23 Setembro 2011
Se a parafernália cada vez mais rara, escassa e inacessível que é necessária para sobreviver e levar uma vida aceitável se tornar objeto de um confronto de morte entre aqueles que estão totalmente equipados com ela e os indigentes abandonados a si mesmos, a principal vítima da crescente desigualdade será a democracia.
Publicamos aqui um trecho do novo prefácio do sociólogo polonês Zygmunt Bauman à nova edição de Modernidade líquida, publicada pela editora italiana Laterza. O artigo foi publicado no jornal La Repubblica, 21-09-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Na época do Iluminismo, de Bacon, Descartes ou Hegel, em nenhum lugar da terra o nível de vida era mais do que o dobro com relação ao das áreas mais pobres. Hoje, o país mais rico, o Qatar, se orgulha de uma renda per capita 428 vezes maior do que a do país mais pobre, o Zimbábue. E se trata, não nos esqueçamos, de comparações entre valores médios, que lembram a proverbial estatística dos dois pássaros. A tenaz persistência da pobreza em um planeta conturbado pelo fundamentalismo do crescimento econômico é mais do que suficiente para obrigar as pessoas razoáveis a fazerem uma pausa de reflexão sobre as vítimas colaterais do "andamento das operações".
O abismo sempre mais profundo que separa quem é pobre e sem perspectivas do mundo opulento, otimista e barulhento – um abismo hoje só superável pelos alpinistas mais enérgicos e sem escrúpulos – é uma outra razão evidente de grande preocupação. Como advertem os autores do artigo citado, se a parafernália cada vez mais rara, escassa e inacessível que é necessária para sobreviver e levar uma vida aceitável se tornar objeto de um confronto de morte entre aqueles que estão totalmente equipados com ela e os indigentes abandonados a si mesmos, a principal vítima da crescente desigualdade será a democracia.
Mas há uma outra razão de alerta, não menos grave. Os crescentes níveis de opulência se traduzem em um crescente nível de consumo. Além disso, enriquecer é um valor tão desejado só enquanto ajuda a melhorar a qualidade de vida, e "melhorar a vida" (ou, pelo menos, torná-la um pouco menos insatisfatória) significa, no jargão dos adeptos da igreja do crescimento econômico, já difundida por todo o planeta, "consumir mais".
Os seguidores desse credo fundamentalista estão convencidos de que todos os caminhos da redenção, da salvação, da graça divina e secular, e da felicidade (tanto imediata quanto eterna) passam pelas lojas. E, quanto mais se enchem as prateleiras das lojas que esperam ser esvaziados pelos buscadores de felicidade, mais se esvazia a Terra, o único recipiente/produtor dos recursos (matérias-primas e energia) que são necessários para encher novamente as lojas: uma verdade confirmada e reiterada cotidianamente pela ciência, mas (segundo um estudo recente) precisamente negada em 53% dos espaços dedicados à questão da "sustentabilidade" na imprensa norte-americana e ignorada ou calada nos outros casos.
O que é ignorado, nesse silêncio ensurdecedor que obscurece e desresponsabiliza, é o aviso lançado há dois anos por Tim Jackson no livro Prosperidade sem crescimento: até o final deste século, "os nossos filhos e netos deverão sobreviver em um ambiente de clima hostil e pobre de recursos, entre destruições dos habitats, dizimação das espécies, escassez de alimentos, migrações em massa e guerras inevitáveis". O nosso consumo, alimentado pela dívida e incansavelmente instigado/assistido/amplificado pelas autoridades constituídas, "é insustentável do ponto de vista ecológico, problemático do ponto de vista social e instável do ponto de vista econômico".
Uma outra observação assustadora de Jackson é que, em um ambiente social como o nosso, em que um quinto da população mundial desfruta 74% da renda anual de todo o planeta, enquanto o quinto mais pobre do mundo deve se contentar com 2%, a tendência generalizada para justificar as devastações provocadas pelas políticas de desenvolvimento econômico, remetendo-se à nobre exigência de superar a pobreza, nada mais é do que um ato de hipocrisia e uma ofensa à razão: e essa observação também foi quase universalmente ignorada pelos canais de informação mais populares (e eficazes), ou, na melhor das hipóteses, foi relegada às páginas e faixas horárias notoriamente dedicadas a hospedar e a dar espaço a vozes acostumadas e resignadas a pregar no deserto.
Ainda em 1990, cerca de 20 anos antes do livro de Jackson, em Governar os bens coletivos, Elinor Ostrom havia advertido que a convicção propagandeada incansavelmente, segundo a qual as pessoas são naturalmente levadas a buscar lucros de curto prazo e a agir com base no princípio "cada um por si e Deus por todos" não resiste à prova dos fatos. A conclusão do estudo de Ostrom sobre as empresas locais que operam em pequena escala é muito diferente: no âmbito de uma comunidade, as pessoas tendem a tomar decisões que não visam apenas ao lucro.
É hora de se perguntar: essas formas de "vida em comunidade" que a maioria de nós conhece unicamente através das pesquisas etnográficas sobre os poucos nichos que sobraram hoje de épocas passadas, "superadas e atrasadas", são verdadeiramente algo irrevogavelmente concluído? Ou, talvez, está por emergir a verdade de uma visão alternativa da história (e, com ela, de uma concepção alternativa do "progresso"): isto é, que a corrida à felicidade é só um episódio, e não um salto à frente irreversível e irrevogável, e foi/é/vai se revelar, no plano prático, um simples desvio intrínseca e inevitavelmente temporário?
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Os fundamentalistas da economia. Artigo de Zygmunt Bauman - Instituto Humanitas Unisinos - IHU