14 Novembro 2011
"Não se deve confundir a Missa Afro com a Missa dos Quilombos. A primeira – Afro – é uma Missa simples, em que as Comunidades Eclesiais de Base cantam hinos em ritmo afro-brasileiro, próprio da negritude. A segunda – a Missa dos Quilombos é composição do bispo Pedro Casaldáliga e do poeta Pedro Tierra, musicada pelo grande artista negro Milton Nascimento", escreve Antonio Cechin, irmão marista e miltante dos movimentos sociais, autor do livro Empoderamento Popular. Uma pedagogia de libertação. Porto Alegre: Estef, 2010.
Eis o artigo.
No dia 14 de novembro acontece, às 14h30min, no Solar dos Câmara, a abertura da 2ª Semana da Consciência Negra da Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul. Nos seguintes dias, até 18, uma vasta programação de conferências, reuniões cívicas e religiosas, inaugurações, encenações, etc. A Semana da ALRS encerra dia 18, sexta-feira, às 19 horas, com uma Missa Afro, celebrada por Bispo de diocese do interior do estado.
Não se deve confundir a Missa Afro com a Missa dos Quilombos. A primeira – Afro – é uma Missa simples, em que as Comunidades Eclesiais de Base cantam hinos em ritmo afro-brasileiro, próprio da negritude. A segunda – a Missa dos Quilombos é composição do bispo Pedro Casaldáliga e do poeta Pedro Tierra, musicada pelo grande artista negro Milton Nascimento.
A Missa dos Quilombos nasceu de uma sugestão do bispo Dom Hélder Câmara, logo depois de ter participado do lançamento da Missa da Terra Sem Males, no dia 19 de abril de 1979, na catedral de São Paulo, concelebrada por dezenas de bispos, sob a presidência do cardeal Arns. Dom Hélder ficou tão empolgado com a Missa dos Mártires Índígenas de toda a América Latina, que solicitou aos mesmos autores desta Missa, que criassem também uma missa celebrativa dos Mártires Negros de toda a América. A inauguração da nova missa se deu um par de anos depois, na catedral de Recife, presidida por Dom Hélder Câmara, ladeado na celebração de numerosos outros bispos.
No lançamento da Missa da Terra Sem Males, Dom Pedro Casaldáliga faz a introdução dizendo:
"Nós cristãos estamos habituados a reconhecer e a celebrar somente os mártires que os outros nos fazem. Ignoramos tranquilamente os muitos mártires que nós fazemos.
Aqui no Brasil, 1978 foi "Ano dos Mártires" da Causa Indígena. Celebravam-se trezentos e cinqüenta anos dos Três Mártires Rio-grandenses, Roque Gonzáles, Afonso Rodriguez e João Castilho. O CIMI – Conselho Indigenista Missionário – achou que era de justiça que não se celebrasse apenas a morte dos três missionários jesuítas. Porque os mortos eram muitos mais.
Devia-se também celebrar a morte de milhares de índios, sacrificados pelos impérios Cristãos da Espanha e Portugal.
Uns e outros, Mártires da Causa Indígena. A Cruz, no meio deles todos. Aqueles, morrendo pelo amor do Cristo. Estes, massacrados "em nome" do Cristo e do Imperador"
Se a Teologia da Libertação, em preparação ao Encontro Episcopal Latino-Americano de 1979, decidiu transformar o precedente ano de 1978 como um ano inteiro de todos "os muitos mártires que nós fazemos", referindo-se especialmente aos mártires índios do continente, a mesma Teologia da Libertação está devendo à Igreja do Brasil a proclamação de "um ano dos muitos mártires afro-brasileiros que nós, brancos, fizemos e continuamos fazendo."
Em nosso território rio-grandense do Sul, em relação às duas categorias de mártires, indígenas e afro-brasileiros, praticaram-se dois massacres e genocídios que cientistas, especialmente historiadores se esforçam por ignorar e até esconder.
O genocídio indígena rio-grandense do Sul, aconteceu na Sanga da Bica, cidade de São Gabriel, no dia 7 de fevereiro de 1756, quando foi abatido São Sepé Tiaraju pelos exércitos aliados de Espanha e Portugal. Três dias depois, 10 de fevereiro, foi a chacina de nada menos que 1500 guarani, companheiros de Sepé. Todos mártires pela causa de Justiça. Pelo Tratado de Madrid, seriam defenestrados de suas terras e de suas lindas cidades, designadas como os Sete Povos das Missões.
No ano de 1844, precisamente no dia 14 de novembro, os vilões chefes Farroupilhas mancomunados com Caxias, degolaram na localidade de Porongos, dezenas de negros que também lutavam por Justiça e Liberdade. Os chefes, grandes latifundiários gaúchos, em guerra contra outros fazendeiros federalistas, haviam prometido a seus escravos que se fossem para a frente de batalha lutar, seriam libertados da escravidão.
Cansados de guerrear inutilmente durante 10 anos, os comandantes farroupilhas, conseguiram uma paz espúria consagrando o Rio Grande e o Brasil como escravistas. Optaram pela degola pura e simples dos Lanceiros Negros. Tinham às mãos, a oportunidade de serem Profetas da Libertação de todos os negros escravos no Brasil. Teriam sido verdadeiramente "precursores da Liberdade" como cantaram e se continua cantando mentirosamente até hoje, no hino oficial do estado.
A chamada Lei Áurea da "libertação dos negros" só aconteceu quarenta e quatro anos depois, em 13 de maio de 1888, por obra e graça dos militantes negros. Os Farroupilhas se transmudaram em vilões não só pela degola do esquadrão dos Lanceiros Negros, mas também pelo retardamento de uma liberdade sonhada por multidões de pessoas decentes do mundo inteiro. Eis que o Brasil foi o último país do mundo a acabar com a vergonhosa condição de país escravista.
Um tradicionalista de carteirinha, em jornal de Porto Alegre, exaltando seu "herói" farroupilha, Bento Gonçalves da Silva, descreve-o textualmente como "destro espadachim (aos 13 anos, matou em duelo um negro bandido que era o terror de Triunfo e, aos 54 anos, venceu em duelo matando Onofre Pires que era um gigante)" (Antônio Augusto Fagundes, na crônica "A casa de Bento Gonçalves – 2 – jornal Zero Hora 12/11/2011, segundo caderno, pág. 6). Que exemplo pode dar à nossa juventude o comandante dos farroupilhas, assassino confesso, desde os 13 anos de idade, ao ser cultivado até os dias hoje como herói?
Não admira portanto a ordem que deu Bento Gonçalves, barganhada que foi com o inimigo duque de Caxias, para a degola dos negros que lutavam com denodo, em favor da própria liberdade e na esperança de poderem, finda a guerra, libertar também os demais irmãos presos aos grilhões.
As autênticas "Missas Crioulas" do Rio Grande do Sul, como verdadeiras Missas de Libertação de uma autêntica Igreja dos Pobres, são portanto a Missa da Terra Sem Males e a Missa dos Quilombos. A tal "missa crioula" que carrega esse nome oficial, não passa de missa de CTG e de latifundiários, dignos representantes da classe dominante.
Por que será que hoje em dia, os grandes meios de comunicação exaltam sempre a "façanha" dos farroupilhas como revolução ou epopéia farroupilha e, raramente, como guerra dos "farrapos"? Não será porque os comandantes eram grandes fazendeiros e quem lutava em seu lugar, na frente de batalha, eram negros escravos e peões? Estes e só estes, eram os verdadeiros esfarrapados porque nem de uniforme dispunham, somente os andrajos da sua pobreza.
Gente graúda, historicamente não luta em frentes de batalha. A propósito, alguns anos atrás, quando os grandes estancieiros do Rio Grande, por falta de coragem por não poderem somar a quantidade de Sem Terra e Pequenos Agricultores em luta por seus direitos, decidiram fazer um tratoraço de protesto contra o governo federal, fomos observar de perto a tal movimentação latifundista. Em cima dos tratores, desfilando, quem é que vimos? Eram os peões, não os patrões. Dá para imaginar a dificuldade que a nação teria para fazer patrões de sesmarias, cerrar fileira numa frente de batalha em defesa do torrão natal?
Dizem que a história só pode repetir-se como farsa. Pois não é que dias atrás, a fim de conseguirem aprovar o Código Florestal com seus conteúdos antiecológicos, os desmatadores latifundiários, decidiram fazer uma marcha sobre Brasília. Só conseguiram a façanha "montados" em milhares de pequenos agricultores alienados, que lhes serviram de inocentes úteis.
Em nossa mui "leal e valerosa cidade de Porto Alegre" como já afirmamos acima, a autêntica Missa dos Quilombolas não acontecerá neste ano de 2011, na igreja do Rosário, como programado; nessa igreja realizar-se-á uma missa afro, celebrada por um bispo. A Quilombola autêntica dar-se-á em recinto leigo, na Assembléia Legislativa, auditório Dante Barone, no dia 14/11/2011, aniversário dos Mártires que os farroupilhas nos fizeram em Porongos. Será coordenada pelo cristão dos quatro costados, Senador Paim, de clara opção pelos pobres índios e quilombolas. Estes pobres, os verdadeiros esfarrapados, se encontram ameaçados pelos grandes, a não poderem entrar na posse definitiva das terras tradicionais que lhes pertencem, por direito garantido pela própria constituição de 1988, também apelidada de "constituição cidadã".
A missa-Paim será réplica à audiência pública, acontecida 10 dias atrás, no mesmo auditório da Assembléia Legislativa. Naquela ocasião presidia a senadora do partido da RBS, só que com presença mínima de grandes latifundiários. Porém como sempre, tendo os poucos patrões, uma massa de pequenos agricultores a cabresto. Todos visceralmente contrários a quilombolas e índios, por estarem na iminência de serem indenizados pelo governo federal, já que se encontram em cima de terras tradicionais de quilombolas e de comunidades indígenas.
O critério para a escolha de uma ou de outra missa, nos foi legado pelo Mestre Jesus de Nazaré quando falou: "Pelos seus frutos os conhecereis". "Amar a Deus e amar ao próximo como a si mesmo" e tantas outras passagens da Sagrada Escritura apelam para uma clara opção pelos pobres, o lado sempre privilegiado pelo Messias.
Sempre que na Missa ou alhures rezamos o Credo numa atitude de afirmação de nossa profissão de fé, dizemos: creio na ressurreição da carne. Cabe então a pergunta: Será que esta carne de que é constituído nosso corpo, vai ressuscitar de verdade, se não coloco toda esta matéria que pesa seus 60 ou 70 quilos, isto é meu corpo individual, se não o colocar a serviço da luta pela libertação de meus irmãos índios e quilombolas ? Os pobres só conseguem sua própria libertação se colocam corpos e mais corpos, uns ao lado dos outros, em movimentos de massa fazendo pressão todos juntos. "A fé sem obras é nula" na expressão de Tiago apóstolo.
Nada melhor do que concluir a presente reflexão em torno do histórico dia 14 de novembro, do que a própria conclusão, proclamada na catedral de Recife, pelo bispo profeta Dom Hélder Câmara, no encerramento da primeira celebração do Missa dos Quilombos:
INVOCAÇÃO A MARIAMA
Mariama, Nossa Senhora,
Mãe de Cristo e Mãe dos homens!
Mariama, Mãe dos homens de todas as raças,
de todas as cores, de todos os cantos da terra.
Pede ao teu filho que esta festa não termine aqui,
a marcha final vai ser linda de viver.
Mas é importante, Mariama, que a Igreja de teu filho
não fique em palavras, não fique em aplausos.
O importante é que a CNBB, a Conferência dos Bispos,
embarque de cheio na causa dos negros,
como.entrou de cheio na Pastoral da Terra e.na Pastoral dos Índios,
Não basta pedir perdão pelos erros de ontem.
É preciso acertar o passo hoje, sem ligar ao que disserem.
Claro que dirão, Mariama, que é política, que é subversão, que é comunismo.
É Evangelho de Cristo, Mariama.
Mariama, Mãe querida,
problema de negro,
acaba se ligando com todos os grandes problemas humanos.
Com todos os absurdos contra a humanidade, com todas as injustiças e opressões.
Mariama, que se acabe, mas se acabe mesmo, a maldita fabricação de armas.
O mundo precisa fabricar é Paz.
Basta de injustiça, de uns sem saber o que fazer com tanta terra,
e milhões sem um palmo de terra onde morar.
Basta de uns tendo de vomitar para poder comer mais
e 50 milhões morrendo de fome num ano só.
Basta de uns com empresas se derramando pelo mundo todo
e milhões sem um canto onde ganhar o pão de cada dia.
Mariama, Nossa Senhora, Mãe querida,
nem precisa ir tão longe como no teu hino.
Nem precisa que os ricos saiam de mãos vazias
e os pobres, de mãos cheias.
Nem pobre nem rico.
Nada de escravo de hoje ser senhor de escravos amanhã.
Basta de escravos,
Um mundo sem senhor e sem escravos.
Um mundo de irmãos.
De irmãos não só de nome e de mentira.
De irmãos de verdade, Mariama.
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14 de novembro, Dia dos Mártires Quilombolas que os Farroupilhas nos fizeram - Instituto Humanitas Unisinos - IHU