05 Dezembro 2011
No mês que vem, ocorre aniversário de 10 anos da explosão da crise de abusos sexuais, desencadeada por um artigo do Boston Globe em janeiro de 2002 sobre o Pe. John Geoghan, acusado de ter abusado de mais de 130 crianças ao longo de uma carreira de 30 anos. Geoghan foi morto na prisão em agosto de 2003.
A reportagem é de John L. Allen Jr., publicada no sítio National Catholic Reporter, 02-12-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
E Geoghan continua sendo um terrível símbolo das falhas da Igreja. Ele era o predador em série arquetípico, transferido de paróquia para paróquia apesar das repetidas advertências sobre seus crimes.
Uma década no arco da crise, agora temos um novo símbolo de outra de suas características angustiantes: a forma como todos os padres católicos foram pintados com o mesmo pincel, considerados culpados até provarem inocência e muitas vezes dispensados pelo oficialismo eclesial ao primeiro sinal de uma denúncia.
Esse símbolo é o Pe. Kevin Reynolds (foto), da Irlanda, e a sua história merece uma séria reflexão. Antes de entrar nela, no entanto, vamos estipular dois pontos.
Primeiro, não há nenhuma equivalência moral entre a agonia experimentada pelas vítimas de abuso sexual – especialmente as crianças – e as dificuldades vividas por um padre acusado falsamente. A questão não é comparar as duas coisas, mas sim que não é possível remediar uma injustiça criando outra.
Segundo, o fato de que alguns padres tenham sido falsamente acusados não atenua a culpabilidade da Igreja ou das suas lideranças em inúmeros outros casos em que o abuso é muito real. Nem pode fornecer um passe livre para os líderes da Igreja para rejeitar a crítica ou afastar argumentos em defesa da reforma.
Dito isso, a história de Reynolds ilustra dois pontos que devem figurar em qualquer lista de lições aprendidas na última década:
A necessidade de impedimentos mais eficazes contra falsas alegações, tanto na Igreja quanto na mídia.
Um maior apoio aos padres que enfrentam acusações, incluindo líderes eclesiais mais inclinados a equilibrar medidas de precaução legítima quando uma denúncia surge contra a preocupação com a reputação e os direitos do acusado.
Aqui está a história.
O Pe. Kevin Reynolds, 65 anos, era pároco de County Galway, na Irlanda, e passou a maior parte de sua vida trabalhando como missionário no Quênia. Em maio deste ano, ele foi apresentado em um programa de investigação amplamente divulgado na rede de televisão irlandesa RTE, provocativamente intitulado Mission to Prey [algo como "Missão de depredar/explorar/rapinar"]. A indicação era de que esses missionários irlandeses iam ao exterior para "explorar" [prey] os moradores locais, não para "rezar" [pray] em prol deles.
O programa apresentou sete desses casos envolvendo missionários. Cinco já haviam sido denunciados em outros lugares, e um envolvia um membro já falecido da Congregação dos Irmãos Cristãos, cuja ordem negou repetidamente as acusações. As acusações contra Reynolds foram, portanto, a principal "prova do crime" apresentada pelo programa.
De forma dramatizada, a jornalista da RTE Aoife Kavanagh entrevistou uma mulher do Quênia chamada Veneranda, que disse que Reynolds a havia estuprado e engravidado em 1982, quando ela tinha apenas 14 anos. Ela disse que deu à luz uma criança chamada Sheila, como resultado do estupro, que também apareceu no programa da RTE. Ele também foi acusado de ter secretamente fornecido dinheiro para Sheila.
Armada com essas acusações, Kavanagh e uma equipe de filmagem pegaram Reynolds fora de sua paróquia, um dia depois de uma missa de Primeira Comunhão, e gravaram as confusas e nervosas negações do padre pelo fato de ele ser pedófilo e estuprador.
Depois desse encontro, mas antes do programa ir ao ar, Reynolds enviou à RTE uma carta do bispo de Kakamega, no Quênia, a diocese onde ele tinha atuado, afirmando que Reynolds tinha um histórico impecável. Dada a história recente, a RTE pode ser perdoada por não ter levado em consideração as garantias de um bispo. No entanto, o que deveria ter feito a rede esperar um pouco era o fato de que Reynolds também se ofereceu para fazer um teste de paternidade para demonstrar que ele não era o pai da criança queniana.
Contudo, a transmissão da RTE seguiu em frente, sem esperar por qualquer resultado de DNA. De acordo com protocolos estabelecidos pela Igreja irlandesa, Reynolds foi imediatamente removido de sua posição como pároco, forçado a sair de sua casa e da sua paróquia. A estimativa é de que 500 mil pessoas viram o programa em horário nobre com as acusações sensacionalistas, e cerca de 338 mil pessoas ouviram uma retransmissão por rádio no dia seguinte.
Nos meses seguintes, ficou claro que as acusações eram infundadas. Dois testes de DNA separados e independentes provaram que Reynolds não era o pai da criança.
Uma vez que a notícia havia se tornado pública, uma disputa política e legal se seguiu na Irlanda. A RTE lançou uma revisão interna, suspendeu o programa que apresentou o quadro Mission to Prey e divulgou um pedido de desculpas público para Reynolds.
"A RTE aceita agora, totalmente e sem reservas, que as denúncias feitas contra o Pe. Kevin Reynolds são infundadas", dizia o pedido de desculpas oficial, "sem qualquer fundamentação e falsas, e que o Pe. Reynolds é um padre da maior integridade, que teve uma ilibada carreira de 40 anos no sacerdócio e que fez uma contribuição valiosa para a sociedade do Quênia e da Irlanda, tanto na educação quanto no ministério".
O diretor-geral da RTE, Noel Curran, chamou então a decisão de transmitir o programa de "um dos mais graves erros editoriais de todos os tempos" cometidos pela rede. Três investigações separadas da conduta da RTE ainda estão em andamento, inclusive uma lançada em nome do governo irlandês pela autoridade responsável pelos meios de comunicação do país.
Nesta semana, a RTE também foi processada por difamação, em uma ação interposta por Reynolds. Embora a quantidade não tenha sido divulgada oficialmente, o jornal The Irish Times informou que o valor foi de pelo menos um milhão de euros, ou 1,3 milhão de dólares.
A questão-chave, é claro, é por que a RTE levou adiante a transmissão, sem levar em consideração a oferta de Reynolds de fazer um teste de paternidade.
Embora ninguém tenha emitido qualquer resposta oficial, a maioria dos observadores acredita que o programa reflete um clima geral na Irlanda em que os padres são vistos agora como um alvo fácil. Uma recente pesquisa nacional constatou que apenas 28% dos irlandeses podem identificar corretamente a proporção de padres irlandeses que foram realmente considerados culpados de abuso infantil, que é de aproximadamente 4%. Cerca de 70% dos irlandeses acreditam que o número é muito mais elevado, sendo que quase 50% da população acredita que mais de 20% dos padres foram considerados culpados.
A Associação dos Padres Irlandeses, um grupo independente fundado em meio à crise dos abusos, divulgou um comunicado na última segunda-feira, 28 de novembro, afirmando que o caso Reynolds ilustra o erro de duas formas:
"O fato de a RTE não ter se disposto a esperar até que o Pe. Reynolds tivesse a oportunidade de provar a sua inocência nos sugere que a rede estava confiante de que tudo poderia ser dito com segurança sobre um padre no clima atual, sem medo de repercussões; que as autoridades da Igreja não o apoiariam, e que as pessoas em geral acreditariam na história";
"A rede entrevistou o Pe. Reynolds em um momento e em um lugar que é sagrado para a fé católica. Não há, acreditamos, nenhuma dúvida de que a RTE, ou mesmo qualquer jornalista, não faria o mesmo com um imã nos preceitos de sua mesquita, ou com um rabino judeu em sua sinagoga".
O arcebispo Diarmuid Martin, de Dublin, disse esta semana que, embora ele não acredite que haja um clima geral de preconceito anticatólico na mídia, o caso Reynolds demonstra a necessidade de uma maior responsabilização da imprensa.
"Temos que fomentar a liberdade de imprensa e respeitá-la, mas, se os jornalistas, jornais ou autoridades públicas de radiodifusão agem irresponsavelmente, então temos uma situação em que a responsabilização deve satisfazer o público de que esse tipo de coisa não poderá acontecer com você ou comigo", disse Martin.
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Três outras observações são necessárias.
Primeiro, o que torna essa situação singular é que ela girou em torno de uma alegação que poderia ser conclusivamente verificada ou falsificada – de que Reynolds era o pai de uma criança. A maioria das acusações de abuso não estão abertas a uma resolução tão clara. Geralmente elas opõe a palavra de uma pessoa, ou de várias pessoas, à palavra de outra. A experiência tem ensinado que todas as acusações desse tipo devem ser levadas a sério, mas o episódio Reynolds também sugere uma dose de cautela antes de presumir que uma acusação é automaticamente equivalente à culpa.
Segundo, é impressionante que o apoio legal e logístico a Reynolds, enquanto ele contestava as acusações da RTE, não veio do seu próprio bispo ou das estruturas oficiais da Igreja, mas sim de um órgão independente, a Associação dos Padres Católicos.
A associação acusou Martin e alguns outros bispos irlandeses de terem sido, na verdade, "cúmplices no denegrimento dos padres", demonstrando "uma séria falta de cuidado pelos padres" e uma vontade "de efetivamente demonizá-los na Igreja e na sociedade". Eles convocaram os bispos irlandeses a equilibrar "sistemas e estruturas postas em prática para proteger as crianças" com um "dever de cuidar" dos seus próprios padres.
Esse parece ser um ponto que alguns bispos ao redor do mundo estão prontos para reconhecer.
No meu recente livro-entrevista com o arcebispo Timothy Dolan, de Nova York, intitulado A People of Hope, Dolan perguntou se um sacerdote "consegue se recuperar totalmente" de uma acusação de abuso, mesmo quando uma investigação posterior mostra que a acusação era infundada e ele volta para o ministério. Dolan, presidente da Conferência dos Bispos dos EUA, endossou a necessidade de uma melhor forma de lidar com as denúncias falsas, embora admitindo alguma perplexidade com relação a como isso poderia se dar.
Terceiro, a resposta da comunidade jornalística pode conter lições ainda maiores. Até agora, as autoridades da RTE disseram que nenhum dos jornalistas responsáveis pelo quadro Mission to Prey seriam demitidos ou punidos de alguma forma, alegando que, dentro destas circunstâncias, é melhor que as pessoas aprendam com os seus próprios erros. Vários dos jornalistas e especialistas mais conhecidos da Irlanda defenderam Kavanagh, argumentando que os juízos deveriam se basear na totalidade da sua carreira e não em um erro.
Tudo isso, é claro, são reminiscências inquietantes de como os líderes da Igreja Católica responderam à crise dos abusos sexuais em seus estágios iniciais – o que sugere, talvez, que a resposta das autoridades da Igreja tinha mais a ver com a dinâmica institucional básica e as lealdades profissionais do que com algo especificamente "católico".
Foi o próprio Martin quem fez a comparação.
"Se isso fosse a Igreja, os bispos seriam convidados a renunciar voluntariamente em vez de se afastar", disse. "O nível de responsabilização deve ser questionado. Levou um longo tempo antes que as pessoas viessem, levantassem as suas mãos e dissessem: 'Veja, cometemos um grave erro aqui'".
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Repetindo, a história de Reynolds não significa que a crise dos abusos sexuais foi exagerada, e ela nem sugere que a maioria das denúncias de abuso são falsas. Ela não deveria desencorajar as vítimas reais a se pronunciarem, ou isentar de críticas a Igreja ou as suas lideranças.
Por exemplo, uma comissão de revisão nomeada pela Igreja da Irlanda recentemente atribuiu os problemas na diocese de Derry a "erros de julgamento" de três bispos. Os críticos reagiram, afirmando que esses atos dificilmente eram erros, mas sim atos de acobertamento deliberados. Embora isso possa ser discutível, nada no caso Reynolds tem relação com uma coisa ou outra.
No entanto, a saga Reynolds ilustra, de fato, a triste verdade de que padres inocentes, muitas vezes, foram obrigados a pagar o preço pelos fracassos corporativos da Igreja. Simbolicamente, Reynolds atua como um poderoso lembrete dos perigos da pressa no julgamento, que não faz nenhum bem a ninguém – e, menos ainda, às vítimas de abuso sexual.
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Um novo símbolo das falsas denúncias de abuso sexual - Instituto Humanitas Unisinos - IHU