29 Novembro 2011
Em vez de me unir aos argumentos e às recriminações, eu preferi esboçar um caminho que eu acredito ser apropriado para a situação da Síria, que eu chamo de "democracia do consenso".
A análise é do jesuíta italiano Paolo Dall`Oglio, que vive há 30 anos na Síria, na comunidade monástica Deir Mar Musa, que está sofrendo um processo de expulsão por parte do país.
O artigo foi publicado na revista dos jesuítas italianos, Popoli, 28-11-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Introdução
Após as discussões com os amigos sírios sobre o futuro do país e as saídas para os atuais problemas, decidi oferecer a ideia de uma "democracia de consenso". Essa, junto com a oração e o jejum, é a minha contribuição para o diálogo construtivo que é necessário para escapar do ciclo de derramamento de sangue e de vingança.
Eu sou um monge de origem italiana, mas, depois de 30 anos neste país, eu também me sinto radicalmente sírio. Por mais de 10 anos, Deir Mar Musa al-Habashi hospedou debates e discussões religiosos e intelectuais, com participantes da sociedade civil e de diversos contextos religiosos. Publicamos livros (através da nossa editora Dar al-Khalil), buscando sentar as bases para uma democracia madura, selecionando o modelo que seja mais apropriado para a situação nacional e regional específica. Eu, juntamente com muitos outros, esperava uma progressão pacífica, um amadurecimento rumo a uma democracia verdadeiramente plural, secular e nacional para o nosso país, mas, ano após ano, nos perdemos no progresso rumo a esses ideais.
No entanto, hoje, a esperança deve ser renovada. É uma resposta construtiva para o deslize rumo à guerra civil e à dissolução nacional e ao desejo perigoso de pôr a confiança em um retorno à forma como as coisas eram. Assim, em vez de me unir aos argumentos e às recriminações, eu preferi esboçar um caminho que eu acredito ser apropriado para a situação síria, que estou chamando de "democracia do consenso".
Para iniciar, deve-se notar que a atual situação tem assustado as minorias étnicas e religiosas. Por exemplo, nós, cristãos, estamos divididos entre obrigações patrióticas, o nosso apoio ao progresso nacional, e o medo de muitos de que a situação atual nos fará sofrer assim como aconteceu no Iraque. Alguns de nós tendem a se apegar ao passado. Embora não possamos voltar atrás, isso faz com que muitos de nós não participem do processo de mudança.
Acreditamos e rezamos para que a beleza da antiga realidade espiritual do nosso país - a partilha da vida em paz, harmonia e respeito mútuo – continuará sendo uma realidade e proporcionará o equilíbrio à medida que buscamos construir a nação.
Notas para a Reforma desta Nação
O primeiro passo para proteger o país é fornecer proteção e segurança para os cidadãos, sem impedi-los de buscar a sua liberdade através de meios pacíficos. Nós provavelmente precisamos de um compromisso em que o encargo da segurança dentro de bairros e cidades seja deixado a comissões de cidadãos pacíficos e desarmados, independentemente da sua filiação política. Por outro lado, devemos reconhecer o papel do Exército e da polícia na proteção dos edifícios públicos, na garantia da liberdade de movimento dentro do país, na prevenção contra o contrabando, incluindo o contrabando de armas, e em permitir que a atividade econômica continue sem impedimentos.
Além disso, deve haver um amplo acordo para formar um alto comitê para a reforma constitucional, incluindo representantes de todos os diversos grupos de oposição e de outros órgãos nacionais. Esse comitê será responsável por preparar e organizar as próximas eleições e garantir que sejam livres e justas. Ele fará tudo isso com a cooperação de comitês de cidadãos locais e de uma imprensa livre. Esse alto comitê irá criar um novo pacto nacional, definindo as linhas gerais de uma nova Constituição para garantir uma democracia consultiva e plural, sem dominação sectária.
Modelos
Agora, vou descrever brevemente alguns dos modelos constitucionais que existem em outras nações, mas que eu acredito que não são adequados para a Síria. Em seguida, vou apresentar o que eu acredito ser a melhor solução para nós.
Monarquia constitucional
Esse modelo não é adequado para a nossa nação, porque muitos de nós estão ligados à ideia de uma república, que consideramos mais progressista, moderna e avançada. No entanto, eu gostaria de tomar nota da forma como uma monarquia constitucional suporta a unidade nacional e o desenvolvimento de instituições nacionais evitando a violência. O rei governa com base no direito de um acordo nacional e assegura os direitos de todos os membros da sociedade e evita a dominação de qualquer parte ou facção da sociedade. Desta forma, o rei supervisiona a diversidade de opinião e o dinamismo que criam uma verdadeira democracia. Em algumas constituições modernas, o presidente eleito tem um papel similar, de assegurar o consenso político e impedir o partidarismo e o sectarismo, como veremos também no modelo final deste breve estudo (parece que a Jordânia e as monarquias marroquinas estão progredindo lentamente rumo à maturidade democrática e à realização de uma monarquia constitucional).
República presidencial
Esse modelo se constrói sobre a ideia de um presidente eleito que é a cabeça da nação. Uma maioria simples, um voto de 50% das pessoas, elege o presidente. Esse modelo é melhor para sociedades que são amplamente homogêneas, cultural e etnicamente. Suas minorias não são marginalizadas e participam do processo político, sem ter que fazer muitas exigências por proteções ou direitos especiais. Isso requer um alto grau de secularismo na sociedade, no Estado e nas suas instituições. Hoje, as sociedades globalizadas têm mostrado a fragilidade desse modelo. Ele é facilmente influenciado por lobbies locais e internacionais. Além disso, pode ser abalado quando minorias grandes e organizadas entram na sociedade e exigem seus direitos de uma maioria conservadora. Esse modelo não é apropriado para a Síria, porque é incapaz de criar a harmonia nacional em uma sociedade pluralista com fortes identidades religiosas e sectárias, onde alguns poderiam tentar explorar sentimentos sectários para assumir o controle de toda a nação.
Federalismo
Esse modelo se baseia na independência de cada região ou distrito. É muito inadequado para a Síria por causa do perigo da desintegração nacional. Além disso, na situação demográfica da Síria, as minorias étnicas e religiosas estão distribuídos ao longo de diferentes regiões.
Confessionalismo libanês
Esse modelo é uma má escolha, em primeiro lugar, porque define cada cidadão por apenas uma faceta da sua identidade. Ele também escancara a porta para a intervenção estrangeira. No entanto, a ideia do pacto nacional libanês representa uma necessidade real na Síria neste momento.
Identidades complexas
Antes de apresentar a ideia da democracia de consenso, devo falar sobre identidades construídas e complexas. Uma pessoa contemporânea, um cidadão do seu país e participante do mundo globalizado é caracterizado por muitos aspectos que compõem a sua personalidade e identidade. A ordem de importância das diversas partes da identidade difere de pessoa para pessoa. Alguém pode ser sírio, antes de ser muçulmano. Outro, cristão, antes de ser sírio. Um se preocupa mais com a situação dos trabalhadores do que qualquer outra coisa. Enquanto outro ainda considera o investimento de capital mais importante do que os marcadores culturais. Alguém é sírio primeiro, e outro é árabe primeiro. Cada uma dessas características – etnia, língua, profissão, cultura, gênero, tribo, classe social etc. – tem uma importância diferente de um cidadão para outro. Portanto, a Constituição não deve limitar um indivíduo a uma dessas características em exclusão das outras. A nossa Constituição também não deve impedir que um cidadão expresse as características que ele acredita que, por uma razão ou por outra, são básicas em sua identidade.
A sociedade também deve concordar em resolver as diferenças por meio de consultas e se recusar a recorrer à violência. Deve-se permitir a cada cidadão a liberdade de consciência, contanto que a sua liberdade não prejudique as pessoas ao seu redor. Para assegurar isso, deve haver um judiciário independente, uma imprensa livre e instituições e organizações que sejam não sectárias e abertas a todos.
Modelo final: Democracia de consenso
O modelo que eu apresento aqui como o mais apropriado para a Síria começa com uma presidência que assegura a unidade da nação, que é o maior árbitro e que protege os direitos de grupos marginalizados por qualquer razão. Portanto, este presidente deve ser eleito por um processo de negociação e de construção de consenso, trabalhando para encontrar o caminho do meio entre os diversos grupos sociais. A experiência de muitos países sustenta a ideia de que a melhor forma de realizar esses objetivos é a eleição do presidente por ambas as partes do Poder Legislativo, um Senado e uma Câmara dos Deputados. Para a Síria, é claramente muito importante que essa eleição exige pelo menos uma votação de dois terços para evitar o predomínio da maioria numérica.
Na Igreja Católica, os cardeais elegem o papa pela votação de dois terços. Embora às vezes torne o processo longo e difícil, isso garante a unidade do todo acima de tudo. O papa atual modificou o processo para eliminar algumas dessas dificuldades. Agora, os candidatos que não receberem dois terços dos votos depois de um determinado número de rodadas de votação são eliminados como candidatos. Portanto, há um forte incentivo para encontrar rapidamente a pessoa que será mais amplamente aceita e, com a ajuda de Deus, eles têm sucesso.
De uma forma semelhante, mesmo o Legislativo mais dividido será obrigada a eleger a pessoa que mais provavelmente garantirá a unidade e a harmonia nacional. Eu sugiro que o primeiro presidente eleito sob este sistema seja limitado a um mandato de três anos. Depois, para os próximos 50 anos, os presidentes serão eleitos para mandatos de sete anos, novamente sem a possibilidade de um segundo mandato. Depois disso, os presidentes serão limitados a dois mandatos, para garantir tanto a estabilidade quanto a unidade nacional.
Como ocorre em muitas constituições, eu sugiro que a Câmara dos Deputados seja eleita em âmbito nacional a partir de listas de diferentes partidos. Um deputado não representaria uma região específica, mas sim uma ideia ou um programa. Isso permitiria que muitas ideias políticas diferentes sejam representadas no Legislativo, talvez algumas baseadas na identidade religiosa, outra na identidade cultural, e outras baseadas em questões de classe social.
Para o Senado sírio, o melhor é que os senadores sejam eleitos por região geográfica. Isso ajudará a garantir que os diversos elementos da nação – etnicidade, religião ou qualquer outra coisa que distinga várias regiões – sejam representados.
O presidente deve nomear o primeiro-ministro que irá formar um governo. Ambos os órgãos legislativos devem aprovar o governo por uma margem alta, talvez de 60%, o que serve para consolidar o consenso.
Eu também acho que os governadores locais devem ser eleitos pelos conselhos locais, por uma alta margem, pelo bem da harmonia local, social e sectária.
Conclusão
O que eu apresentei aqui é apenas uma humilde tentativa de participar no diálogo sobre a Constituição e o governo mais apropriados para a Síria. Eu acredito que uma Síria democrática é possível, mas a mudança será impossível se não houver liberdade de expressão e se as violações da dignidade humana e dos direitos continuarem. Enquanto as divisões se aprofundam, a paz e a harmonia vão cada vez mais longe.
Quem pode liderar essa transição? A história deu ao Dr. Bashar al-Assad essa responsabilidade e colocou na frente dele muitas escolhas difíceis, até mesmo desesperadoras.
Muito temos ouvido falar sobre várias conspirações contra a Síria, que estiveram e estão sempre presentes. No entanto, em vez de focar sobre isso, devemos usar todos os bons desejos e esperanças que existem com relação à Síria, regional e internacionalmente, e trabalhar para chegar à melhor solução para o país, que tenho certeza que irá exigir um amplo consenso.
Como membro da Igreja Católica, eu também espero que um país amigável à Síria e importante para a Igreja, como o Brasil, irá reunir os nossos amigos fora do país para ajudar a completar a atual transição democrática.
A nação também precisa de uma forma de indenizar, tanto material quanto imaterialmente, as famílias que perderam membros nos eventos. Também é preciso criar oportunidades para aqueles que serviram e continuam servindo a sua nação em boa consciência. Quando a reforma chegar, se eles forem removidos de suas posições, isso deve ser feito de forma pacífica e honrosa. Tudo isso é necessário para evitar a vingança, que só levará a mais perdas, até mesmo possivelmente a perda da nossa unidade.
Eu convido, de todo o meu coração, o presidente e seus assessores a olhar para a chance histórica que nos foi dada, de que a Síria possa dar um salto rumo a um futuro melhor.
O amor pelo próprio país requer uma disponibilidade para fazer enormes sacrifícios. Não há dúvida de que a transição democrática vai exigir esses enormes sacrifícios juntamente com coragem e generosidade de espírito. Aqueles que têm autoridade na comunidade internacional devem ter a sabedoria para facilitar essa transição, abrindo um caminho, se necessário, para aqueles que deixam seus escritórios oficiais para viver com honra e segurança.
Deixemos o estudo e a avaliação deste período crítico e histórico para as gerações vindouras. Certamente, haverá pontos de vista divergentes sobre os acontecimentos atuais. No entanto, para aqueles de nós que estão vivendo este momento, devemos procurar as melhores e mais razoáveis soluções negociadas com coragem, sabedoria e justiça. Este não é o momento de acertar contas, mas sim um tempo para ser passado com o mínimo de perdas possíveis. Eu também devo expressar a esperança, que todos nós compartilhamos, de que este período de transição vai passar o mais rápido possível para acabar com o atual isolamento internacional da Síria, já que a situação econômica se tornou terrível para muitos, especialmente para os mais pobres deste país.
Finalmente, quero afirmar o meu desejo de servir a esta sociedade que eu amo, não importa o custo, e a minha absoluta recusa à violência real ou intelectual. Peço ao Deus que ama a humanidade que torne próspera a Síria e faça dela uma fonte de inspiração e um modelo para as gerações vindouras.
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A democracia consensual. Artigo de Paolo Dall'Oglio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU