Quem consultar a programação de novembro da
Escola da Vida vai encontrar cursos sobre temas aparentemente tão desconexos quanto fidelidade, vida digital, compaixão e o fascínio do “cool”. Criada em 2008 por
Alain de Botton, a escola para adultos funciona em uma casa discreta na Marchmont Street, em Londres, e reflete em sua agenda de atividades a inquietação intelectual desse jovem (42 anos em dezembro) filósofo suíço que se tornou best-seller no mundo inteiro aproximando a reflexão filosófica da vida cotidiana.
A reportagem e a entrevista é de
Cláudia Laitano e publicada pelo jornal
Zero Hora, 19-11-2011.
Botton é pós-graduado em filosofia francesa pela Universidade de Harvard e tem nove livros publicados. Já escreveu sobre viagens (
A Arte de Viajar), arquitetura (
A Arquitetura da Felicidade, seu livro mais bem-sucedido), trabalho (
Os Prazeres e Desprazeres do Trabalho), literatura (
Como Proust Pode Mudar Sua Vida) e consumismo (
Desejo de Status), entre outros assuntos, sempre tentando aplicar conceitos da filosofia a temas contemporâneos em um estilo simples e direto, como se estivesse realmente batendo um papo com o leitor – na tradição de filósofos que foram também grandes ensaístas da vida cotidiana, como Michel de Montaigne. O autor testou-se também na ficção, com a novela
Ensaios de Amor (1993), e anuncia para breve um romance sobre o casamento.
Seu mais recente livro lançado no Brasil,
Religião para Ateus, talvez seja também um dos mais polêmicos. Com potencial para incomodar tanto os que acreditam quanto os que não acreditam em Deus – o próprio autor define-se como “um ateu interessado nos mecanismos e lições da religião” –, o livro sugere que o secularismo tem muito a aprender com os ritos da fé e com as estratégias que a religião tem usado, desde o princípio dos tempos, para tornar-se indispensável na vida de boa parte da humanidade. Elementos como a arte, a educação e a convivência em comunidade.
“Aqueles de nós que não têm religião nem crenças sobrenaturais ainda precisam de encontros regulares e ritualizados com conceitos como amizade, comunidade, gratidão e transcendência. Não podemos depender da nossa capacidade de chegar a eles sozinhos. Precisamos de instituições que nos lembrem de que necessitamos deles e que os apresentem em embalagens atraentes”, escreve
Botton em Religião para Ateus.
Eis a entrevista.
Seu novo livro é sobre a ideia de que é possível – e mesmo desejável – que ateus tomem práticas emprestadas da religião para viver uma vida melhor. Será que seu livro não poderia ser lido, por uma mente insana, como uma espécie de “bíblia” de uma religião humanista?
É, acho que você disse tudo: uma mente insana. Quer dizer, acho que seria um perigo se eu estivesse dizendo que há uma verdade, uma maneira apenas de pertencer, que devemos nos agrupar ao redor de uma ideologia ou algo assim. Haveria perigo de o que eu sugiro ser visto como uma religião se eu estivesse empurrando uma ideologia, uma religião realmente distinta, mas não, não estou de fato olhando para o conteúdo da religião, mas sim para a forma. É isso que me interessa: como a religião nos reúne, não como ela ensina, mas o que ela ensina, como ela usa a arte, como ela usa rituais, como usa viagens, como usa a arquitetura, como ela reúne pessoas. Isso pode ser usado em várias áreas da vida, não apenas para criar uma religião, que não é o que quero fazer, mas se você é um artista, se está envolvido em ensinar pessoas, se é um terapeuta, um escritor, um administrador. Há muitas aplicações, e não apenas para substituir a religião. Não acho que isso vá funcionar – nem que deva funcionar. Não é minha intenção, embora ache que possa ser um pouco ambíguo. O título pode ser lido como “eis uma religião para ateus”, ou como “o que ateus podem aprender da religião”. E é essa segunda leitura que almejo. Realmente não quero ser confundido com alguém que quis começar uma nova religião.
Por que o secularismo falhou em trazer respostas para problemas cotidianos, como a ansiedade relacionada ao trabalho e ao amor ou o medo da morte?
O secularismo tem um grande foco na rejeição. Ser um ateu, um secularista, significava falar daquilo que você não acredita, do que não quer, do que não gosta. O mais difícil, primeiramente, é dizer “é disso que gostamos”, “é isso que queremos”. E, em segundo lugar, eles tinham pavor de passar qualquer quantidade de tempo debruçados sobre a religião – a religião tornou-se algo parecido com aquela pessoa que não se quer ver, que você quer afastar, que você não quer nem admitir que já foi amigo dela. Se algo houve de errado, é que o secularismo deveria ter olhado a religião mais de perto, com mais simpatia. E deveria ter-se feito perguntas muito básicas: “Por que as pessoas acreditam nisso tudo?”, “O que eles reproduzem?”, “O que faremos a respeito desta necessidade, agora que eles se acostumaram a acreditar?”.
Nas primeiras páginas de Religião para Ateus, você diz que seu livro pode irritar tanto ateus quanto religiosos. Por que você decidiu seguir este caminho difícil, e como seus leitores têm reagido?
Escolhi este caminho porque acho que há muitas pessoas como eu. Há muitas pessoas que se descreveriam como seculares, mas que também diriam coisas como “gosto da linda arquitetura das igrejas”, ou “gosto da atmosfera de uma sinagoga”, “admiro o desenho de templos”, “gosto do Natal”, “gosto do Chanukkah” ou “Há algo bom sobre a moralidade, ou o sentimento de comunidade, que a religião propicia”... mas eles dizem – ou eu digo – “Nós não acreditamos”. Esse tipo de pessoa é normalmente ignorado, o que quer dizer que não tem para onde ir, porque, se por um lado, há ateus como
Richard Dawkins, que dizem que tudo é ridículo e infantil, também há ecos de vozes religiosas que dizem que você precisa acreditar em tudo. Então, creio que eu escreva para esta comunidade de ignorados, e escrevo porque já me senti ignorado. Sobre a reação, na verdade, este livro está saindo em português antes de sair em inglês. Os outros países em que já foi publicado foram Holanda, Coreia do Sul, estranhamente, e Turquia. E foi muito bem recebido, na Holanda e na Coreia, foi extremamente bem recebido. Mas também, quem sabe como as pessoas vão recebê-lo em inglês?
Em países como o Brasil, políticos religiosos são muito poderosos no Congresso, tornando impossível a aprovação de leis sobre aborto ou contra a homofobia. O Oriente Médio é hostil com relação às mulheres, por conta da religião. Nos Estados Unidos, ensina-se criacionismo nas escolas. Você acha que seu livro pode ser tachado como eurocêntrico por sua abordagem pós-religiosa do mundo?
O livro faz algo que é muito difícil para ateus, que é dizer que mesmo que a religião tenha feito coisas horríveis, e continua fazendo, mesmo que a religião por vezes tenha uma mentalidade bastante estreita, mesmo que haja tanto mal, talvez também haja algo interessante, algo para se roubar. E isso é um pouco difícil psicologicamente, eu aceito, dizer a alguém que acaba de experimentar o pior lado de uma pessoa religiosa e intolerante que deve haver algo de positivo ali, algo para se aprender dessa experiência. E isso pode ser mais do que as pessoas podem suportar. Acho que este livro seria “demais” para um leitor na Arábia Saudita, mas não estou escrevendo para o povo da
Arábia Saudita. Mas também meu livro seria banido lá, porque sou judeu. Então, meu alvo não é a audiência saudita. Mas talvez para uma audiência brasileira, americana ou britânica, haveria espaço nessas sociedades para uma mensagem como a minha. No
Brasil, há muita teocracia. Claro que há políticos católicos poderosos no Brasil, assim como há no Reino Unido, mas acho que a vida no Brasil moderno é muito secular, de diversas maneiras, assim como nos Estados Unidos. E claro que há muitas pessoas que ainda creem.
Você escreveu um livro chamado Consolações da Filosofia. Seu novo livro parece admitir que nem todo mundo pode ser consolado através de pensamento racional ou, pelo menos, nem sempre. Você vê alguma contradição nisso ou são apenas ideias complementares?
Acho que você está certa. O que torna a religião interessante é que atinge nossas emoções. Esse é um aspecto muito importante e frequentemente esquecido por filósofos. Eles nos veem apenas como cérebros grandes, mas somos também criaturas emocionais, irracionais, e se você tentar se comunicar com uma plateia deve ver que isso também é parte da natureza humana. Em meu livro filosófico anterior, mostro que as religiões são muito interessantes porque sabem como tocar as pessoas através de suas emoções. É por isso que usam muita arte. Todas as religiões usam muita arte. Há coisas que não se pode fazer através da razão; não é o suficiente. E eu concordo com as religiões nesse ponto.
Você foi criado em uma família judia ateísta. Como descreveria sua vida espiritual do início da juventude até agora?
Não tenho uma vida espiritual. Nunca tive uma vida espiritual no sentido de acreditar. Nunca acreditei. Houve uma mudança, porém. Cresci em uma casa onde toda conversa sobre religião era vista como ridícula, não possível para pessoas inteligentes. Na época em que me tornei mais simpático à religião, ainda assim não me tornei religioso, nem tive essa intenção. A religião, em muitos de seus aspectos, parece completamente impossível para mim. Todavia, sou muito interessado nos mecanismos e lições da religião, e nesse sentido mudei. Conheci pessoas que acreditavam de verdade nessas coisas e se tornaram meus amigos, e mantive conversas com eles...
Você tem filhos?
Sim, sim, tenho dois filhos.
E como você lhes ensina religião?
Ensino a eles, essencialmente, um tipo de narrativa científica. Digo coisas como “Quando as pessoas não sabiam de onde vinha o trovão, pensavam que podia ser um deus no céu” ou “Pessoas queriam ser legais umas com as outras, mas não sabiam como persuadir outras a dizer ‘não, isso não é legal, você será queimado em óleo por persuadir outros’”, e então digo a eles “O que vocês acham sobre isso, o que consideram certo?”. E então digo: “Talvez eles tenham simplesmente inventado tudo”. Uso a escolha, porém apresento uma narrativa como essa.
O filósofo francês André Comte-Sponville lançou, há alguns anos, um livro chamado O Espírito do Ateísmo, tentando refletir sobe o que seria uma espiritualidade ateísta. Você fala em uma era 2.0 do ateísmo, pós-confronto e mais subjetiva...
Sim, acho que é essa a maneira certa de começar, porque de outra forma o debate fica estéril. É muito mais interessante ser confiante a respeito de sua rejeição à religião, tão confiante que não seja mais necessário rejeitar tudo. Acho que, no início, as pessoas estavam tão assustadas com a religião que pensavam que deveriam rejeitar tudo. Acho que o ateísmo 2.0, como o chamo, diz respeito a aceitar. Há muito que podemos considerar interessante.
O biólogo Richard Dawkins e o jornalista Christopher Hitchens optaram pela via do confronto direto contra a religião, tornando-se best-sellers do chamado novo ateísmo. Como você analisa o trabalho deles?
Não é esse meu estilo. Não gosto de polêmica violenta, em qualquer forma. Apesar de, basicamente, concordar com eles no conteúdo do que dizem, acho que a maneira como falam parece peculiar, e não entendo por que. Eles parecem lastimar por pessoas que acreditam em certas coisas. Isso os deixa sozinhos. Parece haver uma maneira lógica, inteligente de se fazer isso. Simplesmente dizer aos religiosos: “Ei, você acha mesmo que Jesus foi o filho de Deus, seu estúpido ridículo?”. Isso é desagradável; quero dizer, deixe as pessoas em paz, o que foi que fizeram a você?
Que pensadores do século XXI estão sendo bem-sucedidos na análise do nosso tempo?
Muitos. Não temos falta de pensadores. Há centenas de pensadores muito bons, muito interessantes. O problema é que não sabemos sobre eles. Eles não estão na televisão. Não nos importamos com eles. Eles publicam seus livros através de editoras universitárias e vendem cinco cópias. Há muitos pensadores sábios e interessantes. Quero dizer: onde eles estão? Por que não ouvimos a respeito deles? Por isso a religião é um exemplo tão fascinante: ela não produz as melhores ideias.
Buda não tinha as melhores ideias. Ele viveu uma vida bastante interessante, mas não a melhor. Podemos fazer melhor. Ainda assim, ele permanece muito mais influente que vários filósofos. É dessa maneira que vejo.
No seu livro, você enfatiza o quanto precisamos de uma vida comunal. Você acha que redes sociais estão nos unindo ou nos separando?
Estamos nos unindo, mas não da maneira mais profunda. O que as redes sociais fazem é unir as pessoas ao redor das coisas de que elas gostam. Se você gosta de hóquei no gelo, pode se juntar a amantes de hóquei no gelo; se gosta de cozinhar, de salsichas, seja o que for. Eles se agrupam através de gostos. Porém uma comunidade verdadeira não se reúne apenas em torno de gostos comuns. É unida pelo simples fato de sermos humanos. Quando um grupo de estranhos se reúnem e descobrem que podem ver a humanidade um do outro, apesar de um gostar de hóquei no gelo e o outro não, um odiar cozinhar e outro não gostar de salsichas. É esse o verdadeiro desafio. Nesse sentido, as redes sociais não contribuem de qualquer maneira.
Você menciona Auguste Comte como um filósofo que percebeu que a secularidade necessita de rituais e práticas de religião. Você sabia que Porto Alegre possui um templo positivista?
Li que o Rio de Janeiro tem um, mas não sabia que Porto Alegre também. Isso é muito interessante pra mim. E eu o visitarei, assim que for a Porto Alegre.
Porto Alegre é uma cidade bastante positivista em certo sentido...
A sua imagem (de Comte) é a de um homem ridículo. De muitas maneiras, era mesmo ridículo. Mas eu o considero muito, muito interessante.
Comte percebeu que o desaparecimento da religião por causa da ciência mudaria radicalmente a sociedade e traria novos problemas. Hoje sabemos quais foram esses problemas: as pessoas se sentem mais sozinhas, têm dúvidas sobre o sentido da vida, se importam demais com dinheiro, não são gentis umas com as outras... Todas essas coisas já se tornaram realidade. E a solução proposta por Comte foi criar essa religião para a humanidade, que ele imaginava pegar emprestadas as melhores características da religião descartando os maus hábitos.
Em alguns dos seus livros mais recentes, como Os Prazeres e Desprazeres do Trabalho e Uma Semana no Aeroporto, e mesmo em algumas partes de Religião para Ateus você se aproxima do jornalismo, indo a campo e apurando, mais do que teorizando. Há uma tendência aí?
Acho importante fornecer não apenas análises, não apenas ideias, mas também sentimentos de pessoas reais, e lugares, e emoções. A mistura é sempre boa. Sempre fiz isso nos meus livros, de diferentes maneiras. Não é verdadeiramente jornalismo. É mais um tipo de narrativa não ficcional. Há descrições. É parecido com o que Norman Mailer fazia, no sentido de que é uma reportagem, de certa maneira. Mas é apenas um estilo, e como escritor sempre observo estilos diferentes, que podem ser bons para o assunto. No momento, estou escrevendo um romance sobre o casamento. Esse é meu próximo passo. Deve sair provavelmente em 2014.
Como você responderia aos críticos que dizem que seus livros trivializam conceitos da filosofia?
Não sei. As pessoas assistem a programas terríveis na televisão: Big Brothers e coisas sensacionalistas. Se alguém trivializa
Hegel ou
Heidegger, no meu ponto de vista, isso não é tão ruim assim. Seria essa a minha resposta.
O que você sabe sobre o Brasil?
Nunca estive no Brasil, mas considero o país fascinante. A descendência europeia produz uma cultura muito interessante, e o modo como a religião lida com isso é fascinante. Eu me interesso bastante pela arquitetura do país, particularmente a arquitetura moderna. E me interesso em o quão “não britânico” é o Brasil, em todos os sentidos. O quão diferente as mulheres são. Para mim, é tudo muito interessante.
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Ateísmo 2.0, segundo Alain de Botton - Instituto Humanitas Unisinos - IHU