23 Junho 2012
Com a batalha muito pública da Conferência dos Bispos dos EUA contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo e a recente condenação do livro sobre ética sexual Just Love da Ir. Margaret Farley, das Irmãs da Misericórdia, por parte da Congregação para a Doutrina da Fé, parece difícil lembrar de uma época em que a Igreja Católica Romana não tenha estado fixada nas questões LGBT.
A análise é de Jamie L. Manson, mestre em teologia pela Yale Divinity School, em artigo publicado no sítio do jornal National Catholic Reporter, 18-06-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Em Taking a Chance on God, o cineasta irlandês Brendan Fay nos lembra não apenas que essa luta é relativamente nova na história da Igreja, mas também que o impulso por trás desse movimento começou com um padre corajoso e com um inovador livro seu.
O filme apresenta um retrato de John McNeill (na foto, à direita, ao lado do diretor Fay), o padre jesuíta que foi silenciado em 1977 pelo seu livro The Church and the Homosexual e, nove anos depois, foi expulso de sua ordem por se recusar a permanecer em silêncio em seu ministério com os católicos gays e lésbicas.
O filme teve sua estreia em Nova York no último fim de semana como parte da comemoração do 40º aniversário do capítulo de Nova York do Dignity USA, uma comunidade que McNeill ajudou a fundar. O filme inclui uma série de profundas entrevistas com o colega padre ativista Dan McCarthy, com a teóloga Mary Hunt, com o padre abertamente gay Bernard Lynch, com a ativista pelos direitos gays Ginny Appuzzo e com o falecido ativista jesuíta Pe. Robert Carter.
O documentário de Fay apresenta um retrato completo da vida de McNeill, assim como uma janela para a luta pela libertação gay na Igreja e na sociedade, em meio ao aterrador pano de fundo da crise da Aids. Duas partes do filme são particularmente poderosas: o chamado de McNeill ao sacerdócio e o seu chamado a sair do silêncio imposto sobre ele pelo Vaticano.
Nascido e criado em Buffalo, Nova York, McNeill se alistou para servir na Segunda Guerra Mundial aos 17 anos. Ele rapidamente foi deslocado para a infantaria e para as linhas de frente. Na sua primeira batalha, eu batalhão foi dizimado de 190 homens para 29. Tanques alemães cercaram sua tropa, e McNeill foi tomado como prisioneiro pelos nazistas.
Ele foi posto em um caminhão de carga e enviado para um campo de prisioneiros na Alemanha, perto da fronteira polonesa. Eles não receberam água nem comida para a viagem, e muitos homens no seu caminhão morreu no caminho. McNeill sobreviveu lambendo o gelo dos pregos.
Os nazistas continuaram fazendo com que os prisioneiros passassem fome enquanto trabalhavam no campo. Tendo baixado para 35 quilos, um dia, McNeill notou um trabalhador escravo polonês fazendo uma mistura de batatas e cenouras para os cavalos. O trabalhador teve compaixão de McNeill e, às escondidas, lhe jogou uma batata. Quando McNeill olhou para o homem com gratidão, o trabalhador respondeu fazendo o sinal da cruz.
"Para mim, essa foi uma bonita intuição", reflete McNeill, "de que a sua fé lhe deu a coragem para arriscar a sua vida para alimentar um completo estranho. Eu queria esse tipo de fé e esse tipo de coragem para estar pronto para arriscar a minha vida para ajudar alguém em necessidade".
Depois da guerra, McNeill seguiu sua vocação aos jesuítas. Ele foi ordenado na Fordham University e, mais tarde, foi enviado para a Universidade de Louvain para estudar teologia dogmática e moral.
Sua vida como ativista começou quando lecionava ética na Le Moyne University, em Syracuse, Nova York, onde McNeill tornou-se um oponente aberto à Guerra do Vietnã. Seu status como ex-prisioneiro de guerra deu muito mais credibilidade à sua cruzada.
Depois da Revolta de Stonewall, em 1969, na cidade de Nova York, o ativismo de McNeill assumiu uma nova vida como defensor de gays e lésbicas. Ele respondeu a forças antigays como Anita Bryant e o psiquiatra Charles Socarides escrevendo uma série de artigos que afirmavam a bondade de gays e lésbicas, e exploravam a santidade do amor entre casais do mesmo sexo.
Os artigos se tornaram tão influentes e cruciais que inúmeros estudiosos encorajaram McNeill para reuni-los em um livro. O manuscrito foi enviado para sete teólogos jesuítas, todos os quais apoiaram fortemente o texto. McNeill, então, enviou-os ao geral jesuíta, Pedro Arrupe, para pedir permissão para publicar o livro.
Arrupe concordou, e, em 1976, a coletânea de artigos foi publicada com o título The Church and the Homosexual. O livro desencadeou uma tempestade não apenas no mundo católico, mas também na grande mídia. Tom Brokaw, Phil Donahue e Larry King entrevistaram McNeill, que apareceu publicamente diante de 20 milhões de telespectadores do programa Today.
O Vaticano ficou menos entusiasmado com o sucesso do livro. Em 1977, o cardeal Franjo Seper*, então prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, silenciou McNeill por escrever e falar publicamente sobre a homossexualidade.
A devoção de McNeill à Companhia de Jesus e ao "quarto voto" de sujeição ao papa da ordem jesuíta obrigaram-no a cumprir o silenciamento.
"Há uma certa ingenuidade que acompanha o sacerdócio quando você se entrega tão jovem a alguma coisa pelas razões certas", explica Bernard Lynch no filme. "Eu acho que ele acreditava – porque acreditava no seu catolicismo – que a verdade se revelaria".
A crise da Aids
McNeill permaneceu em silêncio por nove anos, embora continuasse realizando pequenas oficinas e oferecendo aconselhamento a católicos gays e lésbicas. Ele também rezava missa para o grupo de Nova York da Dignitiy USA, que, à época, se reunia na Igreja de São Francisco Xavier, uma paróquia liderada pelos jesuítas em Greenwich Village. Ele também atuou como psicoterapeuta para a comunidade gay e lésbica até 1983, quando Ratzinger acabou com esse ministério.
Mas, no início da década de 1980, como a Aids começou a devastar comunidades gays na cidade, o silêncio se tornou cada vez mais uma força mortal.
"Nós visitávamos os nossos doentes, enterrávamos os nossos mortos, servíamos uns aos outros em amor e compaixão", diz Gina Appuzzo. As vítimas de Aids estavam morrendo em taxas alarmantes, mas as lideranças da Igreja e do governo pareciam impassíveis pelos gritos dos doentes e de seus familiares e amigos.
No pico da crise da Aids em 1986, naquele que pode ter sido o pior momento pastoral da história recente da Igreja Católica Romana, o cardeal Ratzinger emitiu a Carta sobre o atendimento pastoral das pessoas homossexuais da Congregação para a Doutrina da Fé [disponível aqui]. Ele definiu a homossexualidade como "uma desordem objetiva" e "uma tendência, mais ou menos acentuada, para um comportamento intrinsecamente mau do ponto de vista moral".
Como a Dignity USA apoiava os relacionamentos amorosos e comprometidos entre casais do mesmo sexo, eles foram necessariamente expulsos das paróquias católicas. O filme inclui imagens notáveis de centenas de homens e mulheres da Dignity USA em uma procissão em vigília com velas descendo os degraus da Igreja de São Francisco Xavier e caminhando pelas ruas.
O indescritível sofrimento da crise da Aids e a insensibilidade da carta obrigaram McNeill finalmente romper o seu silêncio. Em 1986, ele decidiu que, em sã consciência, deveria continuar seu ministério público entre a comunidade gay.
"Eu queria tirar a culpa e o ódio pessoal dos católicos homossexuais que acreditavam na posição da Igreja sobre a homossexualidade", diz McNeill.
Em resposta, as lideranças de sua província jesuíta foram até o seu apartamento e leram-lhe uma carta em latim dizendo-lhe que, por causa da sua "desobediência pertinaz", ele deveria arrumar suas coisas, sair imediatamente e nunca mais voltar.
Esperança, coragem e tristeza
Embora profundamente ferido por sua dispensa, Fay mostra os caminhos pelos quais a vida de McNeill floresceu fora dos muros da Igreja institucional. O que permeia o filme é a comovente história de amor da união de 40 anos de McNeill com Charles Chiarelli. Os dois se casaram legalmente no Canadá em 2008.
McNeill continuou escrevendo e orientando retiros em todo o país, e presidiu inúmeras liturgias nos capítulos da Dignity USA em todo o país. Gene Robinson, o primeiro bispo abertamente gay da Igreja Episcopal, credita a sua própria assunção como homossexual a um retiro com McNeill.
Agora com 86 anos, McNeill diminuiu consideravelmente suas atividades, mas continua escrevendo e palestrando. O evento mais recente foi no último fim de semana na estreia do filme em Nova York.
Fay já dirigiu o documentário Remembering Mychal e coproduziu o documentário The Saint of 9/11, ambos sobre o padre Mychal Judge, o capelão do Departamento de Bombeiros de Nova York que morreu na tragédia do World Trade Center no dia 11 de setembro de 2000. Curiosamente, McNeill foi conselheiro judicial, e ambos os padres começaram o Upper Room AIDS Ministry, um ministério para os sem-teto com Aids do bairro Harlem, nos anos 1980. O trabalho continua hoje como Harlem United.
Embora a história de McNeill seja de esperança e de coragem, uma tristeza indizível perpassa o filme. A hierarquia se tornou apenas mais reacionária na sua vergonha aos relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo e na sua supressão daqueles que afirmam a bondade e a santidade das pessoas LGBT. Só nos resta perguntar se hoje o superior-geral de qualquer ordem religiosa aprovaria a publicação de um livro como The Church and the Homosexual.
Mas os espectadores também encontrarão inspiração no fato de que, apenas 25 anos depois da expulsão de McNeill, os católicos são agora os maiores defensores dos direitos de gays e lésbicas e do casamento homossexual nos EUA.
Talvez, a maior conquista do filme de Fay é que ele leva a história de McNeill a um público muito maior. E, ao fazê-lo, permite que McNeill continue respondendo àquilo que Deus o chamou primeiro: a dedicar a sua vida, corajosa e fielmente, a alimentar a completos estranhos.
Taking a Chance on God está atualmente no circuito dos festivais de cinema. Ele continua em cartaz em San Francisco, na Filadélfia e em Belfast, na Irlanda. Para mais informações sobre o filme, visite www.takingachanceongod.com.
* Uma versão anterior deste texto identificava erroneamente o presidente da Congregação para a Doutrina da Fé em 1977. [Nota do editor]
Assista abaixo ao trailer, em inglês:
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Novo documentário retrata a luta de um jesuíta pelos direitos homossexuais - Instituto Humanitas Unisinos - IHU