comentador de Tomás, acrescentará que um juiz pode distribuir, entre os necessitados, o dinheiro dos ricos. Pergunto-me, pois, se vocês não estão no atoleiro de aplicar a lei contra alguns princípios que dizem regular o ideário de seu partido, ficando como mentirosos diante da cidadania.
Além disso, entendo que se você defende esse princípio de que o fim não justifica os meios, imediatamente, se voltará contra toda a política deste governo: para um fim que para ele é legítimo e necessário, como é o de abaixar nossa dívida, o governo tem recorrido a meios imorais (temo que talvez, também, anticonstitucionais) como são os de privar muitas pessoas de direitos constitucionais, de rendimentos mínimos indispensáveis, aproximando-os da fome, desespero, falta de assistência médica indispensável, tendo que recorrer a algumas “Cáritas” já transbordadas e a ficar sem moradia, após um enorme esforço, e acima com uma dívida impagável para a qual nem sequer vale o princípio lógico da dação por pagamento.
A maioria dos meios aplicados por vocês para saldar a dívida espanhola são imorais e não se justificam por esse fim tão legítimo. Recentemente, o presidente do Governo falou de possíveis novos cortes nessa mesma direção, para reunir 65 bilhões de imprescindíveis euros. Seu governo deve saber que na Espanha há 16 pessoas que sozinhas possuem fortunas próximas dos 60 bilhões. Somente 16 pessoas entre os mais de quarenta milhões de espanhóis. Portanto, não acredito que à luz do humanismo cristão, possa existir dúvida sobre quais tem sido os meios legítimos.
Porque, de outro lado, repete-se agora que todo o dinheiro que a União Europeia nos emprestará draconianamente é “para tapar os buracos dos Bancos”. Já tínhamos ouvido mil vezes que o problema de nossa dívida era, sobretudo, de caráter privado e não público; e agora vemos isso confirmado ao sabermos para onde irão esses primeiros 30 bilhões, que esperamos receber no próximo mês. Os Bancos e seus furos foram efetivamente os primeiros causadores de nosso desastre atual (sem negar, agora, outros fatores externos à Espanha).
E eles foram porque, para um fim de legitimidade muito discutível (como era o de se enriquecer mais e mais), puseram em jogo meios absolutamente ilegítimos, outorgando empréstimos que sabiam que não poderiam ser pagos, mas que esperavam ser ressarcidos com expropriações forçadas muito mais abundantes do que o que foi expropriado no supermercado de Écija.
Você sabe quantas moradias inúteis, hoje, são propriedades dos Bancos? Um ministro do Interior deve conhecer esse detalhe. Como saberá, também, que muitas pessoas idosas e não muito letradas, que tinham no Bankia algumas reservas de seis mil ou dez mil euros, toda a sua fortuna, foram enganadas ao assinarem um papel que “seria sua solução”, que converteram seus depósitos em ações, robustecendo o Banco e debilitando-as, impedindo-as de dispor de seu dinheiro agora que necessitam.
Se você está decidido a não permitir que para fins legítimos em si, sejam usados meios ilegítimos, não duvido de que, antes do prefeito de Marinaleda e de seu grupo, você levará aos tribunais uma série de banqueiros de cujos nomes prefiro não recordar, para esperar que a justiça os investiguem.
Ou melhor: deixe-me dizer que eu duvido muito que você se atreva a fazer isso que seria muito justo, pois são esses Bancos que financiam boa parte de suas campanhas eleitorais que, da maneira como estão, são outros meios ilegítimos que não se justificam pela finalidade de ganhar algumas eleições. E, é claro, isto não vale apenas para seu partido, mas também para outros do Estado.
Posso me equivocar como todo ser humano, todavia sempre tive a impressão de que, em seu partido, costumam argumentar apelando para os grandes indiscutíveis princípios universais, mas que não se aplica ao caso concreto que se discute. E que, além disso, costumam exigir dos demais aquilo que não exigem de vocês mesmos. Devo confessar que suas declarações, que acabo de ouvir pelo rádio, confirmam mais uma vez essa minha impressão.
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"Na extrema necessidade todas as coisas são comuns", lembra teólogo jesuíta a ministro espanhol - Instituto Humanitas Unisinos - IHU