10 Março 2012
"Os ossos das cavalas são perigosos”, disse Terumi Hangai, 50, enquanto procurava o desenho a lápis colorido mostrando um peixe azul e branco sorrindo docemente. “O estrôncio radioativo acumulou em seus ossos.” Isso é ruim para Hangai e seus compatriotas, para quem o peixe é um prato popular. O espinafre, por outro lado, não apresenta mais problema. Hangai diz que também não faz mal beber o leite de Fukushima. Suas alegações são corroboradas tanto por dados do governo quanto por especialistas independentes.
A reportagem é de Heike Sonneberger, publicada pela revista Der Spiegel e reproduzida pelo Portal Uol, 10-03-2012.
Terumi Hangai é professor e químico. Antes do terremoto, ele dava reforço escolar às crianças japonesas para ajudá-las a tirar boas notas. Mas, desde a catástrofe do dia 11 de março de 2011, os jovens da cidade de Tamura não parecem estar com disposição para estudar. Quando perguntado se ele acha que isso está relacionado ao acidente nuclear, ele responde, com um suspiro: “Não sei”.
A cidade de Tamura fica a cerca de 50 km a leste da usina nuclear de Fukushima. Os níveis de radiação são quase os mesmos que em alguns lugares no Estado da Bavária, no sudeste da Alemanha - em outras palavras, não são altos o suficiente para imporem risco imediato à saúde. Ainda assim, os alunos de Hangai passaram a evitar sua escola, deixando-o com muito tempo nas mãos. Longe de entediado, porém, Hangai está determinado. É um homem imbuído de uma missão.
Quilos de pêssegos de Fukushima
Hangai está determinado a libertar o povo de sua cidade do medo da radiação. Só o que é preciso para sua tarefa são dados, sua especialidade em química e sua risada contagiante.
Hoje, ele vai visitar a vila de Kasturao, localizada justamente nos limites da zona de exclusão de 20 km em torno da usina nuclear destruída. Algumas das casas da vila estão localizadas do outro lado dos bloqueios, na estrada que leva à zona de exclusão. Quase todos os moradores fugiram após o desastre, para se protegerem da radiação. Mas Hangai diz que, apesar dos níveis de radiação talvez estarem mais altos do que no passado, não são perigosos.
“Nenhum político ou cientista quer assumir a responsabilidade, então eu decidi assumir!”, diz ele. Quando perguntado por que, ele resmunga “porque amo Katsurao e quero que as pessoas recuperem suas vidas e sejam felizes novamente”.
Hangai desliza pela estrada coberta de neve para Katsurao. “Acredito nos números do governo”, diz ele. Afinal, os dados foram coletados por pesquisadores com instrumentos de alta qualidade. “Um deles custa 15 milhões de ienes (em torno de R$ 300 mil)”. Hangai vira a cabeça com entusiasmo para falar com o passageiro, e o carro sai do curso brevemente. Ele se lembra como, no verão passado, sua mulher comprou quilos de pêssegos da região em torno de Fukushima, a preços incrivelmente baixos. Ninguém os queria, apesar de não estarem contaminados.
Na aldeia de Katsurao, tudo está quieto, exceto pelo pio de alguns corvos. O gelo desce pelo telhado de um grande curral que costumava abrigar centenas de cabeças de gado. Pardais saem pela janela de uma caminhonete. Hangai anda pela neve com seus sapatos de couro caros. Apesar de preferir passar seu tempo em restaurantes finos, ele não reclama. Ele acredita que o que está fazendo é importante. Ele quer que seu visitante alemão compreenda o que o medo da radiação fez com essa vila.
Três mulheres estão sentadas em um contêiner de obra no meio da vila. “A radiação é nossa maior preocupação”, diz Yukimi Yoshida, 57. Ela costumava vender biscoitos de arroz em uma loja próxima. Agora veste um colete azul e um chapéu com as palavras “nunca desistiremos”. Ela pertence ao grupo de vigilantes contra o crime que está trabalhando para proteger Katsurao de pilhadores. Está quente dentro do contêiner. A própria Yoshida costurou as corujas de pano, e há um bule de chá no aquecedor. Quando passa um carro do lado de fora, as mulheres viram a cabeça. Elas anotam o modelo, a cor, o número da placa e os passageiros. O que uma não vê, as outras veem. E se alguém furtar uma televisão ou outra coisa, elas talvez possam ajudar a resolver o caso.
Até 10 microsieverts não tem problema, diz Hangai
As mulheres ficam felizes em ter esse trabalho. Elas se dão bem, melhor do que antes do terremoto. Elas também têm boas relações com a polícia de Tóquio que patrulha a região, algumas vezes advertindo os motoristas sobre os javalis selvagens. Seu trabalho é o único raio de esperança que têm nessa época triste.
Hangai diz a elas que em certas regiões do mundo - no Irã, por exemplo - o nível natural de radiação é permanentemente de 10 microsieverts. Em um riacho próximo, seu contador deu um pico em cinco microsieverts. Pessoalmente, ele não acha que uma medição de menos de 10 seja qualquer coisa a se preocupar. Os olhos das mulheres se iluminam.
Hangai também conta a elas sobre sua mãe, que teve que sair da zona de exclusão. “No final, só o que ela fazia era comer e dormir”, disse ele, “e em novembro ela morreu”. Yoshida acena com a cabeça, visivelmente comovida. Sua mãe de 84 anos também morreu após o estresse de ter que deixar sua casa. “Os efeitos espirituais e econômicos da catástrofe são o maior problema”, diz Hangai, enquanto dirige pelas estradas suaves.
Cerca de mil moradores de Katsurao hoje moram em dez acampamentos provisórios diferentes, todos a cerca de uma hora de suas casas. Hisayoshi Matsumoto está abrigado em um deles. Ele abriu uma loja no meio do abrigo para os idosos que não conseguem andar muito. Ele vende tabaco, álcool, biscoitos de arroz e cilindros de propano. “Minha loja em Katsurao era dez vezes maior; aqui é muito apertado”, diz ele. Ainda assim, não quer voltar, por causa da radiação. Pode não ser tão alta, mas ainda está pelo menos 20 vezes maior do que antes. “Não pode fazer bem!”, diz ele.
Muitos no acampamento concordam. Hangai passa por eles como um pássaro, trazendo mensagens cheias de esperança. Tomoko Matsumoto, enfermeira de 36 anos, ouve cada uma de suas palavras. Até agora, ela não conseguia se livrar do desconforto em relação à radiação. Por isso ela não compra mais legumes de Fukushima, pois tem quatro filhos, um deles com apenas um ano de idade. Ela ouve cuidadosamente os conselhos práticos de Hangai: cuidado com cavala, truta, cogumelos e javali.
Refúgio subterrâneo
Muitos aqui se sentem abandonados pelo governo. Hangai reclama que os políticos em Tóquio estão querendo manter a comida totalmente livre de radiação e, assim, aprovam regulamentos cada vez mais rígidos. Mas isso, de acordo com Hangai, é um absurdo. O corpo humano é cheio de substâncias radioativas, com ou sem acidente nuclear. De acordo com os cientistas, as pessoas comem constantemente radionuclídeos naturais como o potássio 40. O nível médio de radiação no corpo humano é de cerca de 8.000 becqueréis.
“Eles só deixaram Katsurao porque eles não têm qualquer conhecimento de radioatividade”, diz Hangai. Sua meta é reunir ministros, especialistas e administradores locais para que resolvam os problemas de Fukushima. O professor gosta de se ver no papel de um salvador da comunidade. “Sou famoso aqui”, murmura contente.
O temor de Hangai de radiação deve ter sido considerável. Há cerca de 12 anos, ele construiu uma sala a prova de radiação no porão de sua casa. “Eu estava com medo de ataques de mísseis da Coreia do Norte”, diz ele. “Na época, eu nem tinha considerado um tsunami”. Por sorte, diz ele, Fukushima escapou desta vez com pouco mais que um olho roxo. Agora é hora de o resto do mundo admitir isso e acabar com o preconceito contra tudo o que vem da região.
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No Japão, missionário solitário luta para que seu povo não tenha medo da radiação - Instituto Humanitas Unisinos - IHU