Por: Cesar Sanson | 30 Março 2012
Em meio às discussões sobre o Código Florestal e mudanças climáticas, o Brasil perde um dos seus principais especialistas em biodiversidade.
A reportagem é de Sylvia Miguel e publicado no jornal da USP, 28-03-2012.
Abril de 2007. A humanidade voltava os olhos para os resultados da segunda parte do relatório do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC). Na sede do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP, a sala lotada ouvia atenta as conclusões dos especialistas, entre eles, cinco cientistas brasileiros participantes da elaboração do documento. Enquanto o mundo leigo recebia com espanto as previsões sombrias sobre o futuro do planeta, uma voz se levantou na plateia. Voz que fazia coro aos que iam “contra a corrente”. Era o professor Aziz Ab’Sáber, que, corajosamente, contestava o documento feito a centenas de mãos.
O que o professor contestava era o fato de a metodologia do relatório não considerar o paleoclima, pois os acontecimentos recentes seriam “uma réplica antrópica do que foi o optimum climatico no Holoceno”. A polêmica daquele 10 de abril foi registrada pelo Jornal da USP (edição 798), atestando o espírito combativo com que o geógrafo – que morreu no dia 16 de março passado, em sua casa, em São Paulo, aos 87 anos – angariava amigos fervorosos e críticos severos.
Código Florestal
Entre os inúmeros debates que travou, ele assumiu um posicionamento crítico às alterações do Código Florestal, desde 2001. Apresentou à Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) uma proposta “que se mostra atual dado o debate em curso na Câmara dos Deputados”, diz o professor Wagner Costa Ribeiro, colega da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. “Ele propunha uma definição do tamanho da área de proteção em função da especificidade do domínio morfoclimático em que se encontra, ou seja, os atributos naturais seriam considerados para manter a rica biodiversidade que ocorre no Brasil”, diz Ribeiro.
Autor do Floram – o ambicioso projeto de mapeamento de toda a flora e fauna paulista, financiado pela Fapesp –, Aziz Ab’Sáber foi decisivo para a iniciativa alcançar relevância científica e reconhecimento internacional, segundo o ex-reitor da USP e professor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA), Jacques Marcovitch.
“Tive a honra de ser amigo de Aziz Ab’Sáber. Trabalhamos juntos no Projeto Floram, desenvolvido pelo IEA. A missão da iniciativa foi criar um processo de recuperação da cobertura vegetal. Ab’Sáber afirmava que, a partir de qualquer setor preestabelecido, o Floram podia ser iniciado, pois, a despeito de seu caráter amplo, dito erroneamente de ‘megarreflorestamento’, era um somatório de projetos regionais, relacionado a uma correta tipologia de florestamentos ou reflorestamentos”, diz Marcovitch.
“Sem renunciar aos princípios que orientaram sua conduta política, esse brasileiro crítico e indignado dedicou-se, no projeto Floram, a construir uma ponte entre a Universidade e os empresários, fomentando um diálogo difícil, mas não necessariamente condenado à inviabilidade”, diz Marcovitch, citando uma declaração do geógrafo à revista Ciência Hoje: “Os empresários não vinham à Universidade porque a consideravam um antro da esquerda festiva e temiam que, ao revelar seus projetos, nós os combatêssemos. Através do Floram, eles passaram a ter informações que desconheciam e a receber conselhos impensados”.
Amazônia
A Amazônia tornou-se sua grande paixão, alvo de inúmeros estudos desde sua primeira viagem a Manaus, acompanhado por Ary França e o professor de Oceanografia Wladimir Besnard, num avião americano doado à FAB após o final da Segunda Guerra Mundial. “Em meu ponto de vista, seu trabalho de maior relevância foi o zoneamento ecológico e econômico da Amazônia, em que propõe a divisão desse domínio morfoclimático em 22 zonas, definidas em função de suas singularidades geográficas”, afirma Ribeiro.
A metodologia inovadora daquele zoneamento, que usa escalas de áreas de modo integrado para definir seus atributos e potenciais, está descrita no livro Amazônia: do discurso à praxis, vencedor do prêmio Jabuti de 1996 e editado pela Editora da USP (Edusp). Para Ribeiro, “as ideias do trabalho priorizando geração de renda e conservação da floresta em pé poderiam ser alinhadas à economia verde que será discutida na Rio+20”.
Biodiversidade era uma das preocupações recentes. Sua trajetória ficou marcada pelas reflexões originais sobre uma variedade de temas, pelo conhecimento profundo dos domínios morfoclimáticos e fitogeográficos do Brasil, pela atuação no planejamento e nas questões nacionais, pela presença combativa nos problemas ambientais e sociais, pela docência admirada, pelo pensamento global e pela linha teórico-metodológica que fez escola. Referência em geografia física e grande especialista em geomorfologia, perpassou também os campos da ecologia, da geologia, da arqueologia e até da biologia evolutiva.
Interdisciplinar por excelência, sofreu influência dos professores estrangeiros e da primeira geração que compôs o corpo de docência e pesquisa na USP. “Seus estudos globais sobre a paisagem brasileira e sua abordagem teórico-metodológica influenciam a maior parte dos geógrafos ainda hoje”, afirma o ex-pró-reitor de Cultura e Extensão Universitária e professor da FFLCH Adilson Avansi de Abreu.
Tudo isso aliado ao talento do olhar abrangente e o traço preciso de seus desenhos, considerados peças de alto valor documental e didático. “Seus desenhos eram peças de síntese, capazes de fazer convergir inúmeras informações, o que era uma característica forte dele”, afirma a geóloga May Christine Modenesi.
Observador
Desde que entrou na USP, em 1940, o filho de imigrante libanês e uma brasileira de ascendência portuguesa iniciou a explosão criativa que resultou em quase 400 trabalhos científicos. A grande maioria está reunida em A obra de Aziz Nacib Ab´Sáber, da Editora Beca, pela qual foi eleito o Intelectual do Ano, com Troféu Juca Pato de 2011.
Adorado por seus alunos, Ab’Sáber mantinha-se ativo no IEA até pouco antes da sua morte. Um dia antes de morrer, levou à sede da SBPC o compêndio de sua obra em DVD, “em um gesto de despedida, mesmo involuntário”, traz o site da Academia Brasileira de Ciências, do qual Ab’Sáber também era membro. Há artigos inéditos ainda a serem publicados pela SBPC e possivelmente pela Edusp.
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A atualidade de Aziz Ab’Sáber. O Brasil perde um dos seus principais especialistas em biodiversidade - Instituto Humanitas Unisinos - IHU