28 Fevereiro 2012
Quando o aquecimento central quebrou em uma igreja no norte de Londres no meio de uma frente fria outro dia, o vigário ofereceu uma escolha aos fiéis: irem para outra igreja para uma celebração mais aconchegante, ou demonstrarem o que chamou ironicamente de “cristianismo vigoroso”, ao rezarem em uma capela lateral em sua própria igreja não aquecida.
A reportagem é de Alan Cowell, publicada pelo International Herald Tribune e reproduzida pelo Portal Uol, 28-02-2012.
Talvez de modo surpreendente, talvez não, os cristãos “vigorosos”, apesar de trêmulos, parecerem superar em número aqueles que procuraram bancos mais quentes – uma indicação, alguns poderiam argumentar, de que a religião oficial do Reino Unido pode recorrer a bravas reservas diante da adversidade.
Ela pode precisar. Em um debate mais amplo que preocupa cristãos e não fiéis, alguns aqui descreveram uma tendência de exclusão da fé da vida pública semelhante à laicidade que oferece uma separação rigorosa e sem concessão da Igreja e do Estado na França.
A disputa teve início com uma decisão na Justiça proibindo orações cristãs na abertura de uma reunião dos vereadores locais na cidade de Bideford, no oeste – uma decisão que levou um ministro conservador do governo a dizer que faria uso de outros métodos para derrubar a proibição.
Ao mesmo tempo, uma pesquisa realizada por um grupo secular apontou que quase metade daqueles que se identificam como cristãos não frequentou missas ou serviços religiosos ao longo do último ano –independente de ter aquecimento ou não– fora casamentos, funerais e batismos. Muitos não tinham familiaridade com a Bíblia, apontou a pesquisa, e a proporção de britânicos que se identificam como cristãos caiu de cerca de três quartos para apenas pouco mais da metade.
A combinação das duas inspirou um debate carregado de emoção. A rainha Elizabeth II, que é tanto a líder da Igreja Anglicana quanto a chefe do Estado britânico, foi levada a dizer que “o conceito de nossa Igreja estabelecida é ocasionalmente incompreendido e, eu acredito, habitualmente subapreciado”.
Antes de uma visita oficial ao Vaticano, a baronesa Sayeeda Warsi, a primeira mulher muçulmana a ocupar uma cadeira no Gabinete britânico, falou sobre os riscos de uma “secularização militante”, que ela chamou de “profundamente intolerante”.
Outros, como o blogueiro Ian Dunt, concluiu que “aqueles que exigem um país cristão e de valores cristãos são traidores da cultura britânica”.
“A qualidade histórica do Reino Unido é sua associação com a liberdade individual, não com o pensamento coletivo.”
Para alguns, entretanto, o anglicanismo é quase uma vítima de sua própria passividade, uma suposição, um canto da vida não perturbado pelo desejo de sobreviver diante das percepções de ameaça existencial.
Essa noção de fé privada e redenção pessoal ganhou destaque pelo furor que tomou conta do Afeganistão depois que forças da Otan, na maior base dos Estados Unidos no país, queimaram edições do Alcorão. Nada nos desafios enfrentados pelo anglicanismo –desde a diminuição das congregações até as questões maiores sobre o papel das mulheres e dos gays na Igreja– chega próximo de estimular as mesmas paixões.
Em seus confrontos com o Ocidente, desde antes dos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001 e de serem amplificados pelas guerras no Iraque e no Afeganistão, o Islã militante passou a lembrar algo altamente inflamável, capaz de transformar em conflagrações o que os ocidentais gostariam de tratar como queimadas – literalmente, no caso da queima dos Alcorões – alimentadas pela mistura incendiária de sensibilidade religiosa e fracasso em entender o poder da fé que os estrangeiros ignoram ou negam, a seu próprio risco.
Além disso, nos vários locais da revolta árabe no Oriente Médio e no Norte da África, os estrategistas ocidentais têm se preocupado abertamente com a possibilidade do desmonte do status quo – estabelecido nas suas linhas mais gerais com o desmanche do Império Otomano há quase um século – ter ajudado a fundir o poder temporal e religioso de uma forma que o Ocidente ou proibiu ou esqueceu, mais evidentemente com o sucesso eleitoral da Irmandade Muçulmana no Egito.
Quando os jovens guerreiros e insurgentes da Primavera Árabe brandem seus rifles de assalto Kalashnikov na Síria ou na Líbia, eles bradam “Allahu akbar” – “Deus é grande”. Quando os anglicanos no Reino Unido cantam o hino “Avante soldados cristãos/marchando como para a guerra”, o eco da batalha terrena é fraco.
As cruzadas, em seu zelo proselitista, manchado de sangue, acabaram séculos atrás. Faz quase 500 anos desde que Henrique VIII rompeu com Roma em 1533. As paixões esfriaram desde as guerras religiosas da Europa nos séculos XVI e XVII, após a Reforma Protestante.
Na era colonial, é verdade, a crença do Reino Unido em sua fé era tão inabalável que seus missionários cristãos se espalhavam pelo mundo como a vanguarda da penetração comercial e do expansionismo político. Mas os dias do império há muito são coisa do passado.
Os chamados Problemas na Irlanda do Norte estão ficando para trás na memória, certamente entre os anglicanos na ilha britânica principal, desde que o Exército Republicano Irlandês (IRA), predominantemente católico romano, declarou trégua em 1994. A luta e perseguição nas Guerras do Bálcãs encontram pouca ressonância. O anglicanismo moderno não tem nenhum ponto de referência de perseguição e vitimização como o judaísmo e o Holocausto.
Mas, como a mais recente controvérsia em torno do secularismo revelou, nada disso significa que não existe paixão para ser reacesa nesta fé internalizada e grande parte do debate recente parece ignorar o ajuste dos laços dos britânicos com o divino.
A fé aqui funciona variadamente como fonte de conforto, consolo e reflexão, um prelúdio para a eternidade, uma preparação para o além, um guia para este mundo e uma esperança pelo próximo, parte teologia, parte comunidade de chá e bolo, parte festas de levantamento de fundos para a torre do sino, combinando hábito, ritual e crença em quantidades variáveis. Mas não é lar para extremos.
O colunista David Aaronovitch, que se definiu em um artigo recente como parte judeu por nascimento, ateísta por convicção, mas anglicano por “simpatia estética”, escreveu no “The Jewish Chronicle” que a Igreja da Inglaterra estava “cheia de dúvida e incerteza, e está claro que as fés – religiosas ou não – são mais perigosas quando acreditam ter certeza”.
“Fé cega é o inimigo”, ele disse, “não a religião” – um ponto de vista que os fiéis naquela capela fria no norte de Londres quase certamente também teriam apoiado.