A "hospitalidade eucarística" é abordada por
Paolo Ricca. teólogo italiano, em artigo publicado no revista semanal italiana
Riforma, 16-09-2011.
Riforma é o semanário das Igrejas Evangélicas Batistas, Metodistas e Valdenses da Itália. O teólogo responde à demanda feita pelo movimento ecumênico de Turim, denominado "
Instrumentos da Paz".
A tradução é de
Benno Dischinger.
Eis o artigo.
Pertenço à Igreja valdense de
Turim e há alguns anos me ocupo com o ecumenismo, sobre o qual, em âmbito valdense, as opiniões são diversas; há quem é contrário, quem é indiferente, quem é cético, quem gostaria de interromper o diálogo considerado inútil, enquanto outros, afortunadamente compartilham objetivos e razões. No quadro do trabalho ecumênico que se desenvolve em Turim, eu gostaria de falar de uma iniciativa levada em frente pelo grupo ecumênico “Instrumentos de paz”, nascido em 1966 e composto por católicos, evangélicos batistas, valdenses, adventistas e esporadicamente por ortodoxos. A iniciativa consiste num caminho empreendido pelo compartilhamento da eucaristia ou ceia do Senhor.
Para fazer este objetivo chegar aos pastores das várias igrejas evangélicas, a alguns padres e correspondentes paróquias, bem como à comissão diocesana e à evangélica para o ecumenismo, foram enviadas cartas solicitando expressamente que com encontros mensais itinerantes, se possa compartilhar também em igrejas católicas a eucaristia, precisamente como já é possível compartilhar a ceia do Senhor nas igrejas evangélicas. A motivação dada é esta: “Gostaríamos, com este gesto, de responder ao mandamento do Senhor, ao seu convite, ao seu acolher todos. Quereríamos, em suma, ser mulheres e homens do dom e do compartilhamento”.
A iniciativa terá início em outubro. Agora está claro que permanecerão não resolvidas as questões relativas aos diversos significados que católicos e evangélicos dão à Ceia do Senhor. E então a pergunta é: é correto compartilhar um gesto tão importante na divisão das confissões de fé? O que se quer fazer é, por ora, um pequeno passo: o que poderemos ou deveremos fazer para que o pequeno passo possa levar a uma mudança bem mais importante? Como ninguém querer dar um passo para trás no referente à própria teologia, talvez fosse melhor realizar um gesto diferente, para manifestar a comunhão ecumênica já existente. Se sim, qual?
Eugenia Ferreri – Turim
Não é por acaso que a iniciativa do Grupo ecumênico turinense “Instrumentos de paz” de promover, como cristãos de diversas confissões, uma ação comum para chegar a compartilhar a eucaristia (como costumeiramente a chamam os católicos) ou Santa Ceia ou Ceia do Senhor (como costumeiramente a chamam os evangélicos) em cultos públicos, celebrados em paróquias católicas e comunidades evangélicas da cidade – não é por acaso, dizia, que esta iniciativa nasceu neste ano de 2011.
Por que não por acaso? Porque o texto bíblico proposto neste ano às comunidades cristãs de todo o mundo por ocasião da
Semana de oração pela unidade dos cristãos, realizada, como a cada ano, de 18 a 25 de janeiro passado, era
Atos 2,42, onde se diz que os primeiros cristãos “eram perseverantes na escuta do ensinamento dos apóstolos, na comunhão fraterna, na fração do pão e nas orações”.
Partir o pão juntos era, pois, um dos distintivos da primeiríssima comunidade cristã – a que nasceu em Jerusalém no dia de Pentecostes. Como sabemos, esta expressão indica duas coisas distintas, mas na origem estreitamente ligadas entre si.
A primeira é a refeição comum dos cristãos, consumida juntos e chamado ágape; a segunda é a ceia do Senhor, que habitualmente ocorre no quadro do ágape, como sua conclusão e coroamento. Compartilhando o pão e o vinho da ceia do Senhor, os primeiros cristãos manifestavam sua comum pertença a Cristo e sua recíproca fraternidade. Reconhecerem-se como cristãos implicava, entre outras coisas, partirem juntos o pão da Ceia.
Agora, em janeiro deste ano, tocamos com a mão a grande contradição na qual nos encontramos: mesmo pertencendo a igrejas diversas, nos reconhecemos todos como cristãos, mas, não obstante isso, não partimos juntos o pão da Ceia. Este verdadeiro e próprio “apartheid eucarístico” era compreensível quando não nos reconhecíamos como cristãos, mas cada um considerava o outro como herege. Hoje não é mais assim. A própria Igreja católica, que, como sabemos, a seu tempo excomungou a Reforma, os reformadores e seus seguidores, com o
Concílio Vaticano II abandonou este juízo, declarando que protestantes e ortodoxos “justificados no batismo da fé, são incorporados a Cristo, e por isso são, com razão, assinalados com o nome de cristãos, e pelos filhos da igreja católica são justamente reconhecidos como irmãos no Senhor” (Concílio Vaticano II, Decreto sobre o ecumenismo, n. 3).
Ora, de duas uma: ou isto não é verdade, isto é, não é verdade que sejamos “irmãos”, embora “separados”, não obstante “assinalados com o nome de cristãos”, se isto, dizia, não é verdade e consequentemente não nos reconhecemos reciprocamente como cristãos, então, sim, é lógico que não partamos juntos o pão da Ceia. Se, ao invés, é verdade que somos “irmãos”, embora “separados”, reconhecendo-nos, pois, reciprocamente como cristãos, mesmo nas diversas pertenças confessionais, então não só podemos, mas devemos partir conjuntamente o pão, porque isto faziam os cristãos quando se encontravam para escutar juntos a Palavra de Deus, para praticar a comunhão fraterna e para orar. Quem faz conjuntamente estas coisas, pode e deve também partir conjuntamente o pão da Ceia.
É esta a proposta do Grupo ecumênico “Instrumentos de paz”. Nossa leitora nos comunica também a motivação: “Queremos com este gesto responder ao mandamento do Senhor, ao seu convite, ao seu acolher todos. Querer-se-ia, em suma, ser mulheres e homens do dom e do compartilhamento”. Esta motivação é mais que suficiente. Jesus celebrou a Ceia até mesmo com Judas, não excluiu nem sequer a ele. Quem tem a coragem e a autoridade de excluir quem quer que seja? O pão e o vinho da Ceia são o dom que Jesus nos concedeu, dando-se a si mesmo: quem tem a coragem e a autoridade de retirar este dom do senhor da mão de um irmão reconhecido como cristão? A proposta, portanto, é boa, evangélica, cristã; é um ato de obediência ao convite de Jesus e de coerência ecumênica, com o qual, por certo – não seria honesto silenciá-lo – se transgride uma lei eclesiástica, mas isto é inevitável caso se queria viver verdadeiramente, neste campo, a liberdade cristã. A lei jamais consegue conter a graça, que transborda de todo lado; por isso Jesus tantas vezes transgrediu a lei do sábado.
Vai por si que, como justamente observa nossa leitura, “permanecerão não resolvidas as questões relativas aos diversos significados que católicos e evangélicos dão à Ceia do Senhor”. Por exemplo, os evangélicos não compartilham a doutrina da transubstanciação, e os católicos (caso sigam a doutrina oficial de sua Igreja) pensam que somente um sacerdote ordenado por um bispo (católico ou ortodoxo) tenha a assim dita
potestas consecrandi, isto é, o poder de “consagrar o pão e o vinho de modo a transformá-lo no corpo e sangue de Cristo. Mas, se as diferenças de doutrina entre católicos e evangélicos sobre a Ceia permanecem aquelas anteriores, que sentido tem que eles a celebrem juntos, dado que a compreendem de modo diverso? Celebram verdadeiramente a mesma Ceia, ou não celebram talvez duas Ceias diversas, embora chegando juntos à mesma mesa e compartilhando o mesmo pão e o mesmo vinho?
Mas, se devesse ser assim (duas Ceias diversas celebradas conjuntamente por católicos e evangélicos em torno à mesma mesa), a comunhão realizada em torno àquela mesa seria real ou somente aparente? São estes os interrogativos – muito sérios – que nossa leitora levanta e às quais respondo assim: o que conta na ceia do Senhor são suas palavras (“Tomai, este é o meu corpo”; “Este é o meu sangue, o sangue da aliança...” e os seus dons – o pão e o vinho: Marcos 14, 22-25). Nem o próprio Jesus, que por primeiro celebrou a Ceia, nem o apóstolo Paulo, que narra sua “instituição” (Coríntios 11, 23-25), sentiram a necessidade de explicar, isto é, de interpretar as palavras da Ceia.
Isto, no mínimo, significa duas coisas: a primeira é que a interpretação é livre, isto é, são possíveis diversas interpretações, nenhuma das quais pode, no entanto, pretender ser canônica, porque na Escritura, que é o cânone (isto é, a regra de nossa fé cristã), as palavras de Jesus são aduzidas, mas não interpretadas. A segunda é que, embora a interpretação seja necessária (no sentido que cada um deve saber o que está fazendo quando participa da Ceia), todavia, esta interpretação não é constitutiva da própria Ceia, a qual é a Ceia do Senhor, independentemente das interpretações que nós lhe damos. O que une aqueles que participam da Ceia do Senhor são o pão, o vinho, as palavras de Jesus e a ação invisível do Espírito, e não as nossas explicações das palavras de Jesus e as nossas interpretações dos seus dons.
Embora, quando celebramos a Ceia entre cristãos de diversas confissões, estivéssemos de acordo e déssemos a mesma explicação daquilo que na Ceia acontece (esta unanimidade, entre outros aspectos, não existe sequer quando a celebram cristãos da mesma Igreja; também ali, secretamente, as opiniões divergem!), não seria aquele acordo o vínculo real de nossa comunhão, e sim o seriam as palavras, o pão, o vinho de Jesus e o testemunho interior do Espírito Santo. Eis porque tem sentido que cristãos de diversas igrejas celebrem juntos a Ceia do Senhor, porque é aí que Jesus os convoca, e aí eles se reúnem, aceitando, com alegria e gratidão (“eucaristia” significa em grego “reconhecimento”, “agradecimento”), o seu convite para receberem juntos as suas palavras e os seus dons, independentemente das diversas interpretações que eles possam dar da Ceia. O que nos une a Jesus quando celebramos a Ceia não é esta ou aquela doutrina, mas a fé.
Na linguagem ecumênica, este tipo de celebração se chama “hospitalidade eucarística”: somos todos hóspedes (indignos) do Senhor em sua mesa, e ali, recebendo o pão e o vinho com sua palavra, celebramos conjuntamente a “comunhão com o corpo e o sangue de Cristo”, como diz a Escritura (1 Co 10, 16). Como ocorra esta comunhão a Escritura não o diz, e não temos necessidade de dizê-lo nós. A Escritura diz somente que ela acontece, entende-se na fé, e isto nos deve bastar.
As doutrinas entre si diversas permanecem, e podem continuar a confrontar-se, mas o convite de Jesus deve ter o primado. Nem se pode pensar em cerimônias substitutivas, às quais Jesus não nos convida: ele nos convida à sua mesa, que é única, e não a outras. A iniciativa de ”Instrumentos de paz”, como eu já disse, é boa precisamente porque afirma o primado do dom de Deus acima de nossas interpretações, e este dom é único e o mesmo para todos. Jesus não divide e sequer aceita as nossas divisões, pelo menos à sua mesa. A única condição é a fé nele e a clareza nas relações entre nós. As nossas diferenças na interpretação da Ceia não devem ser caladas ou espezinhadas – aqui se requer total transparência -, mas também não devem ser dogmatizadas a ponto de se tornarem mais importantes do que o convite de Jesus. O Senhor é Ele, e não nós.
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Jesus convida à sua mesa os cristãos divididos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU