02 Julho 2012
"O paradigma atual está assentado sobre o poder como dominação da natureza e dos seres humanos. Não devemos esquecer que ele criou a máquina de morte, que pode destruir a todos nós e a vida de Gaia. As virtualidades construtivas deste caminho parecem ter-se esgotado, embora ele seja ainda dominante", escreve Leonardo Boff, filósofo, teólogo e escritor, em artigo publicado no Jornal do Brasil, 01-07-2012.
E ele cita Rose Marie Muraro: "Quando desistirmos de ser deuses, poderemos ser plenamente humanos, o que ainda não sabemos o que é, mas que já o tínhamos intuído desde sempre”.
Eis o artigo.
Tempos atrás publiquei neste espaço matéria semelhante a esta. Retomo-a agora, pois se tornou mais atual do que antes, após a Rio+20. O grande tema da Conferência da ONU era Que futuro queremos. O documento final, entretanto, não nos fornece o mapa nem os meios de percorrê-la. Ele é medroso, sem ambições e sem sentido ético e espiritual da história humana. Refém de uma visão reducionista e até materialista da economia, não forjou um novo e necessário software social e civilizacional que nos desse esperança de um futuro que não fosse simplesmente o prolongamento do passado e do presente. Este deu tudo o que tinha que dar. Levá-lo teimosamente avante é empurrar-nos para a borda de um abismo que se abre lá na frente, num tempo não muito distante.
Há um complexo de crises em curso, particularmente a do aquecimento global, da insustentabilidade do planeta Terra e ultimamente da econômico-financeira, atingindo o coração dos países opulentos, sem saber como saírem dela. Há ainda o crescimento do número de pobres e miseráveis que em 2008 eram 860 milhões e que agora, devido à crise global, passaram a um bilhão e duzentos milhões. Muitos analistas desenham cenários dramáticos para o próximo futuro da Terra e da Humanidade. Há uma guerra total, movida contra a Terra viva (Gaia) pelas elites mundiais e pelas megaempresas multilaterais, pela forma como produzem e acumulam, pondo em risco o sistema-vida e o sistema-civilização. Há poucas chances para uma paz duradoura e uma globalização solidária.
Tudo isso nos suscita uma angustiante pergunta: que virá depois da Rio+20?
Façamos algumas constatações. Nos últimos anos, consolidou-se a aldeia global; ocupamos praticamente todo o espaço terrestre e exploramos a natureza até os confins da matéria e da vida, com a utilização da razão instrumental-analítica; ocorreu um processo de acumulação capitalista como nunca antes da história; um pequeno grupo de megaempresas controla grande parte da economia mundial e através dela a política e as informações. Estamos no coração de uma crise de civilização sem precedentes, dado o seu caráter global.
Perguntamo-nos: e agora o que virá? Mais do mesmo? Mas isso é muito arriscado, pois o paradigma atual está assentado sobre o poder como dominação da natureza e dos seres humanos. Não devemos esquecer que ele criou a máquina de morte, que pode destruir a todos nós e a vida de Gaia. As virtualidades construtivas deste caminho parecem ter-se esgotado, embora ele seja ainda dominante.
Do capital material somos forçados a passar ao capital espiritual. O capital material tem limites e se exaure. O espiritual é infinito e inexaurível. Quanto mais se usa, mais cresce e se expande. O capital espiritual é feito de amor, de compaixão, de cuidado, de criatividade, realidades intangíveis e valores infinitos. Este foi parcamente aproveitado por nós. Mas ele pode representar a grande alternativa que supera a crise atual e inaugura um novo patamar civilizatório.
A centralidade do capital espiritual reside na vida, na Humanidade e na Terra viva. Busca criar as condições para as liberdades substantivas, como queria o Prêmio Nobel de Economia Amartya Sen (Desenvolvimento como liberdade), que permite às pessoas humanas moldarem sua vida e destino, realizarem sua autonomia e viverem numa sociedade “menos malvada” (Paulo Freire), na qual seja menos difícil o amor, a compaixão, o cuidado para com a nossa Casa Comum, na alegria de viver e na capacidade de transcendência.
Não significa que tenhamos que dispensar a tecnociência. Sem ela não atenderíamos às demandas humanas. Mas ela não seria mais destrutiva da natureza e da vida. Se no capital material a razão instrumental era seu motor, no capital espiritual é a razão cordial e sensível que organizará a vida social e a produção consoante os ciclos da natureza e dentro dos limites de cada ecossistema. Na razão cordial estão radicados os valores e os grandes ideais dos povos e de cada pessoa; dela se alimenta a vida espiritual, pois produz as obras do espírito que referimos acima: o amor, a solidariedade e a transcendência.
Usando uma metáfora do grande escritor irlandês convertido C. S. Lewis diria: se no tempo dos dinossauros houvesse um observador hipotético que se perguntasse pelo próximo passo da evolução, provavelmente diria: o aparecimento de espécies de dinos ainda maiores e mais vorazes. Mas ele estaria enganado. Sequer imaginaria que de um pequeno mamífero que vivia na copa das árvores mais altas, alimentando-se de flores e de brotos e tremendo de medo de ser devorado pelos dinossauros, iria irromper, milhões de anos depois, algo absolutamente impensado: um ser de consciência e de inteligência — o ser humano — com uma qualidade totalmente diferente daquela dos dinossauros. Não foi mais do mesmo. Foi uma ruptura. Foi um passo diferente.
Cremos que o grande legado da crise global sob a qual padecemos seja a percepção de que o capital material não satisfaz os anseios fundamentais do ser humano. Este tem fome de quê, além da fome de pão sempre saciável? Tem fome de reconhecimento, de dignidade, de amar e de ser amado, de alegria de viver e de transcendência, fome que irrompe como insaciável e sempre presente em sua existência. Agora poderá surgir um ser humano marcado pelo inexaurível capital espiritual. Agora prevalece o mundo do ser mais que o mundo do ter.
O próximo passo, então, seria exatamente este: descobrir o capital espiritual e começar a organizar a vida, a produção, a sociedade e o cotidiano a partir dele. Então a economia estará a serviço da vida, e a vida se imbuirá dos valores das relações abertas e inclusivas, da mutualidade ser humano-Terra, da autorrealização e da alegria — uma verdadeira alternativa ao paradigma vigente.
Mas este passo, fundador do novo, não é mecânico. É resultado de uma coligação de forças ao redor de valores e princípios assumidos por todos, biocentrados e ecoamigáveis. Quer dizer, ele é oferecido à nossa liberdade. Podemos acolhê-lo como podemos também recusá-lo. Mas, mesmo recusado, ele permanece como uma possibilidade sempre presente e pronta a irromper. Ele não se identifica com nenhuma religião. É algo anterior, que emerge das virtualidades daquela Energia de fundo, poderosa e amorosa, que sustenta todo o universo, a cada um de nós, e que penetra em toda a evolução consciente. Quem o acolhe viverá outro sentido de vida, vivenciará também um novo futuro, diferente daquele imaginado pela Rio+20. Os outros dentro do velho paradigma continuarão sofrendo os impasses do atual modo de ser e se perguntarão, angustiados, pelo seu futuro e até pelo eventual desaparecimento da espécie humana.
Foi Pierre Teilhard de Chardin que, ainda nos anos 30 do século 20, teve o sonho da irrupção da noosfera. Noos em grego significa a mente e o espírito totalmente abertos e unidos. A noosfera seria a irrupção da humanidade como espécie, da mente e do coração sincronizados e batendo em uníssono. Seria a etapa nova da antropogênese, a superação do antropoceno, a inauguração da era ecozoica e uma idade também nova de Gaia. Uma utopia? Sim, mas uma utopia necessária para dar rumo às nossas buscas e manter vivo um horizonte de esperança.
Estimo que a atual crise mundial nos criou a possibilidade de realização da noosfera. Dizem por aí que Jesus, Buda, Francisco de Assis, Rumi, Gandhi, dom Hélder Câmara, irmã Dorothy e tantos outros mestres e testemunhas do passado e do presente teriam, antecipadamente, dado já esse passo. Eles são nossas estrelas-guia, os alimentadores de nosso princípio-esperança e a garantia de que ainda temos futuro. As dores atuais não seriam estertores de uma civilização moribunda mas os sinais de um parto de um novo modo sustentável de viver e de habitar o nosso planeta Terra. Seremos humanos, reconciliados conosco mesmos, com a Mãe Terra e com a Última Realidade. Este parece ser o sentido do universo e o propósito do Criador.
Como disse sugestivamente uma de nossas melhores pensadoras dos novos paradigmas, Rose Marie Muraro: “Quando desistirmos de ser deuses, poderemos ser plenamente humanos, o que ainda não sabemos o que é, mas que já o tínhamos intuído desde sempre”.
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Que podemos esperar depois da Rio+20? Artigo de Leonardo Boff - Instituto Humanitas Unisinos - IHU