28 Março 2012
"Quando se pensa em Curió ou Ustra [coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, ex-comandante do DOI/CODI], pergunto: o que eles fizeram pela democracia? Como estender a lei a uma pessoa que comete uma violação sexual contra uma prisioneira política? É uma dissonância cognitiva com o que a lei diz. A lei não deve ser anulada porque foi benéfica, mas a interpretação que protege violadores está em benefício da impunidade", afirma Eduardo González Cueva, diretor do International Center for Transitional Justice (ICTJ).
Segundo ele, "A Comissão da verdade pode ser um passo adiante, na medida em que deve incluir uma justiça penal"
A entrevista é de Vandson Lima e publicada pelo jornal Valor, 28-03-2012.
Eis a entrevista.
Qual a sua avaliação da Comissão da Verdade brasileira?
O Brasil tem uma obrigação internacional de proporcionar às vítimas de violações de direitos humanos um recurso efetivo para valer seus direitos à justiça, à verdade e reparação. O país fez um trabalho importante neste campo com a Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos e a Comissão de Anistia. Creio que estão dando um passo importante com a criação da Comissão da Verdade e as comissões estaduais. Mas continua existindo deficiência séria na satisfação do direito das vítimas em ter acesso a recurso judicial. Não existe aqui investigação judicial correta dos crimes cometidos na ditadura. Persistem também interpretações errôneas da Lei de Anistia, que permitem sua extensão ao crime de lesa humanidade. A comissão da verdade pode ser um passo adiante, na medida em que deve incluir uma justiça penal.
Como a comunidade internacional vê a Lei de Anistia brasileira?
É uma lei com duas caras. Uma, absolutamente fundamental, é o benefício que proporcionou aos que eram resistentes à ditadura militar. Exilados ou torturados e que puderam se reintegrar à vida política nacional. Nesse sentido, foi uma conquista da sociedade brasileira, mas recordemos: a anistia não foi uma concessão graciosa do governo militar, mas uma exigência da sociedade mobilizada. Por outro lado, há algo que não está na lei, é uma interpretação posterior desta, que é estabelecer uma conexão bizarra, absurda, entre o perdão aos opositores e o perdão a quem os torturou. Já ouvi algumas opiniões de que a Lei de Anistia foi o preço a se pagar pela democracia. É uma afirmação correta quando pensamos em pessoas como [a presidente] Dilma Rousseff ou [o ex-ministro do STF] Eros Grau, que foram beneficiadas pela lei e puderam dar aporte positivo à democracia. Mas quando se pensa em Curió ou Ustra [coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, ex-comandante do DOI/CODI], pergunto: o que eles fizeram pela democracia? Como estender a lei a uma pessoa que comete uma violação sexual contra uma prisioneira política? É uma dissonância cognitiva com o que a lei diz. A lei não deve ser anulada porque foi benéfica, mas a interpretação que protege violadores está em benefício da impunidade.
Como o sr. interpreta a demora da presidente em escolher os integrantes da comissão?
O que posso dizer é o quão importante é que a indicação ocorra logo. Quanto mais se demora para iniciar o processo [de investigação], mais tempo há para que surjam preconceitos e ações de insubordinação, como as que vimos dos militares da reserva, setores desprovidos de informação e cheios de preconceitos - e os disseminam. E como a Comissão não caminha, não há quem a defenda.
Qual o grau de atenção que o mundo dá a esse processo no Brasil?
Há uma grande atenção ao que se passa no Brasil em relação à busca da verdade e a luta contra a impunidade. É óbvio para todos os latinoamericanos a admiração, o respeito que há pelo que o Brasil pode representar, uma vez que toma responsabilidades cada vez maiores no cenário mundial. Mas para isso é preciso ter a casa limpa, apresentar ao mundo uma democracia completa, sem dívidas com seu passado. A Comissão da Verdade, respostas efetivas à sentença do Araguaia e a abertura dos documentos secretos, juntos, trarão um grande fortalecimento à democracia brasileira.
Dos modelos de Comissão da Verdade mundo afora, qual considera o mais bem acabado?
Há de se considerar que as comissões da verdade são historicamente um instrumento muito recente. Ao contrário dos tribunais penais, que tem uma tradição de centenas de anos, com escolas, modelos, tradições jurídicas, as comissões têm coisa de 30 anos de existência, ainda que com muita experimentação e criatividade. Não me atreveria a dizer que há um modelo em especial para o Brasil seguir, mas há princípios que deveriam ser observados.
Quais?
Primeiro, as comissões devem estar centradas nas vítimas, em sua voz e experiência de sobrevivência. Essa é a grande diferença para o judiciário. Este fica centrado no acusado, em provar culpa ou inocência. Ao passo que uma comissão deve resgatar a dignidade das vítimas, é o primeiro fato que os comissionados devem considerar. No Peru, 22 mil pessoas foram ouvidas, suas histórias pessoais foram registradas, o que não acontece num tribunal penal. A verdade não é uma tarefa só do Estado. É um conceito complexo, de muitas versões. A verdade é um processo social. Quanto mais esforço dos governos, da sociedade, de pesquisadores em mostrar suas versões, terão mais sucesso nesse processo. Outra coisa é buscar interlocução com a sociedade, fazê-la comprar essa briga, ouvir suas expectativas sobre os trabalhos.
O período a ser analisado, de 1946 a 1988, foi considerado demasiado longo por especialistas.
Eu concordo. Mas ao mesmo tempo, não acho que seja impossível de trabalhar. Como as comissões normalmente são muito centradas nos relatos de pessoas que estão vivas, naturalmente haverá maior acesso a informações sobre o que aconteceu na ditadura militar. Contudo, é importante documentar casos anteriores a 1964, porque permitirá apresentar um contexto histórico. O país é tão grande e a história da ditadura no Brasil é tão complexa que o trabalho das comissões locais, estabelecendo convênios e boas relações com a organização nacional, será fundamental para se lograr êxito. Mas é possível sim.
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"Papel mundial do Brasil exige democracia sem dívidas com o passado" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU