30 Abril 2012
Se Nicolas Sarkozy está de fato perto do fim de sua vida pública, como prometeu em caso de derrota nas eleições para o Palácio do Eliseu neste ano, o atual presidente da França deve ter consciência de que a História lhe reservará um lugar entre os líderes que marcaram para sempre o cenário político do país. Raros homens têm o poder de, com a força de seu discurso, deslocar a realidade de um ponto para outro, marcando uma evolução – ou uma involução. O chefe de Estado francês é um desses “animais políticos”.
A reportagem e a entrevista é de Andrei Netto e publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 29-04-2012.
A convicção é de Damon Mayaffre, doutor em História pela Universidade Nice-Sophia Antipolis (Unice) e membro do prestigioso Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS), berço dos prêmios Nobel da França. Linguista, Mayaffre desenvolveu um método de pesquisa que mescla a análise subjetiva dos discursos com a objetividade estatística. O resultado, brilhante, pode ser conferido em livros sobre a vida política da França contemporânea: Poids des Mots – Les Discours de Gauche et de Droite dans l’Entre-deux-guerres (O peso das palavras – O discurso da esquerda e da direita no entreguerras, editora Champion) e Nicolas Sarkozy – Mesure et démesure du discours (Nicolas Sarkozy – Medida e Desmedida do Discurso, Presses de Sciences Po) são dois exemplos.
Na segunda obra, Mayaffre é autor de um levantamento inédito que leva em conta mais de mil discursos do atual presidente, seguido da análise de mais de 85 mil frases pronunciadas por ele desde sua campanha eleitoral de 2007 até a atual disputa, passando, é claro, por cinco anos de sarkozysmo. Tudo com o auxílio de uma base de dados, um software chamado Hyperbase.
Entre suas constatações está a certeza de que Nicolas Sarkozy é um ponto de não retorno na política da França. Desde que exerce o protagonismo na União por um Movimento Popular (UMP), todo o espectro partidário do país tem se movimentado para adaptar seu discurso e concorrer com o chefe de Estado.
O diabo é que Sarkozy, ultrapassado pelo candidato do Partido Socialista (PS), François Hollande, parece estar perdendo o controle de suas ideias a uma semana da eleição. Por sua causa, todos os partidos se deslocaram à direita nos últimos cinco anos. O resultado desse processo paulatino de radicalização é visível na adoção de princípios da Frente Nacional (FN), o partido xenofóbico de Jean-Marie e Marine Le Pen. O clã obteve 17,9% dos votos, recorde histórico. Mas sua maior vitória não pode ser analisada pelos números, e sim pelas mentes. Na França de 2012, ser neofascista não é mais vergonha.
Eis a entrevista.
Há duas semanas, a revista britânica The Economist advertiu sobre o vazio das discussões políticas nas eleições francesas. Qual sua avaliação da campanha eleitoral?
Há um empobrecimento do discurso político não só na França, mas também no Reino Unido. Sobretudo nos últimos 50 anos, ele vem se esvaziando de seus principais substantivos, as palavras que trazem a substância da língua. Os grandes conceitos da política, como liberdade, igualdade, democracia, capitalismo, socialismo, não param de rarear. Em seu lugar percebe-se a emergência da personalidade. O “eu” é cada vez mais presente, o que representa o ganho de importância do presidente, ou do candidato. Em francês, poderíamos empregar um jogo de palavras para explicar que o líder substituiu a ideia (le leader a remplacé l’idée). A campanha de 2012 não é, infelizmente, uma exceção. Vemos nela a oposição entre o “eu” de Sarkozy e o “eu” de Hollande, o que na realidade significa a presidencialização da realidade política. Nos anos 50, 60 e 70, havia frases com sentido pronominal em jogo. Por exemplo: “O povo da França tem a soberania nacional”. Veja como traz em si um significado. Hoje, políticos usam fórmulas como “Digo e repito aquilo que disse”. O povo, a França e a soberania desapareceram do discurso.
O senhor diria que Nicolas Sarkozy é um retrato dessa perda de conteúdo?
Na verdade, não. O paradoxal é que Sarkozy ajudou a reabilitar o discurso político. Podemos ser muito críticos em vários aspectos, mas o fato é que ele recuperou um pouco do conteúdo desse discurso. Em 2007, recolocou palavras fortes no centro de sua linguagem, palavras que se situam bem à direita do espectro político francês, como “moral”, “trabalho”, “mérito”, “esforço”. Sarkozy, nesse sentido, restaurou o debate de ideias. Ele conseguiu descomplexar a direita francesa fazendo campanha no terreno das ideias, justamente o oposto de seu antecessor, Jacques Chirac. Esse é seu problema em 2012: ele não consegue mais manter esse discurso, porque ele não surte mais efeito. Repete elementos da campanha de 2007, mas sem a flama da época.
Em 2007 ele se elegeu com um discurso que roubava votos da extrema direita, mas também da esquerda, ao citar líderes do PS como Jean Jaurès e falando em abertura.
É isso mesmo. Em 2007, ele já se apoiava em valores clássicos da direita. É possível encontrar em seus discursos da época frases idênticas às de Jean-Marie Le Pen. Um exemplo foi quando afirmou na TV, ao vivo e em horário nobre, que “quando se é francês, não se corta a garganta de ovelha no seu apartamento” (para ressaltar supostas diferenças entre franceses e estrangeiros muçulmanos, Le Pen dizia que estes sacrificavam ovelhas nos dias de festa religiosa na banheira de casa). Essa frase provocou reação na plateia. Sua resposta foi dizer: “Se Jean-Marie Le Pen diz que o céu é azul, não vou dizer que é amarelo”. Veja que ele já tratava certas colocações da extrema direita como verdade absoluta. Estudei com muita atenção os 34 comícios de Sarkozy em 2007. Ao mesmo tempo que sinalizava à direita, citava os líderes da esquerda, como Léon Blum e Jean Jaurès. Nessa época a esquerda era liderada por Ségolène Royal, e o que se via era um Partido Socialista não muito orgulhoso dos próprios princípios, ainda sob o impacto dos eventos dos anos 90.
Já em 2012, observamos dois momentos de Sarkozy: uma campanha no primeiro turno com acento nos temas da extrema direita, mas não tanto; e uma no segundo turno onde adota o discurso de Marine Le Pen.
Desde o primeiro turno de 2007 ele já havia conseguido recuperar os votos da Frente Nacional, adotando um discurso à direita. Em 2012, voltou a fazê-lo, mas acompanhado de um balanço de governo desfavorável, e por isso sua tentativa não surtiu efeito nos potenciais eleitores de Le Pen. No segundo turno, ele coloca todas as fichas mais uma vez nesse eleitorado de extrema direita, a tal ponto que esquece o eleitorado de centro, que votou em François Bayrou e está propenso a votar em François Hollande. De toda forma, ele segue em sua campanha agora com expressões inteiras, slogans, programas da Frente Nacional. Sua frase dessa semana, “a Frente Nacional está de acordo com a república”, mostra que ele está disposto até a abrir mão dos valores republicanos. É uma situação totalmente diferente da de 2007, quando afirmava que deveria ser felicitado por ter trazido ao campo republicano um público há anos nas mãos da Frente Nacional. Hoje temos a impressão de que não é mais Nicolas Sarkozy que converte os votos de Marine Le Pen, mas Marine Le Pen que converte o discurso de Nicolas Sarkozy.
Isso significa que a Frente Nacional está ganhando o jogo contra a UMP?
É a constatação do meu trabalho. Veja a expressão “cortar a garganta”: ela é muito sintomática. Até então, qualquer membro da direita, como Jacques Chirac, desacreditava essa frase de Le Pen por não condizer com a realidade. Quem a pronunciasse era identificado como de extrema direita. Sarkozy ultrapassa a barreira, adota o texto e se elege. Verificaríamos essa lógica em todos os cinco anos de governo. E o que vemos agora é que a UMP, o partido do presidente, caiu para o outro lado, adotando os raciocínios e os argumentos da extrema direita. Há uma mudança no seu centro de gravidade, o que faz Sarkozy perder para a esquerda votos de eleitores moderados.
Como essa radicalização se manifesta no cotidiano?
Um dos sintomas desse deslocamento do eixo é a denúncia sistemática que Sarkozy faz de todos os “corpos intermediários” da nação, como a Justiça, os sindicatos e a imprensa. A república só pode existir se contar com o bom funcionamento desses corpos. Mas Sarkozy os transformou em alvo de ataques. Também nesse aspecto representa uma ruptura em relação aos presidentes anteriores. O problema é que ele ainda é presidente e, nessa posição, encarna a República da França. Ouvir um presidente denunciar com violência esses corpos intermediários soa como a denúncia da república em si. Sarkozy se elegeu em 2007 com o slogan da ruptura. Talvez essa seja sua grande ruptura: a dos valores da república.
Mais uma vez, isso representa que o clã Le Pen de alguma forma está ganhando a batalha das ideias na direita francesa.
Sim. Creio que ao longo dos últimos anos a UMP e Sarkozy brincaram com fogo. Tentaram recuperar o eleitorado de extrema direita com algumas de suas temáticas. Não acredito que haja uma maioria de extrema direita entre os eleitores que votam à direita na França, mas muitos agora parecem preferir o original à cópia, a Frente Nacional à UMP, Le Pen a Sarkozy. Um exemplo disso: deputados da UMP propuseram que se incluíssem testes genéticos na seleção de imigrantes, para identificar, por exemplo, se uma criança era filha biológica de sua mãe. A imigração e as relações sociais são fenômenos muito mais complexos do que o resultado de um teste biológico. O que essa proposta mostrou é que a UMP não tinha receio de defender essa ideia, ainda que abrisse a porta para que lembrássemos de outras tentativas de seleção genética no passado. Creio que a UMP queimou os limites, sem perceber que contribuía para radicalizar seu próprio eleitorado.
Marine Le Pen afirmou que é seu dever defender os eleitores da FN do assédio de Sarkozy. Por que tenta se manter afastada?
A Frente Nacional sabe que, por razões históricas, não pode esperar alianças. Ou o partido se torna majoritário sozinho ou continuará sendo outsider, porque nunca pôde contar com a direita ou a esquerda. Se a FN anunciasse apoio a Sarkozy, ele talvez fosse reeleito sem que essa conjuntura trouxesse benefícios para Marine. Ela ganhou com o resultado do primeiro turno e com a radicalização do discurso da direita no segundo. Não tem nada a ganhar se seu eleitorado se identificar com Sarkozy.
Sarkozy vem atacando os “mauricinhos de Saint-Germain de Près”, mas ele é conhecido como o presidente que janta em restaurantes caríssimos, passa férias no iate de amigos e usa um relógio de € 55 mil. Como a opinião pública reage a esse discurso?
Esse é um dos enigmas de sua vida política. Sarkozy usa um discurso populista que tenta surfar sobre o descontentamento das pessoas, sobre a miséria dos que não ganham o suficiente, apesar de trabalhar duro. Mas ele tem um histórico de relação com a elite da França muito antigo. Foi durante anos prefeito de Neuilly-sur-Seine, a cidade mais rica do país, com uma das maiores taxas de milionários da Europa. Depois foi presidente da UMP, ministro da Economia, ministro do Interior e ainda assim se elegeu como o homem da ruptura. É um paradoxo, porque sempre esteve no coração do Estado, em especial nos anos de Jacques Chirac. E o mais surpreendente é que, em 2012, tenta encarnar de novo a mudança, estando há cinco anos no mais alto posto do Estado. É por isso que se apresenta como representante do povo contra a elite, ainda que seja um claro representante dela. O detalhe é que esse discurso também está desgastado. Em 2007 funcionou muito bem. Em 2012 não está pegando. Está mais difícil aceitarmos que ele encarne o trabalhador simples.
Outra coisa tem surpreendido no discurso de Sarkozy: a manipulação dos fatos. Em comícios, por exemplo, ele diz existir um acordo entre 700 mesquitas da França em favor de Hollande, o que nenhuma instituição islâmica ouviu falar nem ninguém nunca provou.
Sarkozy sempre apostou na superação dos limites do discurso, o que chamo de sobreaposta. Para se referir a um delinquente ele usava a expressão “bandido”. Depois passou a usar “ralé”. Sempre apostava em um nível acima no discurso, radicalizando-o e surpreendendo sua audiência, para a qual demonstrava força. Ocorre que parece ter chegado a um limite. Em busca dessa sobreaposta, está condenado a flertar com o exagero, a ofensa, a mentira.
Qual é o discurso de François Hollande?
Sarkozy tem um discurso do dissenso, baseado no combate. Hollande tenta fazer o consenso, busca mais a reunião. Além disso, o socialista utiliza mais elementos que o identificam com a esquerda, como “justiça social”. Também faz o que chamamos de triangulação, que consiste em usar parte do discurso do adversário com o intuito de esvaziá-lo. Isso fica claro quando fala em “trabalho”, “esforço” e “mérito”, terminologias que Sarkozy usava havia muito tempo. A estratégia impede que o presidente faça campanha sobre esses temas, ou o obriga a buscar novos elementos mais à direita. Em Hollande, percebe-se que é um discurso de centro-esquerda que busca neutralizar os elementos do adversário. Essa estratégia foi bem-sucedida no primeiro turno e parece também estar funcionando agora.
Mas, ao se apropriar dos temas de Sarkozy, Hollande repete o movimento de seu adversário em 2007, deslocando seu centro de gravidade em relação à direita, não?
Sim, é um fenômeno que vimos com clareza depois da queda do bloco comunista, quando expressões como “propriedade coletiva dos meios de produção” deixaram de ser usadas. Foi quando a esquerda mundial desprezou seus valores clássicos e passou a compartilhar valores liberais, ou pelo menos mais capitalistas, como aconteceu com Tony Blair e Gerhard Schröder. Isso faz parte de uma derrota ideológica. Os termos usados por Mitterrand em sua eleição de 1981 não estão no discurso de Hollande porque não seriam aceitos hoje na França.
É o paradoxo da esquerda na França: para vencer, é obrigada a adotar um discurso mais à direita que nunca.
É o que está em curso hoje. Hollande tem um discurso que ninguém afirma ser discurso revolucionário. Sinto que ele, evitando empregar a expressão – para agradar a um segmento da população que quer preservar a denominação Partido Socialista –, esteja obrigado a adotar o discurso da Terceira Via, que Tony Blair adotara nos anos 90.
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