08 Janeiro 2012
São quase 16 horas, e Marie-Claire Saint Victor está finalmente cozinhando o seu almoço num caldeirão sobre uma pequena fogueira no chão: um pouco de feijão e de arroz que ela comprou com uma esmola de 75 gourdes (US$ 1,78) que recebera há pouco. Desde o terremoto de 12 de janeiro de 2010, que matou seu único filho, Marie-Claire mora em uma tenda na frente dos escombros da Catedral de Porto Príncipe.
A reportagem é de Lourival Santanna e publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 08-01-2012.
"O governo nunca esteve aqui", disse Marie-Claire, de 57 anos, cuja tenda fica a poucas centenas de metros do gabinete do presidente Michel Martelly, improvisado nos fundos do Palácio Nacional, também destruído e não reconstruído. "Não existe governo. Estou sob a proteção do bom Deus." Viúva desde 1993, ela conta que era sustentada por seu filho Emmanuel Shouti, de 36 anos, que trabalhava como vendedor numa loja de cimento.
"Quando (as entidades humanitárias) trazem ajuda, os mais fortes ficam com a comida, barracas e outras coisas que eles dão", explica Marie-Claire. "Eu sou velha, não consigo brigar, não recebo nada."
Dois anos depois do terremoto, e apesar dos cerca de US$ 4 bilhões em ajuda humanitária internacional, 500 mil pessoas continuam vivendo em barracas espalhadas por centenas de acampamentos no Haiti. De acordo com um relatório da ONU, 34% do dinheiro acabou voltando para os próprios países doadores, para cobrir gastos com a ajuda ao Haiti de suas Forças Armadas e órgãos do governo; outros 28% foram para agências da ONU; 26% para empresas privadas contratadas e para organizações não governamentais; 5% para a Cruz Vermelha e assim por diante.
Muito pouco dinheiro tem sido destinado diretamente na reconstrução de casas e criação de empregos. O desemprego no Haiti saltou de 40% para 70% depois do terremoto. Thermofis Jean Yvan, de 42 anos, foi um dos que perderam o emprego e nunca mais conseguiu outro. Ele trabalhava como motorista de caminhão para a Administração Portuária. Diz que, como ele, cerca de 1.500 funcionários do porto, parcialmente destruído pelo terremoto, foram demitidos.
Yvan sustenta a mulher e quatro filhos com ajuda dos amigos. Vivem acampados na Praça Champs de Mars, que se transformou em uma favela, inteiramente ocupada por barracas de lona.
Daniel Clergé, um vendedor ambulante de 45 anos, conta que vive na praça também com a mulher e os quatro filhos desde o dia do terremoto, que destruiu sua casa na Rue du Peuple, não longe dali. Ele afirma que o governo nunca lhe ofereceu ajuda. Ao contrário. Há cerca de quatro meses, o governo mandou interromper o fornecimento de água para a favela, que era feito pela ONG americana Ação Contra a Fome.
"Nossa situação piorou muito depois do corte da água", diz Clergé, que ganha cerca de US$ 10 por dia vendendo calças e tênis nas ruas. "Temos de ir buscar água longe." Os moradores da favela utilizam banheiros improvisados ao redor da praça.
O presidente Martelly, que se elegeu em março com a promessa de criar empregos e incentivar a iniciativa privada, tem dito que grande parte da ajuda financeira internacional não foi bem empregada, porque se concentrou na assistência às vítimas em vez da reconstrução e desenvolvimento do país.
Os doadores internacionais recusaram-se a entregar dinheiro ao governo do ex-presidente René Préval com receio de ele ser desviado. Só em outubro, depois de duas tentativas frustradas, Martelly conseguiu aprovar no Parlamento, dominado pela oposição, o nome de um primeiro-ministro, condição para a formação de um gabinete e de um governo.
O premiê Garry Conille, um médico que trabalhou em projetos de desenvolvimento da ONU e foi assistente do ex-presidente americano Bill Clinton, enviado especial da ONU ao Haiti, goza de prestígio na comunidade internacional. Depois de sua nomeação, projetos mais consistentes começam a sair do papel. Em 2 de dezembro, o Banco Mundial liberou US$ 255 milhões para a retirada de escombros e entulho de Porto Príncipe e a construção de moradias para 22,5 mil pessoas. É como se o terremoto tivesse sido há duas semanas, não há dois anos.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Haiti ainda sofre 2 anos após tremor - Instituto Humanitas Unisinos - IHU