21 Mai 2012
Na próxima terça-feira, o prefeito de Porto Alegre, José Fortunati, assinará um convênio com o Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH) para identificar locais que abrigaram tortura durante a ditadura militar (1964-1985).
A reportagem e a entrevista são publicadas pelo jornal Zero Hora, 20-05-2012.
A iniciativa, batizada de Marcas da Verdade, já tem uma lista de pelo menos sete localidades – o casarão onde funcionava o Dopinha, na Rua Santo Antônio, está no topo da relação. A ideia é fixar placas no chão, em frente aos antigos centros de tortura, substituindo uma ou duas lajotas por breves históricos a respeito dos locais.
– Já está acertado com o consórcio que venceu a licitação para revitalizar o Cais Mauá: lá será colocada uma placa em referência à Ilha do Presídio, listando os nomes de todos os presos. Eles embarcavam por ali – diz Fortunati.
O convênio é uma iniciativa do fundador do MJDH, Jair Krischke, que há dois anos vinha pressionando a prefeitura. Ele já contabiliza 80 presos que passaram pela Ilha do Presídio. Outro locais a serem identificados, além do Dopinha e da ilha, são o Palácio da Polícia – onde funcionava o Departamento de Ordem Política e Social, o Dops – e a Praça Argentina, perto do viaduto da Avenida Duque de Caxias, onde foi o Quartel da Polícia do Exército.
– Queremos que as placas digam claramente: aqui, brasileiros foram torturados – afirma Krischke.
Enquanto a prefeitura não começa as identificações – o prefeito prefere não estabelecer prazos –, o Comitê Carlos de Ré da Verdade e da Justiça já iniciou o trabalho por conta própria. Coordenado pelo vereador Pedro Ruas (PSOL), o grupo mobilizou um protesto em frente ao antigo Dopinha, no último dia 10, quando fixou adesivos na calçada em frente à residência. Em letras garrafais, oito adesivos informam: “Aqui nessa rua pessoas foram torturadas e mortas durante a ditadura militar no Brasil”.
O comitê se baseia em um decreto do presidente Lula, que já determinava a identificação de locais onde presos foram torturados na ditadura. Na próxima quinta-feira, o grupo vai adesivar a calçada do Palácio da Polícia, antiga sede do Dops.
– Nós temos um critério: nos baseamos em três depoimentos e um documento para fazer a identificação. O quartel na Rua Luiz Afonso, entre a João Pessoa e a Lima Silva, também receberá nossos adesivos – adianta Pedro Ruas.
“Contra a força, não há resistência”
Era 1964 quando Carlos Heitor Azevedo – um militante brizolista que escrevia em um jornal de esquerda – fez “uma coisa besta de guri”. Acabou encarcerado no Dopinha, o casarão amarelo da Rua Santo Antônio.
Carlos Heitor tinha 26 anos. Pegou o Fusca vermelho do pai e saiu a panfletar em frente aos quartéis de Porto Alegre. Queria convencer os jovens militares a se rebelarem contra o golpe que recém instaurara a ditadura. Só que esqueceu de esconder a placa do carro. Dois dias depois, foi capturado na porta de casa, na Avenida Independência.
Um policial o colocou no banco de trás de um automóvel e, de lá, rumaram para o Departamento de Ordem Política e Social (Dops), na esquina da João Pessoa com a Ipiranga.
– Fiquei no Dops da manhã até o fim da tarde. Era empurrão para lá, empurrão para cá, até que me levaram ao Dopinha.
Naquela época, Carlos Heitor iniciava sua trajetória de empresário da noite. Fundou o Crazy Habbit, a Vila Velha e a Baiuca, que mudaram a vida noturna da Capital. Hoje, aos 74 anos, vive em Torres e é colunista do Jornal do Mar. Nesta entrevista, ele conta como era o Dopinha por dentro – e o que ocorria nas dependências do casarão.
Eis a entrevista.
O que o senhor viu quando entrou no casarão?
O carro entrou em uma garagem comprida, uma espécie de túnel subterrâneo. No fundo do túnel, me mandaram descer. Tinha sete ou oito presos ali, e as paredes eram pintadas de sangue. Nós ouvíamos gritos, urros, choros desesperados. Não sabíamos de onde vinham os gemidos. Depois que fui liberado, concluí que o sangue devia ser de galinha ou algo assim. Os gritos, talvez fossem gravações. A ideia era nos horrorizar. Aquilo já era tortura.
Eram instalações precárias?
A gente ficava na penumbra, sentado em bancos de pedra, junto às paredes. E a maioria dos prisioneiros era homem. Não lembro, talvez tivesse uma ou duas mulheres. Para ser sincero, eu esqueci muita coisa de propósito. Foi uma situação dolorosa, eu bloqueei muita coisa da minha mente. Me lembro que, depois de quatro ou cinco horas naquele porão, me levaram para uma pequena sala no andar de cima da casa.
Para interrogá-lo?
Sim. Eram brutais, ameaçadores. Queriam que eu dissesse quem frequentava o clube, com quem me reunia. Me deram uns croques, uns encontrões. Não me torturaram, falei que meu pai (Pedro Camargo de Azevedo) era deputado e jornalista. Mas fizeram uma demonstração de força que, sinceramente, a gente se acovarda todo. A gente fica sem reação. Contra a força, não há resistência. Nem porcos eles deviam tratar daquela forma.
Depois do interrogatório, para onde levaram o senhor?
Me levaram para baixo de novo. E me atiraram em uma sala que servia de quarto, com mais três ou quatro pessoas. Era ao lado do porão, parecia uma lavanderia. Fiquei dois dias lá. Não tinha colchão, ficávamos sentados no chão, cochilávamos quando era possível. Na verdade, ninguém pensava em dormir. De vez em quando, eles chamavam alguém para ser interrogado de novo. Mas, antes de chamarem, nós ouvíamos aqueles sons de novo, os gemidos e gritos.
E comiam o quê?
Não lembro de nada sobre comida. Parece que tinha pão. Acho que água, talvez.
Como o senhor saiu de lá?
Meu pai era um deputado que apoiava o regime militar. Quando ele soube da minha prisão, pediu ajuda para outro deputado, o Delmar de Araújo Ribeiro, que era delegado de polícia. O Delmar Ribeiro pressionou as instâncias superiores e me libertaram. Ele e o meu pai foram me buscar de carro no Dopinha.
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Porto Alegre vai apontar locais de tortura - Instituto Humanitas Unisinos - IHU