25 Janeiro 2012
No outono, quando as plantações de arroz deste vale amadureceram e transformaram-se uma espécie de carpete dourado, os inspetores vieram para medir o nível de contaminação radioativa.
Onami fica apenas 56 quilômetros a noroeste da arrasada usina nuclear Fukushima Daiichi, que emitiu césio sobre grande parte desta região rural em março do ano passado. No entanto, os inspetores do governo declararam que o arroz de Onami estava apropriado para o consumo após terem conduzido testes em apenas duas das 154 fazendas de rizicultura da região.
A reportagem é de Martin Fackler, publicada pelo jornal The New York Times e reproduzida pelo Portal Uol, 24-01-2012.
Alguns dias mais tarde, um fazendeiro cético de Onami, que queria ter certeza de que o arroz que ele produzia era seguro para que o seu neto, que estava de visita, o consumisse, exigiu que a sua colheita fosse submetida a um teste. Ele descobriu que os níveis de césio nos grãos excediam aqueles considerados seguros pelo governo. Nas semanas seguintes, mais de dez outros fazendeiros encontraram níveis de césio perigosos nas suas safras. O pânico que se seguiu obrigou o governo japonês a intervir com promessas de realizar testes de radioatividade em mais de 25 mil fazendas na região leste de Fukushima, onde fica a usina nuclear.
O pânico revela como, quase um ano após um enorme terremoto e um tsunami terem provocado um derretimento nuclear triplo na usina nuclear Fukushima Daiichi, o Japão ainda está encontrando dificuldades para proteger as suas reservas de alimentos da contaminação radioativa. A descoberta de arroz contaminado em Onami e um caso similar em julho envolvendo carne bovina contaminada fizeram com que as autoridades procurassem freneticamente corrigir as falhas expostas nas medidas para testar os alimentos. Muitas dessas medidas foram implementada às pressas após o acidente nuclear.
As falhas seguidas não fizeram apenas com que aumentasse o temor quanto à possibilidade de que alguns japoneses tenham sido expostos a níveis inseguros de radioatividade nos alimentos. Elas tiveram também um efeito corrosivo sobre a confiança popular nas medidas de monitoramento dos alimentos. Um segmento crescente da população e até mesmo especialistas passaram a acreditar que as autoridades minimizaram ou até mesmo encobriram o nível real de riscos à saúde da população a fim de reduzir os danos econômicos e o tamanho das potenciais indenizações.
Os críticos dizem que autoridades dos setores agrícola e de saúde se apressaram em permitir que alimentos seguissem para o mercado sem terem sido adequadamente testados, ou que elas ignoraram os apelos dos consumidores para que os resultados dos testes fossem integralmente divulgados. Além do mais, esses críticos afirmam que o governo não tem mais como esconder os fatos da população, conforme ele teria feito rotineiramente em outras ocasiões.
“Depois do acidente o governo tentou dar seguimento à mesma abordagem, minimizando a gravidade do acidente e insistindo que ele sabe de tudo”, critica Mitsuhiro Fukao, professor de economia da Universidade Keio, em Tóquio, que escreveu a respeito da falta de confiança no governo. “Mas as pessoas estão descobrindo em blogs, no Twitter e no Facebook que o sistema de monitoramento de alimentos do governo simplesmente não convence”.
Um resultado disso foi uma onda de ativismo cívico, algo raro em uma nação cuja sociedade civil depende mais da sua elite burocrática do que de grupos de cidadãos para proteger os interesses nacionais, incluindo a saúde pública. Não mais acreditando que o governo está defendendo os seus interesses, grupos de consumidores, e até de agricultores, recém-criados estão começando a implementar as suas próprias medidas de monitoramento da radiação.
Mais de dez estações de monitoramento da radiação, a maioria operada por voluntários, foram instaladas na região de Fukushima e até mesmo em Tóquio, que fica a 150 quilômetros da usina acidentada. O objetivo deles é oferecer uma rede alternativa de medição da radiação que seja mais rígida e transparente do que o monitoramento feito pelo governo.
“Ninguém confia nos padrões de segurança estabelecidos pelo governo nacional”, diz Ichio Muto, 59, que cultiva cogumelos orgânicos em Nihonmatsu, que fica 40 quilômetros a noroeste da usina de Fukushima Daiichi. “A única forma de reconquistarmos os nossos clientes é dizendo tudo a eles, de forma que eles possam decidir por conta própria o que irão comprar”.
Muto é um dos 250 agricultores de Nihonmatsu que criaram um centro improvisado de medição de radiação em um estacionamento de caminhões. Em uma manhã recente, ele e outros seis fazendeiros reuniram-se na pequena cozinha do estacionamento de caminhões. Lá, eles fatiaram nabos daikon, alhos-porós e outros produtos antes de colocá-los separadamente dentro de um dispositivo para testes, que custa US$ 40 mil, e que foi doado por uma organização não governamental.
Os fazendeiros testam amostras de todos os produtos que cultivam, e depois disponibilizam os resultados na Internet para que todos possam vê-los. Muto sabe muito bem como essa transparência pode custar caro: ele destruiu a sua safra inteira de 110 mil cogumelos depois que os testes revelaram a existência de níveis elevados de radiação.
Mas essas medidas deixam intocada umas das principais questões levantadas pelos consumidores: determinar se a atividade agrícola deveria ser permitida próximo à usina nuclear.
Fazendeiros como Muto afirmam não ter escolha, já que eles não receberam pouca ou nenhuma indenização e precisam ganhar a vida. Até o momento, a operadora da usina de Fukushima Daiichi, a Tokyo Electric Power, só pagou indenizações integrais aos fazendeiros das zonas que foram evacuadas, que situam-se em um raio de 19 quilômetros a partir das instalações nucleares, e em uma área mais vasta a noroeste, para onde os ventos carregaram grande parte das partículas radioativas.
Essa abordagem condiz com a abordagem básica do governo desde o acidente: limitar ao máximo o tamanho da área afetada nesta nação de alta densidade demográfica. As autoridades admitem que muita gente questiona a decisão de permitir a operação de fazendas tão perto da usina nuclear. Mas elas dizem que, se proibirem as atividades agropecuárias na área devido à radiação, serão necessários anos para que a população permita a retomada de tais operações.
“Os consumidores podem achar que a melhor alternativa é não praticar a agropecuária na região, ou simplesmente jogar os alimentos fora, mas os produtores veem a questão de forma diferente”, explica Wataru Amano, diretor do departamento de rizicultura do governo municipal de Fukushima.
No entanto, os agricultores têm uma opinião diferente. Eles afirmam que, antes mesmo da descoberta de arroz contaminado em novembro do ano passado, a atual política do governo não lhes dava outra alternativa a não ser prosseguir com as atividades agropecuárias. Agora eles dizem que estão ameaçados de falência porque ninguém comprará o arroz que produzem.
“Isso aconteceu porque aqueles que estão acima de nós não quiseram pagar indenizações”, critica uma rizicultora de 74 anos de idade que só forneceu o seu primeiro nome, Sato, por temer ficar ainda mais associada à radiação, o que poderia significar o fim da sua fazenda. A propriedade é administrada pela família dela há seis gerações. “Nós fizemos aquilo que eles mandaram, e agora estamos sendo varridos do mapa”.
Autoridades japonesas do setor agrícola dizem não possuir um número suficiente de máquinas detectoras de radiação para testar todos os produtos de todas as fazendas. Só há algumas poucas dezenas dessas máquinas em todo o município de Fukushima, uma região que tem aproximadamente o tamanho do Estado norte-americano de Connecticut, e que possui 110 mil propriedades rurais. Entretanto, elas admitem que a amostragem aleatória revelou-se inadequada porque as explosões ocorridas na usina espalharam partículas radioativas de forma não uniforme pelas comunidades, criando pequenos “pontos quentes” de radioatividade intensa.
As autoridades municipais dizem que, desde que o arroz contaminado foi descoberto, elas testaram arroz de 4.975 fazendas em Onami e de 21 outras comunidades, a maioria delas situada em áreas contaminadas a noroeste da usina nuclear. Elas afirmam que cerca de um quinto dessas propriedades continha césio, embora os índices de radiação na maioria delas fosse baixo. Somente 30 fazendas ultrapassaram o atual limite de segurança estabelecido pelo governo japonês para a radiação nos alimentos.
No entanto, quase 300 fazendas tinham safras de arroz que ultrapassariam um novo e mais rígido limite de segurança que o Ministério da Saúde deverá adotar em abril próximo, fazendo com que os padrões do Japão se coadunem com os da maioria dos países desenvolvidos. “Nós precisamos recuperar a confiança pública com a implementação, o mais rapidamente possível, de um novo sistema de testes de radiação”, diz Amano.
Mesmo assim, autoridades do setor agrícola têm resistido à ideia de acabar com aquilo que segundo muitos consumidores é o maior obstáculo para que a confiança seja recuperada: a falta de transparência por parte do governo no que se refere aos testes de radiação. Muitos consumidores reclamam de que os resultados dos testes de radiação são intencionalmente vagos, de forma que eles não tenham como saber onde exatamente essas medições foram feitas.
As autoridades agrícolas e muitos fazendeiros temem que a revelação de resultados mais detalhados possa afugentar os consumidores, que poderiam se apavorar até mesmo com índices baixos de radiação. “Nós escutamos os apelos por mais transparência, mas a revelação de dados mais detalhados só iria prejudicar uma grande quantidade de fazendeiros”, afirma Osamu Yoshioka, um funcionário do Ministério da Agricultora especializado em segurança de alimentos.
Esse ponto de vista é contestado por vendedores do Vegetal Cafe Harmonize, um pequeno mercado que só vende produtos do oeste do Japão, que fica distante da usina nuclear. Uma das vendedoras é Junko Kohata, uma agente imobiliária de 42 anos de idade, que diz evitar produtos da área de Fukushima porque o governo revela apenas se os níveis de radiação estão acima ou abaixo do limite permitido.
“Eu preferiria comprar produtos locais, mas não tenho outra escolha se quiser me proteger”, argumenta Kohata. O mercado foi criado dois meses atrás pela Rede de Pais para Proteger as Crianças da Radiação, conhecida como Mamorukai, que teve início com algumas dezenas de pais preocupados após o acidente. Em nove meses, a organização transformou-se em uma rede de âmbito nacional, com 200 escritórios.
“Se o governo tivesse nos tratado como adultos, não haveria necessidade da Mamorukai”, diz Sachiko Sato, uma das criadoras da rede. “O Japão tem que construir um sistema de monitoramento de alimentos totalmente novo no qual o cidadão comum possa de fato confiar”.
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Japoneses têm dificuldades para proteger reservas de alimentos de radiação - Instituto Humanitas Unisinos - IHU