14 Setembro 2011
"Al Qaeda provocou, sem querer, o furor militar e o esgotamento dos Estados Unidos. Quem sabe estejamos no princípio do fim do século americano. Começou com a Primeira Guerra Mundial. Ao mesmo tempo, uma potência como a China foi se desenvolvendo com uma pujança impressionante. O mundo vai se tornando cada vez mais multipolar". O comentário é do jornalista Ignacio Ramonet, diretor do Le Monde Diplomatique e doutor em Semiologia e História da Cultura em entrevista a Martín Granovsky do Página/12, 11-09-2011. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
Já se passam dez anos desde 11 de setembro de 2001.
No mesmo mês, setembro, três anos da quebra do Lehman Brothers
Essa já é uma definição.
Claro.
Essa entrevista não acontece no 11 de setembro de 2002, um ano depois do atentado. Portanto, o mundo em que vivemos em 2011 já registrou mais mudanças que a irrupção da Al Qaeda com o seu ataque em território americano.
Nesses dez anos mudou os Estados Unidos. Pouco depois do atentado, a administração Bush utilizou o ataque das Torres gêmeas como se estivésse esperando esse fato para levar a cabo sua política neo-imperial. Utilizar a força do instrumento militar para impor sua vontade política, em particular no oriente médio.
Falar do atentado contra as Torres e dizer "como se Bush estivésse esperando..." não significa dar valor às teorias conspirativas como um auto-atentado?
Essas teorias surgiram na França. Mas não acredito nelas. Mas é um fato que a Al Qaeda lhe fez um favor. Mas com um matiz: aparentemente lhe fez um favor. Bush saiu com o seu aparato militar atacando o Afeganistão, atacando o Iraque, etc. O que aconteceu? Revelou-se que o instrumento militar não era suficiente. É como o que aconteceu com Napoleão. As guerras napoleônicas buscavam impor, por força, a liberdade. E Napoleão foi derrotado. Bush impôs suas guerras napoleônicas para impor a democracia pela violência. Aconteceu o mesmo. Parte da resistência a Napoleão tinha um grito: "Viva as cadeias!". Também: "Viva a inquisição!". Os islâmicos radicais reivindicam a lei sagrada e a Jihad. Ao cabo de 10 anos podemos dizer que os Estados Unidos, esgotados, não puderam vencer de maneira indiscutível. Iraque é meia vitória. Afeganistão é uma semi-derrota e a Líbia é uma intervenção bastante prudente. O resultado é o esgotamento. As guerras custaram muito. Ainda que tenham levado o petróleo do Iraque, o que não é o caso, não paga o que gastaram.
E quando se olha o índice de desemprego em 9,1%, as guerras não criaram emprego.
Não, não criaram. Ao esgotamento de que falava se somou o endividamento colossal e também a crise do dólar. Quem sabe os Estados Unidos estejam passando pelo mesmo que Ronald Reagan impôs à União Soviética quando lhe obrigou a perseguir uma corrida armamentista que esgotou Moscou e provocou a implosão do regime. Al Qaeda provocou, sem querer, o furor militar e o esgotamento dos Estados Unidos. Quem sabe estejamos no princípio do fim do século americano. Começou com a Primeira Guerra Mundial. Ao mesmo tempo, uma potência como a China foi se desenvolvendo com uma pujaça impressionante. O mundo vai se tornando cada vez mais multipolar.
Mas Washington não continua sendo uma potência distante de qualquer outra quando se tem presente a realidade estratégico-militar?
Com a matiz que falei do esgotamento, os Estados Unidos já não tem a mesma força. De fato muitos analistas dizem que deveria deixar de gastar em armas nucleares, que ninguém irá utilizar, sobretudo quando se levanta a hipótese nuclear iraniana. Efetivamente ninguem alcançou militarmente os Estados Unidos. Mas, que uso fará os Estados Unidos de sua ferramenta militar? É preciso ter presente o caso da Líbia, onde os Estados Unidos colocaram na primeira linha a França e a Inglaterra que depois de três meses já diziam que não tinham orçamento para bancar a continuidade. Ou seja, a supremacia militar ocidental está muito limitada pela questão econômica.
Mas a China está no encalço dos Estados Unidos. Possuem bônus do tesouro norte-americano.
Nas mãos da China está o destino do dólar. Obviamente não lhe interessa que o dólar se desmanche porque perderia todas as suas reservas. Nesse sentido, dependem um do outro. Mas, ultimamente a China tem dado uma série de lições aos Estados Unidos de como é preciso administrar. A admoestação que lançou aos Estados Unidos foi de gastar muito dinheiro em gastos sociais. Muito ultraliberal.
Mais Adam Smith do que Confúcio.
Algo assim. A China tem um papel muito importante. E é como a América do Sul sabe muito bem, o grande consumidor de matérias primas, seja do agro e de minérios. É também a grande fábrica do mundo. Entretanto, o destino irresistível da grande potência do século XXI que muitos teóricos vêem é de que a China ainda não passou pela estabilização interna. É uma aparente potência estável. Ainda tem pendente o fato de que sua sociedade, o dia em que menos se pense, possa despertar. Foi o que aconteceu nas sociedades árabes e a China teve o seu aviso em 1989 com Tiananmen. Não é impossível, com 1,4 bilhões de habitantes que a China também se desintegre. Não está blindada contra essa possibilidade. Nenhuma sociedade autoritária sabe exatamente como irá reagir no dia em que seu povo lhe peça a conta. Essa mescla impossível de capitalismo ultra selvagem e de socialismo ultra autoritário é uma experiência de laboratório que, como toda experiência pode fracassar. Nessa perspectiva, as sociedades democráticas são mais flexíveis. A rigidez da China pode se romper.
A América do Sul reúne hoje características de peso mundial?
Até as revoluções árabes, a América do Sul tinha a especificidade de que era o território em que se estava levando a cabo no mundo o maior número de experiências de esquerda. Por conseguinte, era o ponto de referência para toda a esquerda internacional. Conceitos como democracia participativa, referendum, constituintes, ALBA, vontade de intervenção estatal sobre o mercado selvagem, são conceitos vigentes no debate político apenas na América do Sul. Outro ponto é que pela primeira vez a América do Sul não se viu destruída pela crise mundial. E tem autonomia frente aos Estados Unidos, o que lhe dá um tom exemplar frente à Europa que vive vulnerável à crise americana. Nesse território, além disso, está surgindo um dos gigantes de amanhã, o Brasil, integrado ao Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e Africa do Sul) e levando a cabo uma diplomacia internacional autônoma.
O que estamos vendo na Líbia e na Síria. Vários países da região entre eles a Argentina, junto com o México e o Brasil estão no G-20 que hoje é um órgão executivo da política internacional com maior eficácia que o Conselho de Segurança da ONU e sem os inconvenientes do veto. Visto a partir de fora, a América Latina está vivendo uma "Idade de Ouro’ como talvez desde a época da independência. Globalmente está pacificada, inclusive com a necrose do problema colombiano. A liberdade e a democracia regem, as eleições acontecem normalmente, os militares estão nos quartéis e ninguém suspeita de que de lá irão sair... Há elementos negativos como o narcotráfico, com a insegurança em algumas sociedades, como o atraso na organização de alguns Estados, mas em geral, os países, cada um com suas singularidades convergem e se articulam. Hoje as classes desfavorecidas na América Latina têm mais esperança que nunca porque seus governos estão levando em frente uma justa redistribuição. Pode ser pouco, mas é permanente.
Eric Hobsbawm dizia desde o começo da crise de 2008 que o capitalismo selvagem não apenas era injusto como seria inviável.
Na Europa, muitos economistas sérios, moderados, não os economistas revolucionários, falam da solução argentina da reestruturação da dívida para a Grécia. O Fundo Monetário Internacional era uma referência muito popular na América latina. Despertava hostilidade. Na Europa não era nem mencionado. Hoje desperta a mesma hostilidade que se produzia na continente sul americano.
A América do Sul vive um debate sobre a relação entre os grandes meios de comunicação, o poder e os Estados conduzidos, em geral, por governos de centro-esquerda que se mantém pelas urnas. Os grandes meios de comunicação pode determinar a política?
Na América Latina são virulentos e desejam controlar o poder. Mas, os governos com a serenidade de terem sido eleitos democraticamente podem enfrentar essa soberba. Na América Latina são os governos que tem a vontade de instaurar um maior equilíbrio entre meios privados e serviços públicos de informação e comunicação. Os proprietários de latifúndios da comunicação que até agora tinham o monopólio não aceitam algo equivalente ao que foi a Reforma agrária. Rejeitam uma reforma midiática e por isso se dão as batalhas, inclusive com má fé.
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"Al Qaeda provocou o esgotamento dos Estados Unidos" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU