21 Fevereiro 2012
No debate sobre controle de natalidade nos EUA, o erro de Obama foi querer apaziguar os bispos católicos para evitar problemas políticos, avalia Gary Gutting, professor de Filosofia da Universidade Notre Dame, em artigo publicado no The New York Times e reproduzido pelo jornal O Estado de S. Paulo, 21-02-2012.
Eis o artigo.
A decisão do governo Obama exigindo que instituições católicas, como hospitais e universidades, ofereçam um seguro de saúde que abranja medidas de controle de natalidade, levou a uma resposta furiosa dos bispos. Eles afirmam que isso significa uma violação da consciência, pois o controle da natalidade é contrário aos ensinamentos da Igreja.
O que me interessa como filósofo - e católico - é que praticamente todas as partes deste debate assumem que os bispos estão certos, que o controle da natalidade é contrário aos "ensinamentos da Igreja Católica". O único problema é como, se fosse o caso, o governo deveria "respeitar" tal ensinamento. Como os críticos sublinham constantemente, 98% das católicas americanas sexualmente ativas fazem controle da natalidade e 78% dos católicos acham que um "bom religioso" pode rejeitar o ensinamento dos bispos neste caso. Mas a resposta da Igreja tem sido de que, independentemente do que a maioria dos católicos faz e pensa, o controle da natalidade é moralmente errado.
A Igreja não é uma democracia. O que a ela ensina é o que os bispos dizem que deve ser.
Mas isso é verdade? A resposta exige alguma reflexão sobre a natureza e as bases da autoridade religiosa. Em última instância, a alegação que essa autoridade deriva de Deus. Mas como vivemos num mundo humano em que Deus não fala diretamente conosco, precisamos perguntar: quem decide que Deus concedeu aos bispos a sua autoridade?
Não tem sentido dizer que devemos aceitar sua autoridade religiosa porque eles afirmam que Deus a concedeu a eles. Se assim fosse, qualquer pessoa que se proclame uma autoridade religiosa terá de ser reconhecida como tal. Em nossa sociedade secular, democrática, de onde vem exatamente esse reconhecimento? Em princípio pode vir de alguma outra autoridade, como o governo secular. Mas há muito tempo renunciamos à noção (cujus regio, ejus religio - sua religião de acordo com sua região) de que o nosso governo pode legitimamente designar a autoridade religiosa em seu domínio.
Mas, se o governo não pode determinar a autoridade religiosa, com certeza nenhum poder menos secular o poderá. Especialistas em teologia nos dizem o que os bispos ensinaram durante os séculos, mas não significa que os ensinamentos têm autoridade divina.
Na nossa sociedade democrática o árbitro em última instância da autoridade religiosa é a consciência individual daquele que crê. Portanto, a única alternativa é aceitar que os membros de um grupo religioso sejam, eles próprios, a única fonte de decisão legítima para aceitar que seus líderes tenham sido autorizados por Deus. Eles podem errar, mas prestarão contas do seu julgamento somente a Deus. Neste sentido, até a Igreja Católica é uma democracia.
Mas, mesmo assim, os membros da Igreja Católica não têm reconhecido seus bispos como tendo plena e exclusiva autoridade para determinar os ensinamentos da Igreja? De modo algum. Houve talvez uma época em que uma vasta maioria de católicos aceitou os bispos como possuidores do absoluto direito de definir as doutrinas éticas e teológicas. Essa época, se é que existiu, foi há muito tempo. Muitos católicos - ou, para ser mais preciso, pessoas que foram educadas na religião católica ou se converteram adultas ao catolicismo e continuam a respeitar seriamente os ensinamentos e práticas da Igreja - hoje se reservam o direito de rejeitar doutrinas impostas pelos seus bispos e de interpretar à sua própria maneira aquelas que aceitam. É um fato verdadeiro, sobretudo em assuntos envolvendo moralidade sexual, especialmente o controle da natalidade, que a maioria dos católicos concluiu que os ensinamentos dos bispos não se aplicam a eles. Tais "reservas" são uma restrição fundamental da autoridade dos bispos.
Os bispos e a minoria de católicos que apoiam sua plena autoridade tentam marginalizar os fiéis que não aceitam que os bispos sejam os árbitros absolutos da doutrina. Eles os qualificam como adeptos do "catolicismo ao gosto do freguês", sugerindo que os únicos "verdadeiros católicos" são os que aceitam os ensinamentos dos bispos integralmente. Mas cabe aos fiéis decidir a extensão da autoridade episcopal. Os bispos, na verdade são, como afirmam com frequência, "os servos dos servos do Senhor".
O erro do governo Obama foi aceitar a alegação dos bispos de que a sua posição sobre a questão do controle da natalidade expressa ensinamento peremptório da Igreja. (Naturalmente o governo pode estar certo ao achar que os bispos devem ser apaziguados porque podem causar problemas políticos). A reivindicação dos bispos à autoridade neste caso está prejudicada porque os católicos a rejeitaram decisivamente. A imoralidade do controle da natalidade não é mais um ensinamento da Igreja Católica. Em sua encíclica de o papa Paulo VI visava solucionar o assunto à maneira do famoso refrão Roma locuta est, causa finita est - Roma falou, questão encerrada. Na verdade a questão foi solucionada pela voz dos fiéis católicos.
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Os fiéis é que mandam - Instituto Humanitas Unisinos - IHU