Por: André | 10 Abril 2012
O padre Pancho Soares era conhecido em Tigre por sua opção pelos pobres e seu compromisso social. Foi uma das primeiras vítimas eclesiásticas do terrorismo de Estado. Seu caso foi denunciado na semana passada na Justiça Federal.
A reportagem está publicada no jornal argentino Página/12, 09-04-2012. A tradução é do Cepat.
Era operário porque não poderia ter vivido de outra forma, dizia o padre Francisco “Pancho” Soares. Nos bairros de Tigre era conhecido como o padre sapateiro, aquele da bicicleta desengonçada; por sua opção pelos pobres e seu compromisso social de transformação. Mas sua atividade “traidora da fé católica, apostólica e romana”, sua “perigosa” liderança e seu discurso revolucionário incomodavam o establishment e a cúpula do Exército. Foi uma das primeiras vítimas eclesiásticas dos militares, assassinado no verão de 1976, dias depois de realizar um ato fúnebre no qual deu nome e sobrenome aos responsáveis pelo sequestro, tortura e fuzilamento de três delegados de associações peronistas. Seu caso foi denunciado na semana passado na Justiça Federal no marco da megacausa Campo de Mayo por crimes de lesa humanidade.
O sol despontava sobre os casebres no bairro de Carupá. J.C.V., vizinho de 30 anos, atravessou as ruas e o barro que o separavam da capelania e bateu à porta do padre Pancho. Outras testemunhas contaram que era costume que todas as manhãs o convidasse para tomar um mate. Mas nesse dia foi diferente. “Na madrugada se ouviram tiros e ao sair vi um carro que se afastava estrada de terra afora rumo à Panamericana”, disse J.C.V. à imprensa naquele dia 13 de fevereiro de 1976. A casa do sacerdote, tão simples como as demais, tinha uma janela de par em par: Soares estava no chão, coberto de sangue e seu corpo estava desfigurado. Arnaldo, o irmão com necessidades especiais do sacerdote, também havia sido ferido, e pedia ajuda. Morreria meses depois em um hospital.
Ninguém colocou em dúvida a razão pela qual o mataram. Alguns meios de comunicação informaram que havia sido assassinado em seu carro, quando todo o bairro Carupá sabia que seu único meio de transporte era sua velha bicicleta, com a qual percorria as vilas. Os vizinhos vinham notando movimentos suspeitos. Militares, policiais e civis passavam a pé ou de carro, espreitando a capela. Era vox populi que Soares tinha sido ameaçado de morte por seu compromisso com a justiça. Por isso, no dia de sua morte, um grupo de mulheres correu até sua casinha e resgatou a cabeça do sacerdote, que depositaram em uma pequena caixa colocada debaixo do altar. É a única coisa que restou.
Os arquivos da Direção de Inteligência da Polícia da Província de Buenos Aires (Dipba) são ainda mais esclarecedores a este respeito. Um breve informe da instituição destaca o motivo para que “um comando ‘civil’” o assassinasse: “Dois delegados de associações de ‘Astilleros de Astarsa’ e a senhora de um deles haviam sido sequestrados, torturados e assassinados por esses dias. Esta moça era catequista (sic) na capela de Carupá e foi encontrada morte por sangramento, com um seio arrancado. A própria Polícia da Regional Tigre conferiu o fato, evidentemente extraoficialmente, a modo de intimidação”.
As tentativas de semear o terror não funcionaram. “Era evidente – segue o documento – a agressão à voz da Igreja: Soares denunciou nos funerais da senhora este fato, assinalando os seus responsáveis com nomes e sobrenomes”. Desconhece-se qual foi o conteúdo completo das palavras do padre Pancho nesse dia, mas uma vizinha reconheceu, anos depois, que o padre lhe disse que temia que, dessa vez, tenha dito demais. Uma semana depois estava morto.
Trinta e seis anos depois, a denúncia foi formalizada no Juizado Federal no Penal e Correcional Nº 2 de San Martín, a cargo da juíza Alicia Vence. Graciela Carrel (48) é uma das demandantes. Em seu trabalho a apelidam de “a catequista das vilas”, mas nem sempre andou pelo bairro de San José e pelas vilas de Tigre levando a palavra do Evangelho. “Eu era uma dona de casa comum. Não sabia nada de Pancho, até que comecei a ter um sonho recorrente em que me chamava. Foi muito perturbador. Falei sobre isso com psicólogos, familiares e com pessoas da paróquia. Foi apenas quando comecei a averiguar mais que descobri que Pancho havia sido assassinado de uma maneira muito vil, em decorrência de sua opção pelos pobres, e por essa razão o chamavam de terceiromundista, embora, de fato, não tivesse assinado esse documento. Ele ia às casas, pegava uma pá e ajudava a abrir valetas com as pessoas do bairro. Ele as ajudava a se organizarem”.
Nascido em São Paulo, no Brasil, veio muito pequeno com sua família ao país, onde se nacionalizou argentino. Sua inquietude, no entanto, o levou ao Chile, onde entrou no Seminário Menor dos Assuncionistas, e depois a França para estudar filosofia e teologia. Finalmente, de volta a Buenos Aires, pediu que lhe permitissem morar em uma favela da periferia. Em 1963, foi destinado à zona norte da periferia, onde se tornou conhecido nos bairros pobres de Vila Adalguiza, San Fernando, e de Vila Barragán, Tigre. Desde 1966 foi pároco em Nossa Senhora de Carupá, em Tigre.
“Eu queria uma vida de pobreza. Não podia viver nem no palácio episcopal, nem nos bairros ricos, nem na minha família”, explicou à revista Panorama, em 1965. “Não distribuo balas, nem jogo futebol com eles. Vi muito espetáculo de igrejas”. O que havia começado como a formação de dois vizinhos na produção de palmilhas, acabou se convertendo em uma grande cooperativa de trabalho. Ao apelido de “padre sapateiro” se seguiram outros. Fundou a Comunidade João XXIII, fábrica comunitária de lajotas, onde ele mesmo trabalhava. Além disso, para ganhar a vida, traduzia textos ao francês e se empregou na contabilidade de um supermercado local.
O sacerdote Pancho Soares foi assassinado um mês antes do golpe militar; o padre Carlos Mujica, no dia 11 de maio de 1974; o bispo Enrique Angelelli, no dia 04 de agosto de 1976; e as freiras francesas Léonie Duquet e Alice Dumont, em 1977. Todos foram representantes desse setor da Igreja “que não faltou diante das quadrilhas fascistas, nem diante do poder militar ou policial ou político – diz o texto da demanda. Suas condutas e formas de vida foram o contrário daquela hierarquia da igreja católica que apoiava os militares. Como se pode explicar a tíbia reação episcopal diante de crimes particularmente atrozes contra o seu próprio pessoal? Os próprios capelães militares os haviam denunciado (os padres, bispos e freiras chamados de “Terceiro Mundo”) como traidores da ‘fé católica, apostólica e romana’”.
Adriana Fernández, a outra demandante, abandonou há alguns anos a catequese, quando há mais de uma década começou a investigar os crimes de lesa humanidade. “Comecei a buscar compreender por que todas as pessoas religiosas foram assassinadas, e não só na Argentina, que estavam comprometidas com a realidade de um povo oprimido, quase sempre por alguma ditadura”, explica agora a liderança da Teologia da Libertação. “Nesses tempos – prossegue –, montar cooperativas de trabalho não era algo comum como hoje. Muitos dos padres terceiromundistas trabalharam para fomentar a criação de comunidades, entre eles Angelelli em La Rioja. Mas não foi só isso. Não podemos ficar apenas com a imagem do ‘padre bonzinho’, essa que querem manter na memória na Igreja. O padre Soares era um padre revolucionário, comprometido tanto com o social como com o político. Me contaram, quase cochichando, que cada vez que matavam um peronista era a ele que chamavam para a missa de exéquias e que cedia a estrutura da igreja para que os Montoneros pudessem fazer suas reuniões”.
Em 1974, dois anos antes de morrer, os arquivos da Dipba recolheram que Soares rezou uma missa em memória de duas pessoas, cujos nomes aparecem riscados, na Capela Nossa Senhora do Perpétuo Socorro “com a participação de 600 pessoas”. Adriana estranhou o número, já que a localidade de “Rincón de Milberg era um lugar bastante despovoado e muito propício a inundações, embora possa ter sido organizada pela Juventude Peronista (JP) e, nesse caso, tenham participado militantes de outros bairros”. Segundo averiguações por conta própria, a missa foi rezada em memória dos militantes das Forças Armadas Peronistas (FAP) Manuel Belloni (24), pai da atriz Victoria Onetto e fundador da JP de San Fernando, e Diego Ruy Frondizi, ajudante de carpintaria de 23 anos.
Na missa, rezada três anos depois do assassinato dos fuzilados supostamente praticados pela Polícia de Buenos Aires no dia 8 de março de 1971, Soares disse – segundo a Dipba – que “os dois companheiros caíram crivados pelas balas do imperialismo e do capitalismo”. Além disso, o escrito policial assinala que o padre fez um apelo para continuar “a luta seguindo o exemplo de Jesus revolucionário, até conseguir a libertação da Argentina e depois da América Latina toda”. E acrescenta que “manifestou, ato contínuo, que ‘a Argentina é o melhor país para começar a luta pela libertação e que se deveria recorrer às armas, caso fosse preciso’”.
As duas mulheres demoraram anos para desentranhar a história, oculta atrás do terror semeado pela ditadura. Pablo Llonto, advogado demandante, destacou que “se responsabiliza as autoridades da Área 410 do Exército, encarregada pela repressão nos partidos de Escobar e Tigre, e a cargo da Escola de Engenheiros dependente do Comando de Institutos Militares, Campo de Maio”, que desenvolveram o plano sistemático de extermínio planejado e executado desde antes do golpe de 24 de março de 1976. “E também (se acusa) as comissárias e unidades regionais do lugar por dar a zona como liberada”.
O padre Pancho “foi assassinado por sua ideologia”, reitera Adriana Fernández. “Não podemos nos contentar com o fato de que foi uma boa pessoa, um exemplo. Devemos isso a ele e nós o devemos como sociedade. Necessitamos reivindicar as vidas daqueles que resistiram, diferenciando-se da Igreja cúmplice da ditadura. O Vaticano nos indica os santos dos quais podemos falar, e que nunca são as nossas referências latino-americanas, que não tem nada a ver com a nossa religiosidade popular. Nunca serão feitos santos, por exemplo, nem o Gauchito Gil, nem dom Angelelli, nem a freira francesa Alice Dumont. Para a cúpula eram marxistas, bispos vermelhos, que colocavam o catolicismo em perigo. O padre Soares era um militante e é necessário que lhe seja feito justiça”.
A revista Panorama reproduzia em 1965 o seguinte:
Pancho cruza uma rua de terra em sua bicicleta.
– Uma moedinha, padre!
– Não lhe peças, Mechi, que o padre é tão pobre quanto nós.
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O assassinato do padre sapateiro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU