Uma SUV branca levanta poeira na estrada de terra que cruza o
Território Indígena Parque Nacional Isiboro Sécure, ou
Tipnis, no centro da Bolívia. Na porta do veículo, o logotipo da construtora brasileira OAS. Dentro dele viajam um funcionário da empresa, o senador governista
Julio Salazar e o repórter do Valor. Quando o carro entra no vilarejo de Icoya, dezenas de pessoas já estão esperando. Os moradores erguem cartazes e começam a gritar: "Queremos carretera [estrada]! Queremos carretera!".
A reportagem é de
Fabio Murakawa e publicada pelo jornal
Valor, 04-11-2011.
A cena ocorre poucos dias depois de o presidente
Evo Morales, sob intensa pressão de movimentos indígenas, ter assinado uma lei que impede que a rodovia, financiada pelo Brasil, passe pelo local.
O conflito, que monopolizou o noticiário do país nos últimos meses, colocou em pé de guerra alguns dos grupos que levaram
Morales ao poder, provocou um racha em sua base nos movimentos sociais e debilitou o seu governo.
Em campos opostos, estão indígenas que vivem ao norte do parque, no Departamento [Estado] de
Beni, e colonos agrícolas e cocaleiros de
Cochabamba, berço político de
Morales, interessados em escoar a sua produção e ampliar a suas fronteiras agrícolas. Essa situação deixou o presidente em uma sinuca: ex-líder cocaleiro, ele chegou ao poder em 2006 com amplo apoio dos povos nativos. Ambos os grupos ganharam poder com a ascensão de Morales, que colocou na Constituição o direito dos indígenas sobre seus territórios e reduziu a zero a repressão aos plantadores de coca, tida como um "bem cultural" do país.
A estrada, de 306 km, foi projetada para ligar diretamente
Beni a
Cochabamba, encurtando em cerca de 500 km um caminho que hoje precisa passar por Santa Cruz, reduto da oposição. Para isso, teria que cortar ao meio o Tipnis, no chamado trecho 2, de 177 km.
Sem terem sido consultados pelo governo, e com as obras já em andamento nos trechos 1 e 3, os índios iniciaram em agosto uma marcha de mais de 500 km rumo à capital para pressionar o governo a impedir a passagem da estrada pelo parque. Uma violenta repressão policial aos marchistas, no dia 25 de setembro, só fez aumentar o apoio popular à causa. Cenas de indígenas apanhando algemados e com as bocas atadas por fitas adesiva chocaram os bolivianos.
A entrada dos índios em
La Paz, em 19 de outubro, foi triunfal. Cerca de 500 mil pessoas a esperavam nas ruas da capital. Muitos choravam e abraçavam os indígenas, que recebiam comida, remédios, cobertores no caminho para o ponto final da marcha: o palácio presidencial.
A calorosa recepção dos habitantes da capital fortaleceu os índios e deixou ainda mais pressionado o presidente, cuja aprovação atingiu o seu ponto mais baixo, de 35%, após o ataque da polícia. Depois de quatro dias de negociações dentro do Palácio Quemado,
Morales elaborou, enviou ao Congresso e sancionou uma lei proibindo que essa e qualquer outra estrada atravesse o
Tipnis.
Os cerca de 1.200 indígenas começaram a deixar La Paz na manhã seguinte à aprovação da lei, em 25 de outubro. Enquanto empacotavam seus pertences, eles exaltavam a vitória na queda-de-braço com o presidente, a quem passaram a ver como um "traidor" a serviço dos cocaleiros de Cochabamba e de interesses "imperialistas" do Brasil.
"Nós [Bolívia] não temos grandes indústrias para dizer que essa estrada nos vai beneficiar enormemente", disse ao Valor
Fernando Vargas, presidente da Subcentral Tipnis, que se tornou celebridade nacional após a marcha. "O ex-presidente [do Brasil] Lula convenceu
Evo Morales a mudar a sua mentalidade política, plural e comunitária, para uma política entreguista, a uma política capitalista."
Rafael Quispe, presidente do Conselho Nacional de Ayllus e Marcas do Qullasuyu (Conamaq), era o mais antibrasileiro dos líderes indígenas. Sorridente, ele tirava fotos com bolivianos que vinham parabenizá-lo pela vitória, mas fechou a cara quando foi abordado pela reportagem do Valor. "Vocês [brasileiros] estão f... a Bolívia. O que você quer que eu te diga? Vocês vieram f... o país."
O projeto de uma conexão entre Beni e Cochabamba é antigo. A estrada já era vislumbrada pelo presidente
Antonio José de Sucre (1825-1828). Mas só começou a avançar após um acordo entre
Morales e o então presidente
Luiz Inácio Lula da Silva, em seu segundo mandato, sob circunstâncias que a oposição boliviana e os indígenas classificam como suspeitas e que causam desconforto a setores do governo brasileiro.
A
OAS foi a única empresa brasileira a participar em 2008 da licitação da rodovia, orçada em US$ 415 milhões. Lula, então, articulou para que o
BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) financiasse 80% da obra, segundo fontes do governo. Mas havia um problema: os indígenas não haviam sido consultados. A solução encontrada foi dividir as obras em três trechos e começar os trabalhos pelos extremos, deixando o processo de licenças ambientais e consultas relativos ao trecho 2, que atravessa o parque, para uma etapa posterior, quando a estrada já seria fato consumado.
Mas a estratégia não colou entre índios, que vinham tentando dialogar com o governo sobre a obra desde 2007, quando surgiram os primeiros boatos de que a rodovia sairia do papel. Assim que as máquinas da OAS começaram a trabalhar, eles articularam a marcha, que culminou na humilhante derrota de Morales, obrigado a recebê-los em plena sede do governo para assinar uma lei que praticamente inviabiliza a obra que ele tanto havia defendido.
Segundo a
OAS, desviar a estrada por fora do parque provocará um aumento do percurso de cerca de 200 km. E, de acordo com diferentes fontes, a mudança pode encarecer a obra em US$ 250 milhões e exigir um novo financiamento. Mas engenheiros ligados à obra afirmam que fazer esse desvio não será tão simples. Se ele for projetado a oeste, a rodovia passará por uma região de serra, o que aumentaria ainda mais os custos, com impactos ambientais maiores. A leste, terá que atravessar uma área pantanosa, e o caminho ficará alagado durante a estação chuvosa.
Em meio ao impasse, o
BNDES não liberou nenhum real do financiamento acertado com o governo boliviano, e as dívidas da
Administradora Boliviana de Carreteras (ABC) com a
OAS por trabalhos executados já chegam a US$ 110 milhões. Fontes em Brasília dizem que uma corrente no governo, preocupada com a imagem de "Brasil imperialista" que a obra deixou nos bolivianos, defende que o empréstimo seja anulado.
Uma autoridade brasileira disse ao Valor na semana passada que o governo está disposto a aumentar o valor do empréstimo, mas exigirá do governo boliviano um processo "menos atabalhoado" de consultas e licenças ambientais. O Brasil também espera, segundo essa autoridade, "boa vontade" de La Paz em temas como a devolução de cerca de 2.000 carros brasileiros roubados, identificados em território boliviano durante um polêmico processo de regularização de automóveis sem documentos no país.
Apesar da lei assinada pelo presidente anulando a construção do trecho 2 da estrada, setores dentro do MAS, o partido de Morales, além de líderes cocaleiros e colonos em Cochabamba, não se deram por vencidos e ainda contam com o traçado da rodovia em seu projeto original.
O Valor visitou na semana passada comunidades agrícolas na parte sul do
Tipnis, na área do município de
Villa Tunari. A região, ocupada por pequenas vilas agrícolas, plantações de coca e aldeias indígenas, é o berço político de Morales. O sentimento geral, ali, era de frustração e revolta contra os indígenas do norte, e o presidente era visto como uma vítima da pressão de líderes de entidades "financiadas por ONGs e madeireiras ilegais" que atuam no parque.
A reportagem percorreu cerca de 60 km de uma estrada precária de terra dentro do Tipnis, - no exato traçado por onde passará o trecho 2 da rodovia, em um carro da OAS, junto com um funcionário da construtora e o senador
Salazar, do MAS, partido de Morales.
Salazar é um histórico aliado do presidente no movimento cocaleiro e mora em um casebre azul no vilarejo de Aroma, bem ao lado de onde vai passar a rodovia. Foi necessário cerca de nove horas para percorrer o trajeto, ida e volta, passando por quatro rios dentro do Tipnis.
Sabendo da visita do Valor à região, o senador mobilizou os moradores a preparar recepções para a reportagem, que esteve nas vilas de Isinuta, Villa Bolívar, Aroma, Icoya e Ichoa. Em todas essas escalas, a cena se repetia: uma comissão de líderes comunitários abria a porta do carro; mulheres jogavam papel picado branco na cabeça do repórter, em sinal de "boas-vindas"; moradores, posicionados nas duas bordas da estrada, seguravam cartazes e gritavam palavras de ordem pedindo a construção da "carretera".
Salazar descia do carro e anunciava que "a imprensa internacional" finalmente lhes daria ouvidos, já que a mídia local só publicava notícias contra o governo. Em
Icoya, dezenas de crianças em uniformes escolares cercaram o jornalista gritando "Queremos carretera! Queremos carretera! Queremos carretera!".
Apesar de as manifestações terem sido organizadas pelo senador, pareceu que o desejo e a necessidade desses moradores de que a rodovia seja construída são autênticos. Durante a passagem da comitiva, agricultores pediam para ser fotografados ao lado de cestos com bananas, mandiocas, vagens e outros produtos agrícolas.
Eles tentavam mostrar, com isso, que a estrada não beneficiará somente o transporte da folha de coca, que tem parte de sua produção desviada para a fabricação de cocaína, como alegam as entidades indígenas e os opositores da obra. Estima-se que cerca de 60% da cocaína boliviana tenha como destino o Brasil. Em outubro, a polícia desmantelou um dos maiores laboratórios de cocaína já encontrados na Bolívia dentro do Tipnis, o que alimentou a suspeita de de que a obra ajudaria o tráfico.
"Essa estrada não serve ao narcotráfico, mas para que nossos irmãos tenham uma vida melhor", disse ao Valor
Leonilda Zurita, ativista cocaleira e líder do MAS em Cochabamba. "Talvez esses narcotraficantes tenham apoiado a marcha indígena, porque eles atuam em território indígena. A estrada aumentaria o controle [sobre o narcotráfico]."
Em Villa Bolívar, um agricultor puxa o repórter pelo braço até o seu laranjal e mostra as frutas apodrecendo no pé. "Olha só como estão essas laranjas. Sem a estrada, não tenho como vender a minha produção", diz ele, repetindo um argumento ouvido pela reportagem durante todo o trajeto.
Outra queixa é que a precária estrada de terra que hoje atravessa o parque dificulta o acesso dos moradores aos serviços de saúde e educação. As crianças que moram em áreas mais afastadas são obrigadas a ir à escola na caçamba de velhos caminhões Mercedes que, segundo o senador
Salazar, foram usados pela Alemanha durante a segunda Guerra Mundial (1939-1945). "Quando chove, os rios transbordam e nós não podemos passar", diz uma menina de Icoya, entre as dezenas de crianças que cercam o repórter. "Eu quero uma estrada para ir conhecer o Brasil", brinca outra criança.
Segundo o senador
Salazar e a cocaleira
Zenilda, a rivalidade entre Morales e os empresários de Santa Cruz também contamina o debate em torno da estrada. Sem uma ligação direta, todo o comércio entre Beni e Cochabamba tem que passar por Santa Cruz. Beni é hoje o principal centro de produção pecuária da Bolívia, com 3 milhões de cabeças, segundo dados do governo. "As oligarquias de Santa Cruz compram gado de Beni a preço de banana, ficam com os animais por dois meses e revendem com lucro para Cochabamba", afirma
Salazar.
Empresários de Santa Cruz ouvidos pelo Valor rechaçam a afirmação de que a estrada prejudicaria seus interesses. Mas eles estão mais alinhados à posição dos indígenas no conflito. "A Bolívia precisa desenvolver uma estrutura rodoviária, que hoje é muito insuficiente. Mas o traçado da estrada que une Beni a Cochabamba podia ter sido outro, que não cruze o parque", diz
Luis Barbery, presidente da Câmara de Indústria, Comércio, Serviços e Turismo de Santa Cruz (Cainco). "Os parques nacionais foram criados há muitos anos, e nós temos a responsabilidade de preservá-los, para que se cumpra o motivo para o qual estão sendo preservados, que é oxigenar o mundo."
Apoiados por indígenas do sul do parque, que também pedem a estrada, os cocaleiros preparam um contra-ataque para reverter a lei assinada por
Morales. Nos últimos dias, realizaram vigílias em Cochabamba e falam em também realizar uma marcha a La Paz.
Durante a incursão pelo
Tipnis com a reportagem do Valor, o senador
Salazar bateu várias vezes no ombro do funcionário da OAS, que dirigia a SUV: "Fique tranquilo, companheiro. Essa estrada vai sair!".
As obras nos trechos 1 e 3 seguem conforme o previsto.
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"Carretera" deixa Bolívia em pé de guerra - Instituto Humanitas Unisinos - IHU