25 Abril 2012
Uma entrevista com o teólogo mais famoso da Itália hoje. Apesar das críticas ao magistério, Vito Mancuso continua se considerando católico.
A reportagem é de Alessandro Speciale, publicada no sítio Vatican Insider, 21-04-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Há quem lhe chame de herege, quem diga simplesmente que ele deveria deixar de se dizer católico e trazer a Igreja Católica à baila em seus livros e em sua teologia, mas Vito Mancuso, apesar da discordância ao magistério e das duras críticas a Bento XVI e à linha do seu pontificado, continua se considerando um filho da Igreja.
No seu último livro, Obbedienza e libertà (Fazi Editora, 2012, 202 páginas) [Obediência e liberdade], o teólogo propõe um programa de reforma radical da doutrina católica – porque às vezes é indispensável usar um "bisturi" se queremos "impedir a morte do paciente". O Vatican Insider pediu para abordar alguns aspectos do pontificado e dos ensinamentos de Bento XVI.
Eis a entrevista.
O livro se intitula "Obediência e liberdade". Então, é natural começar pela homilia de Bento XVI para a Quinta-Feira Santa, em que o papa respondeu ao “Apelo à desobediência” dos párocos austríacos. Para eles, foi uma abertura de crédito e um convite à reflexão. E segundo você?
Bento XVI citou as palavras de Jesus "consagrados na verdade" e contrapôs essa consagração ao que ele definiu de "a tão falada autorrealização". Para o papa, a verdade é que Cristo não é a autorrealização do ser humano. Mas eu acho que Cristo não é a verdade do modo de uma lei objetiva que se impõe ao indivíduo, porque, se fosse assim, o Evangelho seria só uma nova lei, do mesmo modo que muitas outras leis. Entretanto, o Evangelho não é lei, é dinamismo, é práxis, é vida nova. Daí decorre que a desobediência a qual os 400 padres austríacos apelam, a fim de levar a Igreja a reconhecer as legítimas instâncias de autorrealização dos indivíduos (das mulheres, mas não só) não é a priori contra o Evangelho. Ao contrário, pode ser até mais evangélica do que a obediência formal pedida pelo papa.
Portanto, a desobediência pode ser um caminho para renovar a Igreja?
O próprio papa, na sua homilia, se perguntou se a desobediência é uma via para renovar a Igreja. A pergunta, obviamente, era retórica, porque, para ele, a resposta é um explícito "não". A mim, parece que também pode ser "sim", na medida em que a desobediência exterior tem como fim uma maior obediência interior à lógica evangélica que se diz como bem concreto dos indivíduos concretos. Sem a desobediência da teologia na primeira metade do século XX (um nome dentre todos, Teilhard de Chardin), não teríamos tido o Vaticano II e a reviravolta radical acerca da liberdade religiosa, ecumenismo, relação com os judeus e as outras religiões, apenas para citar as inovações mais marcantes. É preciso continuar nesse caminho profético.
No livro, você escreve que "um processo virtuoso, de retorno às origens, começou" na Igreja a partir do Concílio Vaticano II. Esse processo continua ou parou?
Sim e não, como quase sempre acontece no claro-escuro da história. Com Bento XVI, a ambiguidade permanece, embora, no conjunto, predominem os aspectos de fechamento. Mas ninguém pode frear o sopro do Espírito, nem mesmo os papas: prova disso é a oração do papa na Mesquita Azul de Istambul no dia 1º de dezembro de 2006, o fato de ter retrocedido com relação ao Conselho Pontifício para o Diálogo Inter-Religioso (primeiro rebaixado, depois restaurado em sua autonomia), as palavras de uma abertura sem precedentes acerca da licitude dos preservativos no livro-entrevista Luz do mundo do fim de 2010.
Nesse quadro, há também a reconciliação com os lefebvrianos que o papa tem tentado de todos os modos, desde o início do seu pontificado...
O código genético da Fraternidade Sacerdotal São Pio X consiste precisamente na oposição ao Concílio e à abertura à modernidade que ele representa. Portanto, aceitar o Concílio só pode significar, para os lefebvrianos, "renegar a si mesmos", para usar a conhecida expressão evangélico. Se eles o fizeram, bom. Se não o fizeram, e apesar disso existe o acordo, de modo que todas as partes podem se declarar vencedoras, então estamos diante de um elemento de confusão voltado a produzir ainda mais confusão no futuro, até mesmo muito em breve. Porque uma coisa é certa, a meu ver: esse modelo de ser católico contra o mundo, definitivamente superado no dia 8 de dezembro de 1965, é a última coisa de que a Igreja precisa.
Durante sua viagem à Alemanha, segundo alguns de modo surpreendente, Bento XVI fez um reconhecimento à secularização por ter privado a Igreja, ao longo dos séculos, do seu prestígio e poder, tornando-a progressivamente "desmundanizada". O que você pensa a respeito?
Aqui tocamos um dos pontos mais delicados da inteligência do cristianismo, ou seja, o juízo sobre o mundo. Há textos bíblicos que têm um conceito de mundo totalmente negativo e há outros opostos: de um lado, o mundo é domínio do "príncipe deste mundo"; de outro, lugar do governo justo e providente de Deus. A contradição não deve ser dissolvida unilateralmente, mas sim mantida. Isso significa que há aspectos pelos quais a Igreja deve ser desmundanizada (relações com o poder político e econômico, interesses particulares, gestão dos enormes recursos financeiros, mentalidade carreirista em seu interior), e há outros pelos os quais ela deve estar ainda mais unida ao mundo (proximidade aos homens e à mulheres, escuta dos problemas do tempo, renovação da linguagem e das categorias conceituais, democratização das estruturas). A Igreja não é o mundo, mas sem o mundo ela não existe, porque a Igreja está em função o mundo, exatamente como o fermento do qual Jesus falava, que não é a massa, mas que só adquire sentido em função da massa.
Você descreve a época em que vivemos como um tempo de "neopaganismo". No entanto, muitas vezes, a Igreja fala das ameaças de uma cultura cientificista, em que a razão quer anular a voz da fé. Que consequências tem essa leitura?
O chamado cientificismo, com a agressividade dos seus expoentes, é, a meu ver, um fenômeno de reação a um movimento bem mais vasto em escala mundial definido como "vingança de Deus" (G. Kepel) ou "dessecularização do mundo" (P. Berger). Hoje, o fator religioso é de importância primordial na elaboração da análise geopolítica mundial. Aqueles que cultivam o desejo de uma futura extinção da religião veem o fim dos seus sonhos e reagem atacando, como todas as organizações em dificuldades. Não se devem ignorar as suas críticas, mas é preciso prestar uma atenção muito maior aos evidentes sinais de atenção para com a busca espiritual por parte de amplas camadas da população, com relação a qual basta dar uma olhada nas listas dos livros mais vendidos e considerar como as grandes editoras seculares antes esnobavam títulos de espiritualidade que hoje, ao contrário, estão buscando novamente.
A Igreja também se sente vingada depois de décadas passadas no "deserto"...
Tudo isso, porém, não significa um retorno ao cristianismo tradicional. O cristianismo é chamado, ao contrário, a se confrontar com uma tensão espiritual totalmente inédita, que eu chamo de neopaganismo, e que tem em Nietzsche o seu profeta, com as novas bem-aventuranças da força natural e da vontade de poder. É aqui que se joga a partida pela conquista das almas. Vencerá quem souber infundir mais entusiasmo, mais espírito de sinceridade, mais amor pela beleza da vida.
No livro, apesar do desacordo com partes do Magistério e da hierarquia, você repete várias vezes, com clareza, que se considera parte da Igreja. Que lugar há para aqueles que discordam e são inquietos em uma Igreja que professa querer ser uma "minoria criativa", um coerente embora "incômodo" sinal de contradição na sociedade contemporânea?
A hierarquia deveria começar a compreender que o principal fator de renovação do cristianismo consiste no retorno ao pluralismo das origens. O que é exaltante no cristianismo é justamente a pluralidade da revelação: a Bíblia é uma coleção de 73 livros e até mesmo o seu centro é plural, é quadriforme, não uniforme... a pluralidade da revelação é uma carta muito importante a ser jogada no contexto atual da globalização.
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''A desobediência também pode renovar a Igreja''. Entrevista com Vito Mancuso - Instituto Humanitas Unisinos - IHU