"Isso não era para estar assim", comenta o guia nepalês
Nara Bhujel, olhando incomodado para a névoa que encobre nossa trilha a caminho do Monte Everest, no
Parque Nacional do Sagarmatha, no Nepal. "Nessa época, já era para o céu estar limpo." É 12 de novembro e estamos passando por uma floresta de cascatas semicongeladas entre as vilas de Khunde e Dhole, a quase 4 mil metros de altitude. Felizmente, foi um dos poucos dias de tempo fechado que tivemos nas duas semanas de caminhada até o Acampamento-base do Everest. Nos outros dias, céu azul e sol forte o tempo todo, com quase nenhuma nuvem no céu e paisagens incríveis despontando a cada curva. O que também não deixa de ser estranho. Tantos dias seguidos de tempo bom não costuma ser a regra.
Pode ter sido sorte. Pode ter sido o aquecimento global.
A reportagem é de
Herton Escobar e publicada pelo jornal
O Estado de S. Paulo, 27-11-2011.
Na paisagem iluminada pelo Sol, os sinais de mudança climática se tornam evidentes. "As montanhas costumavam ter muito mais neve. Não tinha tanta rocha exposta", diz a guia da expedição,
Andrea Cardona, que já fez a trilha até o Everest 14 vezes nos últimos anos. Um comentário que eu ouvi de vários moradores locais, ao longo de um mês caminhando pelas trilhas montanhosas do Nepal.
A impressão geral entre os povos tradicionais das montanhas é de que o clima "enlouqueceu" de uns dez anos para cá. Os invernos não são mais tão frios como costumavam ser. A quantidade de neve diminuiu. A chuva não cai mais quando costumava cair. As plantas estão florescendo fora de época. E várias nascentes estão secando.
"Antes, na minha vila, a neve vinha até aqui. Agora, só vem até aqui", afirma
Bhujel, apontando primeiro para o seu joelho e depois, para o seu tornozelo. "Está tudo errado", resume o colega Dorji Tamang, que trabalha com expedições na região há mais de dez anos. "Não dá para prever mais nada."
No
Parque Nacional de Langtang, ao norte de Katmandu, a história é bem semelhante. Tão semelhante que os moradores parecem ter combinado suas falas. "Quando a gente planta, não chove nada. E depois que a gente colhe, chove um montão", relata
Tensing Lama, da vila de Langtang, um enclave de agricultores e mochileiros espremido entre duas fileiras de picos nevados no centro do parque, a 3,5 mil metros de altitude.
O resultado prático é que as plantações de batata - item básico de sobrevivência na dieta das montanhas - não se desenvolvem. E os agricultores sofrem. "Está tudo ao contrário", afirma
Lama, confuso.
"Eles não sabem necessariamente associar o que está acontecendo ao aquecimento global. Mas basta você explicar que tudo se encaixa", diz
Roshan Sherchan, da organização WWF Nepal, que desenvolve projetos sociais de adaptação às mudanças climáticas na região.
A imprevisibilidade das chuvas se encaixa com perfeição nos modelos de mudança climática, que preveem distorções temporais nos padrões de precipitação em todo o planeta. A quantidade de água que cai do céu pode continuar a mesma, mas a periodicidade com que ela cai deverá ficar mais concentrada e esporádica, produzindo mais tempestades e menos chuvas periódicas - do tipo que os plantadores de batata precisam.
Os ventos também têm dado sinais de "loucura" em
Lantang. No último inverno, moradores relatam que um vento "forte e rodopiante", parecido com um tornado, baixou sobre a vila, arrancando os telhados de várias casas.
Piemba Cho Tine, de 35 anos, conta que foi sugada de dentro de sua residência e jogada a uns 20 metros de distância. Ela, felizmente, não se machucou, mas seu marido e seu filho mais novo, de 1 ano, não tiveram a mesma sorte. Ambos morreram esmagados, debaixo de uma cama, quando o vento derrubou uma parede de pedras sobre eles.
"Tinha muita neve descendo da montanha, com pedras e pedaços de coisas rodopiando pelo ar", conta
Piemba, que agora sobrevive das doações de turistas e da pequena plantação de batatas que cultiva com a ajuda de seus três filhos sobreviventes, de 7, 8 e 9 anos. "Nunca vi uma coisa dessas." Assim como muitos moradores mais simples das montanhas, sem acesso a televisão, rádio ou internet, Piemba nunca ouviu falar de aquecimento global. Mas acha muito estranho o que anda acontecendo com o clima ultimamente.
Menos neve, menos gelo
A algumas horas de caminhada dali, na vila de
Kianjin Gumba, as bordas das geleiras que descem do Langtang Lirung, o pico mais alto do parque (7.227 metros), recuam visivelmente montanha acima. Ao olhar para elas, pensei: "Quando voltar para Katmandu vou procurar um pesquisador que possa me explicar o que está acontecendo aqui". Mas não foi preciso.
Tshering Lama, proprietária de uma das pousadas mais antigas da vila, me deu uma explicação tão boa e convincente quanto a de qualquer cientista. "Antes, nevava no inverno, quando a terra e o ar estão mais frios, então a neve acumulava e virava gelo. Agora, neva mais tarde, quando a terra e o ar já não estão tão frios, então a neve derrete mais rápido e não vira gelo. Por isso as geleiras estão encolhendo."
O "normal", segundo
Tshering, era nevar em dezembro e janeiro. Agora, só neva em fevereiro e março. Diferenças pequenas no calendário, mas que podem ser desastrosas para as geleiras e para a agricultura tradicional das montanhas. "A capacidade de adaptação dessas comunidades é muito limitada", diz o pesquisador
Arun Shrestha, do Icimod. "Pequenas alterações podem trazer grandes impactos."
Enquanto prepara uma sopa de macarrão e batatas para o almoço, Tshering aponta para a face rochosa do
Lantang Lirung, preenchendo quase toda a vista da janela da cozinha, e comenta, sem ser perguntada: "Quando eu era menina, ela era toda branca, sempre. Não dava para ver nada dessas rochas pretas embaixo". É como se ela e Andrea tivessem combinado suas falas.
Pode ser coincidência. Pode ser o aquecimento global.
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Sinais de mudanças climáticas a olho nu - Instituto Humanitas Unisinos - IHU