18 Outubro 2011
Entre apologia e difamação. Na Internet, a sua morte provoca discussões acaloradas. Surgem as características ambivalentes do modelo de empresa que Steve Jobs moldou na sua vida. A comunidade global da Apple foi o valor adjunto que determinou o sucesso dos seus produtos. Mas o futuro está cheio de incógnitas.
A reportagem é de Benedetto Vecchi, publicada no jornal Il Manifesto, 14-10-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Steve Jobs teve a estatura de Martin Luther King e de Gandhi. É só uma onda das precipitadas declarações depois da sua morte, que testemunha uma julgamento difundido: Jobs empresário iluminado, progressista. Um erro que foi comentado ironicamente na rede e que, fora da tela, levou, com um jeito totalmente provincial, a seção romana do partido de Nichi Vendola a fixar manifestos enlutados na capital [italiana]. O que chamava a atenção no manifesto não era, porém, o tributo a Jobs, mas sim o fato de que o nome do partido – Esquerda, Ecologia e Liberdade – estava inscrito dentro da maçã mordida da Apple, testemunhando que o espírito da sociedade de Cupertino havia sido assumido.
As reações de Vendola, que convidou a olhar mais criticamente para a realidade e não se deixar dominar pela emoção, ampliaram o episódio na rede, que foi sarcasticamente comentado nas redes sociais e por muitos ativistas midiáticos. O episódio, no entanto, evidencia como o julgamento sobre a obra de Steve Jobs é marcado por hipérboles como revolução, liberdade. A história da Apple é significativa não pelos julgamentos dados a ela pelos seus apologistas, mas sim porque expressa um modelo de empresa sustentada sobre alguns pilares: downsizing, valorização da marca, marketing agressivo e uso dos consumidores em fontes de inovação do produto.
O primeiro que deixou de lado o silêncio circunstancial foi Richard Stallman, que, indiferente ao coro de elogios pela sua atividade de empresário, usou palavras duríssimas contra Steve Jobs, comparando-o a um demônio que queria transformar o computador e a rede em um instrumento e em um lugar antitético à liberdade de expressão e à livre circulação das informações. Palavras duríssimas que não concedem nada àquela piedade que sempre acompanha uma morte.
As palavras de Stallman, no entanto, não podem ser estigmatizadas como uma queda de estilo, porque fazem surgir um modelo de empresa que seria muito fácil liquidar como uma tecnoutopia simplista. Por trás das palavras afiadas de Stallman, está a convicção de que a Apple, e outras empresas como Google, Facebook e Microsoft, são um obstáculo ao livre desenvolvimento das forças produtivas em um setor – a informática – que se tornou fator decisivo na definição das relações de poder e sociais na realidade contemporânea.
Certamente, não é uma novidade que o inspirador do movimento do software livre sempre considerou a Apple como uma empresa nos antípodas de uma visão libertária do computador e da rede. Os computadores, em primeiro lugar, e o iPod, iPhone e os recentes iPads da Apple foram liquidados como os produtos filhos de uma visão medieval e luciferina da relação homem-máquina, independentemente do fato de serem fáceis de usar. Para Stallman, de fato, a sua simplicidade é pouca coisa com relação ao fato de que não se pode acessar o software que os faz funcionar. Ou seja, são aqueles sistemas fechados contra os quais Stallman mais de uma vez convocou a boicotar.
Richard Stallman é um libertário inclinado a assumir aquele filão místico do populismo norte-americano que sempre considerou a grande empresa como um rolo compressor que escraviza homens e mulheres. No entanto, ele não é um inimigo da propriedade privada. Ou melhor, ele repetidamente enfatizou que a produção do "software livre" é plenamente compatível com ela. A declaração pela morte de Jobs faz surgir, de fato, uma concepção do capitalismo digital e um modelo de empresa antitéticas àquela expressada pelo fundador da Apple.
Stallman, na verdade, sempre defendeu que, com relação à rede, o livre mercado deve se basear em pequenas empresas que produzem produtos materiais e imateriais "abertos", isto é, modificáveis pelo usuário. Ao mesmo tempo, ele defendeu – daí a referência às muitas intervenções que apareceram no site da Free Software Foundation e aos escritos reunidos em dois volumes pela Stampa Alternativa (Software libero, pensiero libero) – que toda empresa com propensão monopolista é um atentado à liberdade de pensamento. E a Apple está entre elas.
Nesse ponto, é essencial se deter sobre o modelo de empresa moldado por Steve Jobs desde as origens, identificando os pontos de continuidade e de descontinuidade.
A Apple nasceu no interior de um contexto, o californiano, onde a contracultura dos anos 1960 perdeu o seu impulso propulsivo, conservando, porém, a capacidade de atrair muitos estudantes universitários que frequentam as faculdades científicas, graças a algumas personalidades que não escondem o seu compromisso no movimento norte-americano, como atesta o importante livro Hackers, de Steven Levy (Ed. Shake).
Desse encontro, desenvolvem-se algumas experiências que são conhecidas por Steve Jobs e Steve Woziniak. É nesse contexto que nasce a Apple, empresa que afirma não querer jamais seguir os passos da IBM, líder indiscutível do setor da informática até o início dos anos 1980. É conhecido o vídeo promocional do primeiro Macintosh, que mostra uma mulher que esbraveja contra o "big brother" IBM. Os dois fundadores querem uma empresa ágil, com pouca burocracia interna e hierarquias tão tênues quanto informais.
A atenção é dada à qualidade dos produtos, ao seu design e à facilidade de uso, visando a produtos digitais já desenvolvidas e muitas vezes de domínio público, como o software para a gestão de interfaces gráficas desenvolvido pela Xerox Parc de Palo Alto. Portanto, é um modelo que permite que Apple cresça e se torne a expressão de um espírito empresarial novo, inovador em sentido schumpeteriano, porém alternativa ao da grande empresa.
Mas são precisamente essas características – qualidade dos produtos, capacidade inovadora – que foram criticados a Jobs, quando ele foi defenestrado e posto às margens. A Apple se tornou assim uma empresa como tantas outras, chegando, porém, à beira da falência. O retorno de Steve Jobs foi saudado como um retorno às origens.
Lá fora, contudo, está a rede, e a Microsoft se tornou a big one que vê se perfilar no horizonte uma tempestade que será chamada de Web 2.0. Steve Jobs está consciente de que a Apple perdeu espaço, brilho e capacidade de inovação. Deve realizar um verdadeiro "detournement", tentando assim antecipar o futuro próximo. O ponto de partida é a progressiva conexão de homens e mulheres com a rede. O que falta são os instrumentos dessa conectividade pervasiva. Daí o iPod para ouvir música baixada da rede, atualizando aquele "walkman" que tinha feito a fortuna da Sony no início dos anos 1980.
E, como Steve Jobs se converteu inesperadamente ao sagrado respeito pelo copyright, ele põe de pé o iTunes, onde a música baixada é paga, garantindo à indústria fonográfica o pagamento dos direitos autorais. Essa é a primeira descontinuidade que ele introduz na Apple, que deve se tornar a primeira empresa de uma "era pós-PC", em que PC significa computador pessoal.
Em um artigo de uma das últimas edições da revista Economist, é analisado aquele que será o cenário do futuro, onde os computadores terão um papel cada vez menos relevantes a partir da ultrapassagem nas vendas dos smartphones sobre a dos computadores.
O iPhone desejado por Jobs vai nessa direção. E as vendas e os lucros lhe dão razão. Mas quando chegarem concorrentes agressivos, uma nova intuição: um instrumento que tem todas as características do PC, mas ultraplano, simples de usar – a interface touch screené novamente enobrecida depois de haver sido jogada às urtigas três décadas antes – e potencialmente capaz de garantir portabilidade e conexão contínua à rede. O iPad é o evento tecnológico de 2010 que leva a Apple à elite do capitalismo contemporâneo.
A outra descontinuidade introduzida por Steve Jobs diz respeito à produção dos seus produtos e à relação entre empresa e consumidores. É uma descontinuidade que tem implicações muito mais profundas do que o iPhone e o iPad. Em primeiro lugar, o downsizing torna-se a regra. Os operários e as operárias de muitas fábricas do Sudeste Asiático, começando pela chinesa Foxconn, sabem de alguma coisa a respeito, onde os suicídios dos operários revelaram condições de trabalho escravo. Grande parte do software usado é "terceirizado", às vezes entre o software "open source" ou transferindo a sua produção para sweatshops espalhados pelo Norte e Sul do planeta. Mais inescrupulosa, ao contrário, é a relação entre empresa e consumidores. É aqui que entra em campo o carisma de Jobs.
Todas as suas aparições lembravam os discursos dos pregadores norte-americanos das Igrejas Reformadas, com Jobs que fala do futuro, e o público que comenta em voz alta, aplaude, ri. A pequena comunidade de fãs da Apple se torna global, e o logotipo da maçã mordida é sinônimo de um estilo de vida baseado na convivialidade, na confiança no progresso tecnológico, na tolerância e em um controlado anticonformismo. Essa é a força comunicativa da maçã mordida, que apresenta uma cooperação social plenamente funcional à missão empresarial.
Steve Jobs foi o artífice dessa produção de sentido, dando forma a um modelo de empresa eficaz. Com um limite, no entanto. No mundo "pós-PC", os conteúdos são essenciais, porque agora já há produtos semelhantes ao iPad, competitivos no preço e de qualidade igual, se não superior, ao tablet da Apple. O futuro da Apple, portanto, é incerto. A menos que, nos vários projetos elaborados antes da sua morte, haja uma forma de explorar a inteligência coletiva da "comunidade global" dos adoradores da marca Apple.
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Steve Jobs: continudades e descontinuidades - Instituto Humanitas Unisinos - IHU