23 Julho 2012
Com certeza, eu não sou Nostradamus. Apenas para citar um exemplo dos meus fracassos como prognosticador, em 1999 eu publiquei uma biografia do então cardeal Joseph Ratzinger, contendo quatro razões pelas quais a sua eleição como papa era improvável. Estamos agora, é claro, no oitavo ano do seu reinado. Há um mês, no entanto, eu finalmente consegui acertar uma.
A análise é de John L. Allen Jr., publicada no jornal National Catholic Reporter, 20-07-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
No dia 22 de junho, prevendo uma avaliação da transparência financeira do Vaticano pelo Moneyval, o órgão contra a lavagem de dinheiro do Conselho da Europa, eu escrevi: "O relatório, provavelmente, está destinado a provocar manchetes confusas e conflitantes sobre o quão bem o Vaticano se saiu".
Como sugestão, estas manchetes circularam logo após a publicação do relatório na quarta-feira 18 de julho:
Às vezes, na realidade, a justaposição vinha na mesma notícia. O jornal italiano Il Messaggero publicou uma manchete ("Moneyval: Ainda pouca transparência no Banco do Vaticano"), que estava em desacordo com o seu próprio parágrafo de abertura ("O Banco do Vaticano não é totalmente transparente, mas quase, diz o relatório").
Por que a confusão? Na realidade, o Vaticano provavelmente fez tão bem quanto era razoável de se esperar, mas o relatório também contém muitas críticas. Como resultado, é um teste de Rorschach para atitudes mais amplas, aberto para ser desviado para qualquer direção que alguém se sinta com vontade.
Chegaremos aos resultados em um momento, mas primeiro uma palavra sobre o significado histórico do processo. Sem dúvida, a expressão é: "divisor de águas".
Nunca antes o Vaticano abriu seus sistemas financeiros e legais a esse tipo de avaliação externa e independente, com os resultados sendo tornado públicos. Em séculos passados, se as autoridades seculares aparecessem para realizar tal revisão, elas teriam sido combatida com unhas e dentes. Para o Moneyval, o tapete vermelho foi estendido, ao invés.
O advogado norte-americano Jeffrey Lena, assessor do Vaticano para o processo do Moneyval, disse-me que os avaliadores foram capazes de examinar registros de cooperação judicial e diplomática, certificações antilavagem de dinheiro, cartas de gestão de contabilidade, registros de fundação e outros documentos legais confidenciais. Dizer que o Vaticano tem sido tradicionalmente relutante para conceder tal acesso é um pouco como dizer que o Tea Party é morno com relação a Obama – em outras palavras, isso realmente não faz justiça à profundidade de emoção envolvida.
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Em poucas palavras, aqui está um resumo dos principais achados do Moneyval.
Os avaliadores constataram que o Vaticano "percorreu um longo caminho em um período muito curto de tempo" e disseram que "a Santa Sé e as autoridades do Estado da Cidade do Vaticano cooperaram estreitamente com os avaliadores e reagiram rapidamente para remediar uma série de deficiências ressaltadas durante a primeira visita in loco".
A avaliação reflete a situação entre novembro de 2011 e janeiro de 2012, e o relatório louva o Vaticano por continuar "seguindo em frente para aprimorar e modernizar suas leis e práticas" desde aquela época.
No entanto, os avaliadores também constataram que "questões importantes ainda precisam ser abordadas a fim de demonstrar que um regime totalmente eficaz foi instituído na prática".
À luz da história acidentada do Vaticano em termos de escândalos financeiros, esta conclusão parece especialmente chave: "Embora tenha havido recentes alegações infundadas de corrupção na mídia", afirma o relatório, "não há evidência empírica de corrupção ocorrendo dentro do Estado da Cidade do Vaticano".
(Aliás, a mídia não inventou simplesmente essas alegações. O atual embaixador do Vaticano em Washington escreveu uma carta há dois anos, enquanto ele era uma alta autoridade do Estado da Cidade do Vaticano, queixando-se ao papa sobre "tantas instâncias de corrupção e de desonestidade". A correspondência veio à tona em meio ao escândalo dos vazamentos do Vaticano, embora tenha sido descrito como exagerado ou impreciso por outras autoridades.)
Em geral, o Moneyval constatou que "a ameaça de lavagem de dinheiro e de financiamento do terrorismo é muito baixa". O relatório disse que três fatores, no entanto, aumentam o risco:
O Vaticano disse já ter iniciado uma avaliação de risco nessas áreas, que presumivelmente será analisada durante a próxima rodada de revisão do Moneyval.
Ao avaliar os Estados europeus, o Moneyval utiliza as 49 recomendações estabelecidas pelo Grupo de Ação Financeira, fundado pelo G8. Quatro foram julgadas não aplicáveis ao Vaticano, enquanto ele recebeu notas altas em 22 e notas baixas em 23. O mais importante é que o Vaticano foi considerado "compatível" ou "largamente compatível", as maiores marcas disponíveis, em nove das 16 padrões "fundamentais e centrais".
Esses resultados colocam o Vaticano exatamente no meio do pacote mundial, com resultados semelhantes a recentes avaliações da Alemanha, da Itália e da República Tcheca. O Vaticano realmente recebeu melhores pontuações nas recomendações "fundamentais e centrais" do que 19 dos 29 países que o Moneyval avaliou, e a maioria desses Estados já passaram por dois ciclos de avaliação anteriores.
Em outras palavras, o Vaticano quase acabou no terço superior das nações europeias na primeira vez que fez o teste.
Como resultado, o Vaticano não vai ser colocado nos Procedimentos de Aumento de Conformidade, designados para os Estados com problemas – o mais perto que eles chegam de dizer que um país "fracassou". Ao contrário, o Vaticano estará sujeito ao processo de acompanhamento normal para os Estados que são vistos rumo à direção certa.
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Em termos de deficiências, o Moneyval constatou que o "papel, responsabilidade, autoridade, poderes e independência" de uma nova unidade de vigilância financeira criada pelo Papa Bento XVI em 2010 precisam ser esclarecidos e fortalecidos. Na época, a criação dessa unidade de vigilância, chamada de Autoridade de Informação Financeira, foi apontada como um marco na campanha de Bento XVI por uma glasnost financeira.
Segundo o relatório, a Autoridade de Informação Financeira não tem poderes adequados para desempenhar as suas funções. Ela também não possui a capacidade de emitir sanções com relação à APSA, o Administração do Patrimônio da Sé Apostólica, uma das duas principais entidades financeiras do Vaticano, juntamente com o Instituto para as Obras de Religião, popularmente conhecido como "Banco do Vaticano".
Os avaliadores consideraram que a Autoridade de Informação Financeira ainda não realizou nenhuma inspeção in loco, nem fez qualquer teste de amostra de arquivos. O relatório também disse que a unidade de vigilância ainda não realizou nenhuma inspeção da APSA nem do Banco do Vaticano, apesar do fato de que as autoridades do banco solicitaram uma. Além disso, os avaliadores disseram que o número de relatórios que a Autoridade de Informação Financeira recebeu sobre transações suspeitas é baixa, mesmo tendo em conta a pequena dimensão do setor financeiro do Vaticano.
Como resultado do escândalo dos vazamentos do Vaticano, sabemos que preocupações semelhantes circularam internamente.
No início deste ano, o cardeal italiano Attilio Nicora, presidente da unidade de vigilância, escreveu um memorando confidencial expressando preocupação de que as limitações de sua autoridade por parte da Secretaria de Estado poderiam ser vistas como um "passo atrás" na reforma e poderiam "criar um grave alerta na comunidade internacional".
Por outro lado, alguns informantes do Vaticano afirmam que nem Nicora é inocente. Até certo ponto, eles dizem, a unidade de vigilância tem sido lenta para deslanchar, não por causa da resistência interna, mas porque a equipe escolhida não sabia muito sobre os procedimentos internos do Vaticano.
O Vaticano disse que as novas regulações que fornecem poderes severos de inspeção para a Autoridade de Informação Financeira estão a caminho. As autoridades dizem que é mais importante que essas regulações sejam eficazes, e não tanto que cheguem rápido, mas que, quando forem emitidas, eles juram, irão satisfazer as normas internacionais.
O Moneyval também propôs que a unidade de vigilância não deve inspecionar apenas as próprias entidades institucionais do Vaticano, mas também as 46 organizações sem fins lucrativos sediadas dentro do Vaticano. Elas são, em sua maioria, pequenas fundações criadas por um cardeal ou por outra figura sênior para promover algum projeto de estimação, tais como o diálogo inter-religioso, e em grande parte não são regulamentadas.
Sobre o Banco do Vaticano, o relatório do Moneyval sugeriu que ele seja submetido a uma supervisão independente. A falta dessa supervisão, advertiu-se, "apresenta grandes riscos para a estabilidade do pequeno setor financeiro da Santa Sé e do Estado da Cidade do Vaticano".
Embora haja uma comissão de cardeais que governa o banco, os avaliadores sentem, aparentemente, que, como a comissão tecnicamente faz parte da instituição, ela não é um supervisor objetivo. Em parte, isso reflete a eterna confusão sobre se o Instituto para as Obras de Religião é ou não é um "banco". Os bancos comerciais normalmente estão sujeitos a um órgão regulador externo, como o FDIC nos Estados Unidos, enquanto o IOR é uma entidade pública sem fins lucrativos.
A questão da supervisão é especialmente atual no rastro da demissão do fim de maio do economista italiano Ettore Gotti Tedeschi como presidente do banco. Gotti Tedeschi era visto por alguns como um símbolo do novo compromisso do Vaticano com a transparência, embora autoridades insistam que a sua remoção foi uma questão pessoal relacionada com o que eles descrevem como um comportamento "errático" de, basicamente, não fazer o seu trabalho.
A nomeação de um novo presidente para o Instituto para as Obras de Religião era inicialmente esperada rapidamente, mas alguns observadores acreditam agora que ela não vai acontecer até que Bento XVI retorne de suas férias de verão em Castel Gandolfo, no início de setembro.
O Moneyval também recomendou que um estatuto formal deve estabelecer os tipos de pessoas legais e naturais elegíveis para serem titulares de contas no banco, embora aplaudiu seus esforços internos para revisar o seu banco de dados de pouco mais de 33 mil contas – uma inspeção que, na realidade, é anterior ao processo do Moneyval.
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Na quarta-feira de manhã, a autoridade vaticana que liderou a equipe de trabalho na avaliação do Moneyval, o monsenhor italiano Ettore Balestrero, deu uma entrevista à imprensa. Balestrero chamou o relatório não de "um fim, mas sim um marco em nossos esforços contínuos" e disse que o Vaticano assume "tanto os elogios quanto as críticas com seriedade".
Concretamente, Balestrero disse que o Vaticano está aberto para fazer a supervisão financeira em separado da coleta de informações, como o Moneyval sugeriu, a fim de proteger a independência da revisão e para assegurar que as mesmas pessoas não estejam atuando tanto como inspetoras quanto como inspecionadas.
Em ao menos um ponto, no entanto, Balestrero deu a entender que o Vaticano não vai se render.
O relatório observou que o Vaticano insiste na negociação de um "memorando de entendimento" bilateral com outros países antes de compartilhar informações financeiras. Nos bastidores, as autoridades do Vaticano há muito tempo dizem temer que a Itália possa solicitar informações do Banco do Vaticano a fim de dar aos bancos italianos uma vantagem comercial injusta, e por isso quer um acordo para nivelar o campo de jogo.
Balestrero disse na quarta-feira que essa continua sendo a "abordagem certa para o Vaticano, que, como uma jurisdição menor, deseja interagir em termos justa e totalmente recíprocos com outros países".
Ele também descreveu os esforços para satisfazer os padrões internacionais de acompanhamento do movimento do dinheiro como, "acima de tudo, um compromisso moral antes de técnico". Ele também sugeriu que o recente compromisso do Vaticano à transparência deve "guiar e orientar as organizações religiosas católicas em todo o mundo".
Aqui está o Resumo Executivo do Moneyval, de 24 páginas [em inglês].
Para os devotos dos arcanos financeiros e jurídicos, aqui está o relatório completo de 241 páginas [em inglês].
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Saindo dos detalhes, aqui estão três observações finais sobre o significado do relatório do Moneyval.
Primeiro, os jornalistas provavelmente precisam atualizar seus esboços de obituário do Papa Bento XVI. Até este ponto, o consenso era de que Bento XVI é um papa professor, e não governador, e que a sua desatenção à gestão permitiu que uma série de acidentes acontecesse. Ainda há verdade nessa avaliação, mas agora temos avaliadores seculares independentes que dizem que um progresso considerável no rigor financeiro foi feito sob a observação de Bento XVI.
Bento XVI também lançou várias reformas sobre os escândalos de abuso sexual do clero, e embora a sua eficácia ainda seja debatida, poucos observadores duvidam de que o Vaticano está em um lugar melhor hoje do que há sete anos. Seu histórico, portanto, deve ser reconsiderado: talvez ainda principalmente um papa ensinante, mas também um papa que deu passos largos na gestão em algumas áreas-chave ao menos.
Como nota de rodapé, pode-se dizer algo semelhante sobre o principal vice de Bento XVI, o cardeal italiano Tarcisio Bertone, secretário de Estado. Com justiça ou não, Bertone tomou uma surra da imprensa nos últimos sete anos pela sua suposta incompetência, relacionada a incêndios espetaculares como o caso do bispo negador do Holocausto. Desta vez, porém, a equipe de Bertone conseguiu evitar uma derrota.
Em segundo lugar, Balestrero é claramente uma estrela vaticana em ascensão. Atualmente como sub-secretário para as Relações com os Estados e visto como alguém que goza de um forte apoio de Bertone, Balestrero vai receber grande parte do crédito do resultado do Moneyval.
Nascido em Gênova, Balestrero, 45 anos, é um diplomata que atuou na Coreia, na Mongólia e na Holanda antes de voltar a trabalhar na Secretaria de Estado em 2001. Conhecido como alguém competente e de trato fácil, Balestrero gosta de dizer que é "meio norte-americano", porque sua mãe é de Nova York. Ele é um emblema de uma nova geração de autoridades do alto escalão do Vaticano, confortáveis no mundo fora da Igreja, incluindo a tecnologia, as práticas empresariais e as plataformas midiáticas do século XXI.
Deste ponto em diante, os observadores do Vaticano provavelmente não serão capazes de falar sobre Balestrero sem se perguntar: será que estamos assistindo ao desenvolvimento de um futuro secretário de Estado?
Em terceiro lugar, é a natureza do sistema católico que tudo o que um papa faz, para o bem ou para o mal, dê o tom. Ao submeter o Vaticano a uma revisão do Moneyval, Bento XVI entregou aos reformadores financeiros de todo o mundo católico um novo clube com o qual se possa derrotar autoridades recalcitrantes.
A partir de agora, qualquer bispo ou superior religioso que resista a uma auditoria independente; qualquer pároco que proceda lentamente os controles apropriados sobre as receitas da cesta da coleta; qualquer diretor de escola, hospital ou instituição de caridade católicos que utilize sem a devida atenção os livros contábeis; qualquer pessoa com autoridade, de fato, que dá de ombros às questões de gestão de dinheiro; inevitavelmente irão enfrentar a questão: "Se o papa está aberto às críticas, porque você não?".
Resta saber se haverá uma mudança radical na prestação de contas, mas mesmo em perspectiva já se vê que o processo do Moneyval pode trazer consequências não apenas para o Vaticano, mas para a Igreja de todas as partes.
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Um divisor de águas na transparência financeira do Vaticano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU