Por: André | 13 Dezembro 2011
Embora tenha se retirado da frente de batalha, Antonio Negri não sepultou as armas do pensamento radical. No final dos anos 70, a perseguição judicial da esquerda extraparlamentar italiana o levou primeiro às prisões de toda a península e depois à clandestinidade em Paris, com uma breve escala na imunidade parlamentar. Durante as duas décadas anteriores, havia sido uma das principais referências do ativismo autonomista, que buscava aprofundar o conflito de classes fora dos sindicatos e dos partidos de esquerda, contrapartidas do pacto social do pós-guerra.
Negri segue sendo muito mais que um intelectual comprometido ou um agudo analista das mudanças econômicas e sociais. Seu pensamento busca abrir passagem entre a linha de fogo contra as ordens estabelecidas, quer sejam as assembleias portenhas de há uma década ou os indignados espanhóis de hoje. Em visita a Buenos Aires para participar do ciclo "Debates e Combates’, organizado pela Secretaria da Cultura e da Universidade de San Martín, Negri conversou com Debate sobre a evolução da crise financeira e política da Europa e a maneira como os novos movimentos e a esquerda tradicional estão reagindo.
A entrevista é de Alejandro Sehtman e está publicada no sítio da revista argentina Debate, 12-12-2011. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
Você continua sendo crítico do "populismo", da ideia de povo como referência de uma ação política emancipatória. Não obstante, os principais sucessos da luta contra o capital global seguem tendo lugar dentro dos limites das soberanias nacionais e tiveram os povos, assim definidos, como principais sujeitos. Particularmente na América Latina. Que conclusões tira destes desenvolvimentos?
Não tiro conclusões. Penso que, efetivamente, enquanto o capital financeiro, em suas formas globais, não for derrotado, não será possível que existam trincheiras de resistência localizada. Nem sequer nos países da América Latina. Nestes países a grande luta é contra a transferência de dólares para fora. Em certos casos, nos países do Terceiro Mundo, em particular os asiáticos, os capitais financeiros se organizam inclusive como fundos soberanos. Ou seja, temos Estados-nações que se convertem, eles próprios, em especuladores. Então, deste ponto de vista eu creio que o problema da luta contra o capital financeiro é um problema que não se fecha no interior das situações individuais e, sobretudo, em torno dos povos-nação. Estes, inclusive o povo-nação norte-americano, estão ameaçados pelas qualificações da Moody’s ou da Standard and Poor’s, e a dívida que ainda mantêm em altíssimas proporções está vinculada ao apoio chinês. Desde este ponto de vista, então, é necessário ser muito cauto, muito prudente. Isto não quer dizer que em nível do Estado-nação não se possam determinar resistências extremamente eficazes, mas dentro deste marco. Sem esquecer este marco geral, porque, caso contrário, caminha-se na direção de gravíssimos problemas. No dia em que o mercado da soja cair algum ponto, também a capacidade argentina de resistir como país cai algum ponto.
Então?
Penso que, efetivamente, o problema que tempos atrás se chamava internacionalismo proletário deve ser retomado. E que cada país esteja em contato com os outros. Não queria que se confundissem as coisas em termos de populismo. Porque quando se fala de populismo fala-se algumas vezes de coisas importantes e outras de coisas que são extremamente ruins. Pense em como se apresentam os populistas na Europa hoje. Apresentam-se como movimentos racistas, como movimentos desagregadores. A esta altura estamos diante de fenômenos que só têm comparação no nazismo.
A respeito das experiências latino-americanas que, conduzidas por governos democrático-populares, lideraram a busca de vias de saída do neoliberalismo, que opinião merece esta renovada centralidade do Estado e sua inter-relação com os movimentos sociais? Isso aconteceu claramente na Bolívia, mas também em países como a Argentina.
Me parece muito estranho que se polemize comigo sobre este tema quando, em 2006, publiquei um livro que se chama Glob(AL). Bipoder e lutas em uma América Latina globalizada [Record, 2005] (ndr: com Giuseppe Cocco), no qual se registrava, em primeiro lugar, o fim da dependência das economias da América Latina do centro global. E não lhe conto tudo o que me disseram, por exemplo, as esquerdas argentinas. Há um senhor que se chama Atilio Boron que não fez outra coisa senão escrever sistematicamente contra mim. Por outro lado, defendemos que na Bolívia, assim como na Argentina, dá-se isto, mas que já se havia dado antes no Brasil.
Em que sentido?
A formação do PT não pode ser compreendida senão como uma profunda síntese entre movimento sindical, movimentos populares, movimentos das favelas, movimentos intelectuais e a força política que se faz governo e consegue manter e desenvolver sua ação de governo com esta força que está em seu interior. Esta me parece que é uma teoria nascida nos anos 70 na Itália e na Europa e que foi retomada aqui onde teve uma experimentação muito eficaz. Estou de acordo com você no sentido de aqui os movimentos tiveram uma experiência exitosa contra a dependência imperialista. Quando se pensa que há poucos anos a Argentina e o resto da América Latina eram considerados uma base dependente dos Estados Unidos, o coxo onde se alimentavam os porcos... Hoje o Brasil pode apresentar-se diante do mercado mundial oferecendo a Portugal, em nome de uma comunidade linguística, ajudas formidáveis para sair da crise. Então, estamos em uma situação que está completamente invertida. Mas se polemizou comigo, quando eu dizia estas coisas há 20 anos.
Na Europa, a esquerda, em suas formas clássicas de partido e de sindicato, não consegue converter-se no motor da resistência política às respostas capitalistas frente à crise. Quais pensa que são os limites, ideológicos ou práticos, que a impedem de desempenhar, com novos modos, o papel que teve no século passado?
Penso que, na realidade, a esquerda na Europa acabou em 68, quando não conseguiu reconectar-se com a transformação das necessidades, com a transformação antropológica da juventude europeia. Desde 1968, a esquerda europeia não consegue pensar sobre um terreno de real inovação. Foi completamente superada pela revolução tecnológica, que se liga à informática e sua defesa da indústria manufatureira e da estrutura industrial fordista. Então, desde este ponto de vista, não apenas a esquerda europeia não conseguiu desenvolver um projeto adequado, mas que, cada vez que tenta sua própria modificação, está em si mesma castrada. Você se perguntou por que Barack Obama, com a força que teve o movimento que o levou à Casa Branca, não conseguiu fazer o que prometeu? Porque, evidentemente, existem na estrutura constitucional do Estado democrático limites substantivos, orgânicos, quando não se faz agir os movimentos em seu interior. O limite da esquerda é que as constituições são constituições liberais. É preciso superar as constituições liberais, fazer constituições que sejam constituições da coisa comum. Enquanto se estiver dentro de constituições liberais não há mais nada a fazer. O grande problema dessas constituições é o da representação. O que viria a ser a representação do comum? Esse é um problema enorme.
Então, onde está este poder constituinte que pelo que você disse não radica na esquerda europeia dos últimos 40 anos?
Onde está? Encontra-se entre os indignados, em certas experiências da América Latina, em toda a série de lutas que começamos a ver por todos os lados. Este ciclo de lutas contém uma forte demanda de poder constituinte.
Voltando à questão de 68, qual é o papel político das gerações?
Há gerações que se instauram sobre certos nós do desenvolvimento histórico e representam seu fim. Na Itália, a geração dos anos 60 e 70 que era nodal no desenvolvimento político italiano, foi eliminada e o resultado disto foi Bettino Craxi, primeiro, e Silvio Berlusconi, depois. E o fim da esquerda, que se dedicou a reprimir as juventudes capazes de desenvolver um novo pensamento, uma nova prática política, novas formas de resistência e de vida.
O entardecer das capacidades civilizatórias da Europa coincide com a emergência das novas potências como as do BRIC, países que fizeram percursos diferentes dos capitalismos centrais durante o século XX. Quais pensa que serão os efeitos da entrada em cena destas economias e sociedades?
Sou sempre muito cauto quando se fala de ocaso. Sem dúvida, a função da Europa como momento central de civilização está em decadência, mas também é verdade que também os Estados Unidos o estão. Não obstante, o bloco Europa-Estados Unidos permanece como a maior potência mundial. Então, não se deve esquecer quais são ainda as potências que, inclusive se bem que derrotadas, permanecem. O ocaso não é algo fisiológico, é algo que depende de formas de luta, de capacidade de articulação com os movimentos, de inovações constituintes que sempre poderiam dar-se também nestes países e, portanto, é preciso ser muito, mas muito cautos. Em particular, porque não é pelo fato de que a China ou o Brasil possam converter-se em elementos tão importantes quanto os Estados Unidos. A tentativa unilateral foi feita pelos Estados Unidos e as potências europeias em uma época muito precisa e hoje é difícil pensar que algum dos BRIC possa substituí-los ou repetir essa experiência. Então é preciso pensar em um nível plural, e este nível plural não tem hierarquias internas particulares, é horizontal.
Como se pode pensar a autonomia operária em tempos e em lugares em que a marginalidade de amplas parcelas da população com respeito à relação salarial é tão importante? Qual deve ser a relação entre ação política e trabalho nos novos sujeitos políticos?
É claro que se trata de reorientar completamente a produção e de incluir e considerar a sociedade como produtiva. Não há, de um lado, as fábricas que são produtivas; e, de outro, o resto da sociedade, que não o é. A fábrica é social. A sociedade é fábrica, é produtiva. Então, cada indivíduo da sociedade deve ser recuperado, posto em condições que hoje se fazem ou se podem fazer, são as que respeitam o aumento da produtividade social através da mobilização de todos os seus membros. O ingresso garantido para todos, o pleno desenvolvimento de todas as formas de bem-estar, mas com participação. Não temos necessidades de um Estado que nos dê as coisas. Temos necessidade de conquistá-las e de administrá-las.
Já se passaram 10 anos de dois eventos que foram enquadrados em sua teoria da "produtividade política das multidões". O primeiro, os protestos contra a reunião do G-8 de Gênova. O segundo, o processo de mobilização social que marcou o princípio do fim do neoliberalismo na Argentina. Ambos aconteceram em 2001, ano seguinte ao da publicação de Império, em coautoria com Michael Hardt. Que avaliação faz da dinâmica e dos resultados de cada um destes acontecimentos?
No que se refere à primeira sequência, a das lutas anti-globais ou alter-globais, tornaram-se subterrâneas e reapareceram novamente como ciclo de lutas alguns anos atrás, em torno da crise. Desde este ponto de vista, houve uma profunda transformação dos métodos e das formas de luta. Enquanto antes se formavam no terreno global, através dos quais eram, na realidade, simbolismos; hoje, ao contrário, o caráter concreto destas lutas e, sobretudo na forma que lhe deram os indignados, a capacidade imediatamente institucional, democrática, estão ganhando muita importância. Me refiro aos acampamentos, à crítica contra a representação, ao modo pelo qual estas lutas se dão em sua continuidade, construindo comitês ou movendo toda uma articulação social forte. Quanto à segunda questão, foi um grande movimento popular que inventou novas formas políticas. Por exemplo, os piqueteiros ou as fábricas recuperadas ou de gestão direta que ensinaram muito ao mundo e que, em boa medida, tiveram certa continuidade através de formas políticas do kirchnerismo, que se construiu a partir destas lutas.
Assistimos a uma nova onda de protestos contra as instituições financeiras e contra as políticas neoliberais, realizadas no âmbito extra-institucional. Acredita que pode converter-se na base de novas articulações entre democracia, Estado e capitalismo?
O característico é que estes movimentos se movem de forma constituinte. Aqui não se trata de repetir as velhas formas nas quais o político se apresenta como política de luta e, ao mesmo tempo, de governo. Estamos em uma fase na qual os movimentos se apresentam como protagonistas, não simplesmente de protestos, mas também de construções institucionais. Uma das coisas mais interessantes que encontro é, por um lado, a gestão das lutas universitárias, onde a autogestão e a autoformação se convertem em problemas centrais. A outra é a relação com o Estado de Bem-Estar Social, que se converte, por exemplo, em tentativas de gestão autônoma de hospitais e de toda uma série de serviços públicos e em uma participação democrática direta de movimento, em experiências comuns. Esta palavra do comum é o elemento que começa a modificar, de maneira substancial, a situação na qual hoje nos encontramos do ponto de vista das lutas.
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"O novo poder constituinte está entre os indignados" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU