À humanidade, não faltam seres lúcidos, mas sim dirigentes capazes de se impor aos interesses aos quais obedecem e mudar o mundo. Uma amostra dessa lucidez planetária se concentrou essa semana em Bruxelas na marcha que os indignados empreenderam desde vários pontos da Europa para integrar a
Ágora Bruxelas Internacional, um fórum multitemático que precedeu a grande marcha mundial “unidos por uma mudança global” convocada para este sábado. Ao longo de sete dias e apesar da brutalidade policial, a Ágora passou em revista os principais problemas do planeta mediante assembleias populares e oficinas realizadas nas ruas, em praças públicas ou na
Hogeschool-Universiteit Brussel (HUB), onde as autoridades a colocaram.
A reportagem é de
Eduardo Febro e publicada por
Carta Maior, 15-10-2011.
Os indignados realizaram pelo menos 30 oficinas e com isso reatualizaram pacificamente uma ideia de
Hakim Bey, o teórico das
Zonas Autônomas Temporárias (TAF, na sigla em inglês). Esse conceito consiste em Ocupar temporalmente um lugar controlado pelos “aparatos estatais”. A ideia de
Bey foi posta em prática com extrema violência pelos
Black Blocs, esses grupos de choque que, durante as três manifestações contra o G-7, a OTAN, o FMI e o G-20, se converteram em uma vanguarda violenta que destruiu agências bancárias, automóveis de luxo e protagonizaram enfrentamentos direitos com as forças da ordem. Os indignados ocupam o espaço público, mas não para romper e sim para refletir, debater e escutar em um exercício de intercâmbio horizontal cujo melhor exemplo é o que está ocorrendo na capital belga.
Desde o sábado passado, não há um dia sem que ocorra uma discussão cidadã. No dia 8 de outubro pela manhã debateu-se o problema da “moradia dos desempregados e daqueles que recebem subsídios sociais”. Essa prática é comum na Europa de hoje onde os Estados recorrem a todas as argúcias possíveis para suprimir os benefícios sociais e retirar quem está sem trabalho das estatísticas de desemprego. À tarde, foi organizado uma oficina apaixonante em torno do tema: “Grécia, a vontade dos banqueiros se impõe à democracia”. Nem é preciso enunciá-lo: é o que temos visto ao vivo há vários meses.
No dia seguinte, a primeira oficina tratou das “lutas contra a privatização da água na Europa”. A segunda, organizada diante do banco
BNP Paribas, abordou o tema da desigualdade de gênero visto desde um novo ângulo: “as mulheres da Europa são as verdadeiras credoras da dívida pública”. No dia 11, as atividades iniciaram com uma reflexão coletiva sobre “a economia e o sentido da vida” e continuou com uma oficina realizada na Bolsa de Bruxelas em torno da ideia de uma “mudança de paradigma econômica, reflexão sobre uma economia cidadã”. À tarde, debateu-se sobre o McDonald’s e o “lobby de empresas, agricultura e alimentação”. Depois veio o tema da dívida, em especial sobre sua origem.
Na quarta-feira ocorreu a Jornada Internacional contra o capitalismo. A jornada teve como tema exclusivo as questões econômicas com uma brilhante oficina organizada na praça Sainte-Catherine, cujo enunciado diz tudo: “Alternativa ao G20. Eles são 20, nós somos bilhões”. Houve outra oficina sobre “A Revolução Humana” e uma oficina que resultou em uma pérola rara acerca de um tema irônico: “indignismo ou andaismo”. A expressão “andaísmo” é um neologismo total cuja origem são dois cartazes que apareceram na Tunísia e no Egito durante as revoluções árabes: “Mubarak, Degagé”, dizia um em francês, o que quer dizer “Mubarak, ande, vá embora”. À tarde se seguiram discussões animadas e por demais realistas: “as medidas de austeridade europeias e a influencia dos lobbys financeiros” e “a dívida contra a democracia”. Esta última oficina trouxe más recordações aos latino-americanos descendentes de pais que tiveram que se exilar quando esse princípio decapitou a América do Sul e colocou no poder os melhores operadores da dívida, as ditaduras.
Os dias seguintes foram igualmente frutíferos, sobretudo com a oficina que girou em torno da pergunta: “mudar de sistema, rumo à objeção de crescimento”. Já é mais do que sabido que a variável do crescimento como único horizonte da humanidade destrói tudo o que toca, começando pelo meio ambiente. As oficinas posteriores tiveram todas o mesmo nível, desde a que defendeu uma “carta mundial dos migrantes, liberdade de circulação e instalação em todas as partes e para todos”, a que propôs “como a arte pode servir uma revolução sem pedir-lhe que esteja a serviço de uma ideologia, de um consenso ou de uma estética coletivista?”,até a que fechou a semana de discussões em torno do tema da “desobediência civil”.
Isso não é mais do que uma mostra do fluxo de reflexões, intercâmbios e iniciativas organizadas sem a existência de uma estrutura de comando, sem que alguém mandasse realmente. Tudo funcionou segundo uma espécie de caos coerente e feliz, horizontal e participativo, inclusive quando surgiram situações tensas com a polícia como no dia em que um grupo de indignados se concentrou em frente à porta do banco
Dexia, a primeira instituição europeia a quebrar, vítima de seus excessos liberais e da crise da dívida, o que é a mesma coisa. A Europa parece ter medo de seus próprios filhos. Os revolucionários já não vêm do mítico Sul, mas nasceram e estão sem trabalho no coração do mundo ocidental.
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Ágora Bruxelas Internacional debate na rua problemas do planeta - Instituto Humanitas Unisinos - IHU