Capital do desemprego revela a face real da economia espanhola

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Por: Cesar Sanson | 11 Junho 2012

Francisco Gavira tomou há dois meses uma decisão radical: sair de casa. Mas, no seu caso, não se trata de um avanço. Aos 40 anos, o caminhoneiro inativo abandonou o apartamento alugado em que morava sozinho e se mudou para a casa da mãe. O recuo de quase 20 anos em sua independência, que encara como uma humilhação pessoal, foi a forma que encontrou para enfrentar a extinção epidêmica de postos de trabalho em Cádiz, no extremo sul da Península Ibérica. A cidade de 125 mil habitantes situada na Andaluzia, na Espanha, responde por um triste recorde: é a capital do desemprego e um dos símbolos da crise que abala os pilares econômicos da Europa.

A reportagem é de Andrei Netto e publicada pelo jornal O Estado de S.Paulo, 10-06-2012.

Considerada o maior centro industrial de sua comunidade autônoma - equivalente a um Estado -, Cádiz registrou no primeiro trimestre do ano a cifra recorde de 36,37% de desemprego médio. Trata-se do índice mais elevado entre os 43 maiores centros urbanos espanhóis, de acordo com o Instituto Nacional de Estatísticas (INE). Mas o desemprego em massa não é sua exclusividade, já que todas as outras sete maiores cidades da Andaluzia - Almería, Córdoba, Granada, Huelva, Jaén, Málaga e Sevilha - são consideradas por Bruxelas como "zonas sinistradas" pela crise.

Ao longo da semana, o Estado esteve nas "autonomias" de Andaluzia e Valência para entender as razões da turbulência que ameaça de naufrágio um gigante europeu. Nessas regiões, falou com trabalhadores, políticos, sindicalistas e economistas para concluir: uma crise que mescla endividamento excessivo da população e dos governos autônomos, incompetência administrativa e pitadas de corrupção - como no caso do agora nacionalizado banco Bankia - explicam por que a Espanha, quarta maior economia da Europa, é a próxima vítima da síndrome que já abateu Grécia, Irlanda e Portugal.

Os primeiros capítulos da decadência espanhola já são conhecidos há pelo menos quatro anos, desde a quebra do banco americano Lehman Brothers, em setembro de 2008. A data marca um caminho sem retorno para a economia mundial e, no caso na potência ibérica, o estouro de uma bolha imobiliária iniciada uma década antes, em 1999. Nesse ínterim, o preço de terrenos, casas e apartamentos aumentou em média 91%. Para ingressar na euforia da compra da casa própria, 80% dos espanhóis assumiram dívidas de longo prazo - um recorde europeu. Em 2005, o volume de empréstimos imobiliários superava os € 650 bilhões, quase todos concedidos com taxas de juros que variariam ao longo dos anos, um sinal de confiança dos mutuários na estabilidade do euro.

Equívocos de expansão. O resultado mais imediato foi a dependência. Ao longo de duas décadas, toda a economia da Espanha se voltou a três grandes fontes de crescimento: os investimentos dos fundos europeus de infraestrutura, que mudaram a cara do país; o turismo, que o transformou em quarto maior destino do mundo, atrás de Estados Unidos, França e China; e o mercado imobiliário interno, que criou grandes construtoras e bancos gigantescos, como Santander, BBVA e dezenas de cajas de ahorros, as instituições locais de depósitos e empréstimos.

Entre 1996 e 2007, a economia espanhola cresceria em média de 3,8% ao ano, mais do que a da Alemanha e acima da média europeia, de 2,4%. Nessa época, o país se orgulhava de ter reunido nos últimos 15 anos a maior capacidade de crescimento da Europa e da alta vertiginosa da renda per capita, que atingira € 26,5 mil. José Luis Rodríguez Zapatero, então primeiro-ministro, transbordava de otimismo. Em 25 de setembro de 2008, dias após a quebra do Lehman Brothers, entre risos e ironias ele afirmaria a empresários americanos em Nova York: "Superamos a média europeia de renda per capita e superamos a Itália, coisa que deprime muito o primeiro-ministro (Silvio) Berlusconi. Nosso objetivo é superar a renda per capita da França em três ou quatro anos. Meu amigo Sarkozy não quer admiti-lo, mas é assim."

O problema é que, em meio à euforia, havia cegueira. Problemas como os desequilíbrios econômicos, os contratos precários de emprego, o desemprego rural crônico, a desindustrialização, a perda de competitividade das usinas e da agricultura e a queda das exportações - consequências do euro forte - eram ignoradas. O mesmo ocorria com os gastos excessivos das administrações públicas. A síntese dessa "economia real" é a Andaluzia, uma região agrícola, a mais populosa e uma das mais pobres da Espanha, com renda 20% inferior à média do país. Mesmo com o baixo poder aquisitivo, a região crescia ao ritmo de 4,1% entre 1996 e 2007.

Nesse período, o desemprego chegou a cair de 32% a 12%, segundo dados do Observatório Econômico da Andaluzia. A reversão do quadro é chocante. Entre 2007 e 2011, o PIB da região já se deprimiu em 11,6% - um retrocesso de uma década. Em quatro anos, cerca de 500 mil postos de trabalho foram extintos. Pequenas cidades, como Paterna de Rivera e Bailén, que forneciam mão de obra e tijolos para a indústria da construção, correm o risco de sumir do mapa.

Mas é Cádiz a ponta mais visível de um iceberg chamado desemprego. Na quinta-feira, carros de som desfilavam pela cidade convocando "uma grande manifestação pelo futuro da baía de Cádiz", enquanto alguns operários ainda trabalhavam na construção de imóveis na Avenida de Portugal - sinal de que a página de um modelo econômico fracassado não foi de todo virada.

Nos escritórios do Serviço de Emprego da Andaluzia, o movimento é constante e ininterrupto. À porta, as histórias de desterro se sucedem. Rafael Sabajanes Arzua, taxista de 52 anos, agora conta apenas com o salário da mulher, cozinheira, para não ter de vender a casa própria, que ainda paga. Aos 31 anos, a filha, profissional da área de turismo, nunca teve um emprego. "Ela quer ir embora do país, porque não tem futuro nenhum. Aqui os pobres empobrecem", diz Arzua.

Francisco Gavira, o homem que voltou a viver na casa dos pais, concorda. "Todos aqui sobrevivem como podem. Mentalmente é muito negativo", conta. Sua situação, diz ele, é só mais um exemplo. Seu irmão, ator, também está desempregado, assim como 40% de seus amigos. "Temos uma classe política muito incompetente, mas também temos culpa", confessa. "Vivíamos acima de nossas condições, é verdade. Mas, na Espanha, quem mais paga é quem menos tem a culpa."