02 Agosto 2012
Hoje em dia, um homem merece as suas condecorações e prova a sua lealdade à hierarquia atacando um grupo que a hierarquia percebe como uma ameaça à sobrevivência, mesmo que a ameaça se baseie em nada mais do que medo e paranoia.
A análise é da teóloga norte-americana Jamie L. Manson, mestre em teologia e ética sexual pela Yale Divinity School. Suas colunas no jornal National Catholic Reporter (NCR) renderam-lhe o prêmio da Catholic Press Association de Melhor Coluna/Comentário Regular de 2010. O artigo foi publicado no sítio do jornal NCR, 31-07-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Se a elevação da semana passada do bispo Salvatore Cordileone, de Oakland, Califórnia, nos EUA, a arcebispo de San Francisco prova alguma coisa é que atacar a igualdade do casamento coloca um homem na pista rápida para a promoção na Igreja Católica Romana. Um rápido levantamento das nomeações mais recentes e de mais alto perfil da hierarquia revela um denominador comum.
A tendência ficou evidente em março, quando o bispo William Lori, de Bridgeport, Connecticut, recebeu ordens papais para assumir as rédeas da histórica arquidiocese de Baltimore. Lori, o antigo capelão dos Cavaleiros de Colombo [maior organização de leigos católicos homens do mundo], sem dúvida recebeu a sua recompensa como presidente do Comitê Ad Hoc sobre Liberdade Religiosa da Conferência dos Bispos dos EUA (USCCB, na sigla em inglês).
Embora a batalha pela liberdade religiosa tenha se associado amplamente com a contracepção, os bispos sempre incluíram o casamento entre pessoas do mesmo sexo como uma clara ameaça aos seus direitos da Primeira Emenda da Constituição norte-americana. Dos seis sinais de ataque à liberdade religiosa indicados pelo Comitê, dois têm relação com a igualdade no casamento: a recusa do Departamento de Justiça a defender a Lei de Defesa do Casamento e a "estreita isenção religiosa" no projeto de lei sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo do Estado de Nova York. Lori, ainda fervendo dos nervos por causa da bem-sucedida aprovação do projeto de lei pela igualdade no casamento em Connecticut em 2008, ficou, sem dúvida, muito satisfeito em assumir a causa.
Poucas semanas após a promoção de Lori, o arcebispo J. Peter Sartain, de Seattle, foi notícia nacional por ter exortado os párocos de sua diocese a usar suas paróquias para coletas assinaturas em apoio a uma revogação da lei recém-aprovada do Estado de Washington pela igualdade no casamento. Apenas 10 dias depois dessas manchetes, Sartain praticamente se tornou um nome familiar quando foi escolhido para chefiar a "reforma" da Leadership Conference of Women Religious (LCWR). Dada a reação que a repressão à LCWR criou, essa pode ser uma honraria duvidosa, mas, mesmo assim, é uma posição poderosa e de alto perfil.
Antes de suas respectivas nomeações, cada um desses homens declarou-se publicamente um guerreiro cultural pronto para lutar contra casais de lésbicas e gays que buscam honrar formalmente seus compromissos e se proteger legalmente.
Retribuição
Parece quase haver um elemento de retribuição nessas promoções. O zelo anti-LGBT de Lori se desencadeou em um Estado em que o governador, Martin O'Malley, católico, foi fundamental para aprovar a igualdade no casamento de Maryland. Sartain foi encarregado de liderar a hostil tomada de poder sobre as religiosas que estavam com problemas por (dentre apenas algumas outras razões) não impulsionarem a agenda da Igreja contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo.
É possível interpretar as elevações de Lori e de Sartain como vinganças por parte do Vaticano. Mas a nomeação de Cordileone é francamente combativa. Durante anos, Cordileone, silenciosamente, deixou sua marca como o mais feroz oponente dentro da USCCB ao casamento entre pessoas do mesmo sexo. No ano passado, seu trabalho lhe rendeu o papel de presidente do Subcomitê pela Promoção e Defesa do Casamento, dos bispos dos EUA. E agora ele foi escolhido para ser o pastor-chefe de uma cidade conhecida pela sua proeminente população LGBT proeminente e pelo seu histórico papel no movimento de libertação LGBT.
As rixas de Cordileone com os gays e lésbicas católicos geraram manchetes no jornal NCR há poucas semanas. Em seu artigo do dia 25 de junho, Brian Roewe traçou a investigação em curso de Cordileone sobre a Associação Católica para o Ministério de Lésbicas e Gays (CALGM, na sigla em inglês), uma pequena organização de ministérios diocesanos, paroquiais e universitários dedicados à questão pastoral e ao apoio para os gays e lésbicas católicos, seus pais, suas famílias e seus amigos. Como o grupo tem sua sede em Berkeley, Califórnia, eles operam sob a supervisão de Cordileone, que atuava como bispo de Oakland desde 2009.
Dentre as preocupações de Cordileone, estava o uso do grupo das palavras "gay e lésbica", que, segundo ele, "não estão no vocabulário da Igreja". No entanto, uma leitura dos sites oficiais da Arquidiocese de Chicago e da Arquidiocese de Los Angeles, sem falar da própria diocese de Oakland de Cordileone, mostra um claro uso do termo "ministério de gays e lésbicas".
A investigação culminou com a tentativa do bispo de forçar cada membro do conselho do CALGM a assinar um “Juramento de integridade pessoal na crença e prática referente aos ensinamentos da Igreja Católica”. Segundo Roewe, o juramento "incluiu uma série de declarações 'eu afirmo e acredito' referentes às definições de matrimônio, purgatório e inferno; a crença de que a Comunhão é acessível apenas em estado de graça; e as posições da Igreja sobre a castidade e a clonagem, dentre outros".
O conselho do CALGM se recusou a assinar o juramento, e é aí que a história de Cordileone parou, até o anúncio na sexta-feira passada de sua promoção para toda a baía.
"Pai da Proposition 8"
A luta de Cordileone contra o CALGM parece menor em comparação com os seus extraordinários esforços contra a igualdade no casamento durante o tempo em que atuava como bispo auxiliar em sua cidade natal, San Diego. Em uma matéria de capa em agosto de 2009 do jornal East Bay Express, o jornalista Chris Thompson narrou os trabalhos de Cordileone contra a igualdade no casamento na Califórnia, que são tão extensos que o jornal apelidou o bispo de "Pai da Proposition 8" [emenda aprovada que estabelece que "apenas o casamento entre um homem e uma mulher é válido ou reconhecido na Califórnia"].
"Como bispo auxiliar de San Diego, Cordileone desempenhou um papel indispensável na concepção, no financiamento, na organização e, finalmente, na vitória da campanha para aprovar a Proposition 8", escreve Thompson.
Se a investigação jornalística de Thompson for acurada, foi Cordileone e um pequeno grupo de lideranças católicas que decidiram pressionar por uma proibição constitucional do Estado ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, que mais tarde seria conhecida como Proposition 8. Foi Cordileone quem, pessoalmente, chamou Maggie Gallagher, presidente da Organização Nacional pelo Casamento, para ajudar no esforço para coletar assinaturas. Foi Cordileone que não só criou parcerias com Igrejas evangélicas, mas também até ajudou a esboçar a estratégia e a mensagem retórica da campanha pela Proposition 8.
Talvez o mais perturbador é que Cordileone fez tudo isso insistindo que sua abordagem com relação aos gays e lésbicas é pastoral. Charles LiMandri, conselheiro-geral do capítulo californiano da Organização pelo Casamento, credita o sucesso da Proposition 8 ao ar de compaixão do bispo.
"Ele tentou abordar essa questão de uma maneira amorosa, e eu acho que isso fez uma diferença real", disse Thompson. "Ele não foi crítico. As pessoas gays e lésbicas são filhos de Deus, e ele sempre os acolheu na Igreja".
Mas as companhias que Cordileone manteve ao longo do movimento pela Proposition 8 não foram tão sensíveis com relação à comunidade LGBT. Na noite antes da eleição de novembro de 2008, segundo Thompson, o bispo participou de uma reunião de reavivamento fundamentalista no Qualcomm Stadium, em San Diego, que incluiu participações do líder da Focus on the Family, James Dobson, e Tony Perkins, do Family Research Council, assim como de inúmeros testemunhos de "ex-gays" e "ex-lésbicas".
Depois da aprovação da Proposition 8, Cordileone apareceu no programa de rádio católico A Body of Truth e praticamente exultou pela sua vitória e pela forma em que os ativistas pelos direitos LGBT foram "pegos dormindo": "Enquanto não coletamos 200 mil assinaturas, eles não se deram conta de que iríamos até o fim", disse ele ao padre Thomas Loya, radialista.
No fim do programa, enquanto Cordileone refletia uma última vez sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo, até mesmo sua retórica começou a soar fundamentalista.
"O ataque final do Maligno é o ataque sobre o casamento", disse ele a Loya. "E, mais uma vez, os evangélicos entendem isso. Eles entendem que este é um ataque do Maligno contra a instituição central".
"Mentalidade de bando"
É muito provável que o papel de Cordileone como o "Pai da Proposition 8" levou-o ao cargo em Oakland, como presidente do subcomitê da USCCB sobre a defesa do casamento, e, finalmente, à sua elevação a arcebispo de San Francisco, uma cidade em que 75% da população votaram contra a Proposition 8.
Com essa última nomeação, o Vaticano solidifica a sua abordagem de "mentalidade de bando" com relação às promoções. Hoje em dia, um homem merece as suas condecorações e prova a sua lealdade à hierarquia atacando um grupo que a hierarquia percebe como uma ameaça à sobrevivência, mesmo que a ameaça se baseie em nada mais do que medo e paranoia.
Essa paranoia, entretanto, também pode estar cedendo à desilusão. Eu tenho certeza de que existem algumas pessoas dentro do Vaticano e dentre os leigos e leigas que acreditam que essa nomeação demonstrará o compromisso da Igreja Católica Romana com a robusta e intransigente liderança "nós vamos mostrar a eles quem é que manda".
Mas, na realidade, para a maioria dos leigos e leigas católicos do país que apoiam a igualdade no casamento, a promoção de Cordileone é apenas mais uma prova evidente da descida cada vez mais profunda da hierarquia à mesquinhez, à malevolência e à insensibilidade pastoral.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
O novo arcebispo de San Francisco e a Proposition 8 - Instituto Humanitas Unisinos - IHU