Por: Cesar Sanson | 07 Março 2012
Ao basear o crescimento econômico no consumo, o governo brasileiro fica de mãos amarradas para combater um problema que tem prejudicado gravemente a indústria nacional e elevado o custo de vida no Brasil: a valorização do real. A opinião é do embaixador Rubens Ricupero, ex-secretário geral da Unctad (Conferência da ONU para o Comércio e Desenvolvimento) e ministro da Fazenda no governo Itamar Franco (1992-1994).
Em entrevista ao jornalista João Fellet da BBC Brasil, 06-03-2012, Ricupero diz que, ao privilegiar o consumo, o governo dá margem para que haja deficit nas contas externas, uma vez que parte da demanda interna terá de ser atendida por produtos importados. Para cobrir o rombo na balança comercial, afirma ele, o país terá de recorrer à entrada de capital estrangeiro – o que por sua vez alimentará a valorização do real e reduzirá a competitividade dos produtos nacionais no exterior.
“Acho que é um dilema que o governo brasileiro não resolveu, e minha impressão é que sabe que não pode resolver, porque é contraditório com uma política econômica baseada no consumo”, diz.
Ricupero afirma ainda que, afora reduzir a taxa básica de juros, o governo não tem atacado os principais problemas econômicos do país, como a infraestrutura falha e a alta carga tributária.
Eis a entrevista.
O que mudou na política externa brasileira desde o governo Dilma?
Em termos políticos, houve retificações importantes em relação ao Irã, à postura geral sobre direitos humanos. Em consequência disso, a relação com os Estados Unidos foi mais valorizada. Também há menos personalismo. Antes a diplomacia estava muito personalizada na figura do presidente (Luiz Inácio Lula da Silva). A presidente atual é mais sóbria em termos de inciativas e gestos. Quanto a isso, há evolução considerável. Quanto a aspectos econômicos e comerciais, a evolução ou não é tão nítida, ou não tão positiva. Em juízo geral, minha impressão é que a situação em relação a grandes problemas econômicos pode ser resumida naquela expressão inglesa “muddling through”. Ou seja, não estamos atacando problemas mais profundos, como competitividade, produtividade, custo Brasil, reforma tributária. E não estamos resolvendo o problema do câmbio. O Brasil é o país emergente que teve maior apreciação de moeda neste ano.
As medidas que o governo tem tomado para conter a valorização do real, como elevar o Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) sobre empréstimos tomados no exterior, não surtem efeitos?
Elas estão no caminho certo e fazem parte do arsenal de controle de capital, mas as medidas têm que ser reforçadas até começarem a dar certo. O problema é que o governo brasileiro não tem condição de ir muito longe, porque estamos com uma política econômica de garantir crescimento exclusivamente através do consumo e do crédito. Essa política gera inelutavelmente deficit em conta corrente, porque parte da demanda não vai ser atendida pela indústria nacional, mas sim por importações.
Isso causa um rombo nas contas externas, e a única forma de cobri-lo é deixar entrar capital. O governo brasileiro de vez em quando controla capital, de vez em quando reduz o controle: fica negociando. E no fundo também usa a taxa de câmbio para controlar inflação, como fazia (o ex-presidente do Banco Central, Henrique) Meirelles. Uma das razões da redução do ritmo inflacionário nos últimos meses foi sem dúvida a taxa de câmbio, porque a moeda brasileira voltou a se apreciar.
Acho que é um dilema que o governo brasileiro não resolveu, e minha impressão é que sabe que não pode resolver, porque é contraditório com uma política econômica baseada no consumo. O consumo representa no Brasil hoje 66% do PIB, quase como estava nos Estados Unidos, onde representava 70%. Os Estados Unidos viveram assim além dos meios, durante anos e anos, mas com deficits colossais em conta corrente, cobertos pela China. O caso brasileiro, mutatis mutandi, é parecido. Está se falando que o consumo privado aumentará 13% neste ano.
À parte o câmbio, o governo tem combatido a falta de competividade em outras frentes?
Tirando (a redução da) taxa de juros, que é um passo na direção certa, o resto são medidas de curto prazo, que não resolvem o problema. Na questão tributária, da carga dos impostos, o superavit primário do começo de ano se deveu em grande parte à arrecadação maior. Aquilo que se anunciou que se procuraria fazer, melhorar a folha de pagamentos, o que torna caro contratar empregado no Brasil, não foi feito. Fora a área das commodities, em que o país tem competividade, o Brasil tem adotado posturas que o colocam numa saia justa na OMC (Organização Mundial do Comércio), como as medidas anunciadas tempos atrás no setor de automóveis.
Essas medidas não protegem a indústria nacional?
A curto prazo, ajudam. Mas as medidas tomadas aqui, como aquelas obrigando fabricantes a usarem conteúdo local na produção de automóveis, por exemplo, são ilegais pela OMC. São medidas toscas, primitivas. Se alguém contestar e abrir um painel, o Brasil terá problemas. O caminho certo é melhorar a competitividade. A defesa apenas ganha tempo.
O senhor escreveu que o novo porte da economia brasileira exige que se reforce a área internacional do ministério da Fazenda e do Banco Central, assim como a área econômica do Itamaraty. Qual a importância desse reforço?
É muito grande, porque como o Brasil faz parte do G20 (grupo que reúne as vinte maiores economias globais), tem que participar de um número enorme de comissões e grupos e, por isso, tem que preparar quadros. Até o governo passado, nossos quadros eram muito modestos, eram gente de qualidade, mas muito poucos. No Itamaraty, houve um reforço no setor de contenciosos. Nos outros (ministérios), tenho a sensação de que não houve grande coisa. Um indício indireto é a má qualidade das medidas de política comercial. São medidas tomadas por gente que não é do ramo. Me parece que o pessoal do Itamaraty que conhece o tema nem foi consultado.
De onde vêm essas decisões?
Tenho impressão de que muita coisa vem da Fazenda. Não é questão de defender ou não defender (a indústria nacional), mas de defender bem. Defendemos de maneira muito galega, muito aberta à contestação.
O país deveria privilegiar setores industriais mais competitivos?
Não acredito nisso. Esse negócio já tentamos, com a Lei de Informática (1984), mas não deu certo. Temos que melhorar condições gerais de competitividade da economia, o que depende dos problemas estruturais. Mas não vejo nenhum apetite do governo para enfrentar isso. Muitas das reformas que o Brasil tem que fazer seriam difíceis, exigiriam grandes embates no Congresso. Mas há um exemplo escandaloso: alguns Estados, sobretudo Espírito Santo e Santa Catarina, dão incentivos a importador que importa por portos naqueles Estados. No porto de Itajaí (SC), quem importa produtos da China ou de outros países tem uma série de isenções de taxas estaduais. Isso faz com que vivamos uma situação kafkiana, porque produtor brasileiro daquele mesmo produto tem que pagar aqueles impostos quando vende para Santa Catarina.
Antigamente a guerra fiscal era para atrair investimentos. Essa guerra é para atrair importação, ou seja, tirar empregos do Brasil. Esse problema, que numa escala de um a mil de dificuldade tem grau um, o governo não consegue resolver. Como vai resolver os outros? Sou extremamente pessimista.
Apesar disso, a economia brasileira tem crescido num momento de grave crise na Europa e nos Estados Unidos. A que se deve esse desempenho?
Isso está se mantendo porque as commodities (matérias-primas) conseguem bons preços. Mesmo assim, o Brasil está com deficit em conta corrente no melhor momento que as commodities tiveram nos últimos 25 anos. Os países que dependem de commodities em geral estão bem. Se tiverem deficit, como a Argentina, é minúsculo. O Brasil, não: embora preços das commodities estejam muito altos, o Brasil tem deficit, o que é alarmante. Ninguém se dá conta porque está entrando dinheiro, mas no dia em que houver movimento qualquer de não entrar dinheiro, será um deus nos acuda. Vai repetir o que aconteceu em 1998 e 1999, com a diferença de que hoje temos mais reservas. Mas não é uma situação tranquila.
O Brasil tem se queixado do desequilíbrio em sua relação comercial com a China, por exportar quase exclusivamente matérias-primas enquanto importa sobretudo produtos industrializados dos chineses. Há margem para reduzir essa assimetria?
O Brasil tem razão em reclamar, mas tem que procurar melhorar condições de competitivade. Os custos aqui estão muito altos. Grande parte disso é causada pelo câmbio, mas há outras razões. Até poucos anos atrás, o Brasil era imbatível em açúcar e álcool. Hoje não é mais, nosso custo de produção nesses produtos é superado por vários países. O câmbio afeta não só produtos industriais, mas também produtos primários. Qualquer um que viaja notará que o Brasil é um dos países mais caros do mundo. O fato de o país ser caro significa que a produção aqui é cara, e se é cara como vai vender no exterior? Não se pode esquecer nunca a frase luminosa do ex-ministro Mario Henrique Simonsen (1935-1997): os juros aleijam, mas o câmbio mata a economia.
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Crescimento baseado em consumo alimenta valorização cambial, diz Ricupero - Instituto Humanitas Unisinos - IHU