13 Janeiro 2012
Desgarrados da multidão maltrapilha da cracolândia, dez usuários de crack se alinham diariamente em colchões rasgados e em camas de papelão na calçada do número 509 da alameda Barão de Piracicaba, na região central de São Paulo.
A reportagem é de Eliane Trindade e publicada pelo jornal Folha de S. Paulo, 13-01-2012.
Eles buscam abrigo na porta da Cristolândia, misto de igreja e centro comunitário, que funciona ali há quase dois anos. São "refugiados" de uma cracolândia dispersa pela Polícia Militar.
"Estou correndo do cachimbo [de crack] e dos homens. Aqui a polícia deixa a gente em paz", diz Daiane Soares, 26, sobre a operação policial deflagrada em 3 de janeiro.
Ela espera há seis dias vaga em uma clínica que aceite casais para se tratar junto com o namorado, Wesley, 20.
Com a presença ostensiva da PM na região, a missão Batista passou a funcionar em esquema de plantão, com suas portas abertas 24 horas para a galera acuada do crack.
Com a proposta de fazer os usuários de drogas trocarem o "crack por Cristo", o projeto encaminhou nos últimos 22 meses cerca de mil usuários para internação e centros de formação evangélica.
Remédios são evitados na fase de desintoxicação. "Só usamos tratamento medicamentoso em casos extremos. Para além da ciência, temos a fé. É o nosso diferencial", afirma o pastor Paulo Eduardo Vieira, 47, da 1ª Igreja Batista de São Paulo, à qual a Cristolândia é vinculada.
Para a pesquisadora Zila Sanches, do Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas, não usar medicamento na desintoxicação dificulta o tratamento. "Sem remédio nos primeiros 15 dias de abstinência, o processo é mais doloroso física e emocionalmente", diz.
Mas ela também vê pontos positivos. "Funciona para aqueles que já tenham uma crença e que buscam por conta própria a ajuda da igreja."
INTERNAÇÕES
Nas duas últimas semanas, o número de internações, via Cristolândia, bateu o recorde de 90. "Fazíamos uma média de 40 por mês. Já chegamos ao dobro disso em dez dias e vamos abrir novas 200 vagas", contabiliza o pastor Humberto Machado, 53, coordenador da missão.
Na terça-feira, a Cristolândia passou no teste como refúgio. Uma ronda da PM tentou retirar da calçada uma dezena de usuários de drogas.
"Aqui é solo sagrado", esbravejou o padre Júlio Lancellotti, coordenador da Pastoral de Rua, que fazia uma de suas visitas ao projeto.
A PM recuou. Na quarta, um oficial foi ao local. "O coronel viu que não somos contra a polícia", diz o missionário Gerson Machado.
A Cristolândia é mantida por doações das igrejas Batistas. Os gastos são de R$ 70 mil por mês. Para atrair usuários de crack para os cultos matutinos, oferecem refeições, banho e roupa limpa.
O alimento espiritual vem primeiro. "Deus não criou você para ser um verme na cracolândia", prega o pastor Humberto, 53. Ex-usuário de cocaína, ele usa sua experiência para provar o êxito do tratamento baseado na fé.
"Cheirava cocaína dia e noite, comia lixo, fui preso e humilhado. Só via trevas", relata à plateia na cracolândia.
A prefeitura diz que oferece abrigo e tratamento, mas em diferentes etapas. A ação existe desde 2009.
Em dois anos, a prefeitura diz ter feito 12 mil atendimentos, sendo 3.000 internações. Segundo a prefeitura, quem não quer tratamento também pode receber abrigo.
Cristolândia terá unidades em BH, Brasília e Recife
De camiseta amarela, eles percorrem as ruas do centro de São Paulo à caça de usuários de crack. São os "Radicais", os emissários da Cristolândia.
Os voluntários misturam-se aos craqueiros para atraí-los aos cultos, porta de entrada para o projeto. Hideraldo Moacyr, 34, mudou de lado. Hoje, desfila pela cracolândia com sua camiseta amarela.
Diz ter feito o que seria a sua despedida do crack em grande estilo. "Foi no dia 10 de maio de 2010. Descolei R$ 25 na rua, comprei bebida, pedra e paguei uma prostituta", recorda-se. No dia seguinte, batia ponto na Cristolândia a convite de um radical.
Hideraldo veio da Guiné Bissau estudar direito na Unip e acabou na cracolândia por nove meses. Saiu para 112 dias de internação em uma clínica evangélica. Não tem recaídas no currículo, graças a uma fé recém-cimentada.
Hoje, cursa faculdade de direito e teologia. Ele e seis colegas estão sendo preparados para ser pastores. Outros 16 voluntários estão em treinamento para operar o milagre da multiplicação de Cristolândias. A do Rio e a de Vitória já estão funcionando. Em breve, virão as de Brasília, Recife e BH.
Frustração e esperança marcam reabilitação
Nos últimos oito meses, a Folha acompanhou a batalha de dois usuários de crack que trocaram a cracolândia pela Cristolândia.
Em maio de 2011, Edna Magali, 30, ficou na porta da missão por 15 dias à espera de internação. Na mesma época, Gerson Corrêa, 41, foi aceito no dormitório da missão Batista, exclusivo para homens.
Os dois passaram a seguir a cartilha dos evangélicos contra a dependência. Trajetória marcada por crises e recaídas, temperadas por altas doses de esperança e frustração.
A Folha reencontrou ontem Gerson no Centro de Formação de Vida Cristã, um retiro da Cristolândia em Piratininga (370 km de São Paulo).
Ele foi enviado para lá em dezembro após voltar à cracolândia por 60 dias. Gê ficou limpo seis meses, atuando como voluntário. Ex-presidiário e HIV positivo, faz o inventário de perdas na queda de braço com o crack.
"A droga me deixou doente, me fez perder o caráter, a liberdade, a vontade de viver, a amizade e o amor da minha família e amigos, o crescimento dos meus três filhos."
Em julho, ganhou motivação, quando recebeu a visita da mulher e de uma filha. "Fiquei dois anos e nove meses sem ver a minha família."
A reaproximação não durou muito. Entrou em depressão e passou a usar antidepressivos escondido dos missionários. Perdeu o posto de voluntário, voltou para as ruas até pedir arrego na Cristolândia novamente.
A rotina de Gê é orar, fazer estudos bíblicos, trabalhar na horta e na manutenção da chácara. "O tratamento aqui é comida, muita conversa e Bíblia", resume. "Não estou mais sozinho. Estou com Deus e tenho o apoio dos irmãos."
Gê ganhou 25 kg. Magali também ganhou peso e deixou a clínica em Campos (RJ), onde ficou seis meses, com 80 kg. "Não tive crise de abstinência de droga, só de liberdade", disse no último contato com a Folha.
Em dezembro, ela virou voluntária na Cristolândia de Vitória (ES). Ficou 15 dias. Brigou com os companheiros e voltou para a cracolândia.
No último dia 6, passou pela Cristolândia para tomar banho. Seu paradeiro atual é o mesmo de outros usuários vagantes. Indefinido.
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Crack por Cristo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU