"Não consigo enxergar a indústria sobrevivendo no Brasil."
"Abrir mão da indústria é quase que jogar fora a nossa história."
Dois economistas de peso, um neoclássico e um keynesiano, convidados para debater a posição do Brasil ante a crise mundial produziram as duas frases acima.
A reportagem e as entrevistas são de
Chico Santos,
Marcelo Mota e
Vera Saavedra Durão e publicadas pelo jornal
Valor, 06-09-2011.
Samuel Pessôa, da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e da consultoria Tendências, autor da polêmica primeira frase, avalia que a opção da sociedade brasileira pela busca da equidade se opõe à alternativa de crescer com mais velocidade, na medida que pressupõe abrir mão do aumento da poupança. Com baixa poupança, não há como a indústria do país competir com os chineses e asiáticos em geral, que poupam muito e têm mão de obra mais barata do que a nossa. O quadro se agrava com a maior produtividade das commodities atraindo torrentes de dólares e fazendo do real sobrevalorizado um inimigo mortal da indústria.
O desenvolvimentista
Luiz Carlos Prado, do reduto keynesiano da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), ex-conselheiro do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), autor da segunda frase, concorda com
Pessoa que em uma democracia a sociedade escolhe as opções, mas entende que o Estado "não é passivo nesse processo" e "se articula com a sociedade no sentido de ir levantando escolhas". Entre essas escolhas, "a sobrevivência da indústria é uma questão fundamental".
Prado utiliza o exemplo chinês de terceirizar para os vizinhos asiáticos a produção de bens industriais mais intensivos em mão de obra para propor que o Brasil faça o mesmo na América do Sul com países como Paraguai e Bolívia, liderando uma efetiva integração comercial.
Quando o debate chegou à inflação, mais discordância.
Prado, fiel ao pensamento keynesiano, entende que o Brasil precisa distribuir renda para criar demanda e que a alta dos preços tem origem inercial. Para Pessoa, o que existe é carência de oferta de bens.
A discussão, anterior ao corte de 0,5% na taxa de juros pelo Banco Central (BC), durou mais de duas horas e meia.
Eis as entrevistas.
Considerando a hipótese de estagnação do mundo desenvolvido, o Brasil conseguiria, voltando-se ao mercado doméstico, como a China, manter um certo padrão de crescimento razoável?
Pessôa: Eu acho que o Brasil tem capacidade de crescer. A
China continua a trajetória dela, com essa transição para o mercado de consumo interno que eles vão ter que fazer. A minha leitura é que isso significa que commodity agrícola continuará em alta e commodity mineral talvez não suba tanto.
Isso no médio prazo?
Pessôa: Cinco anos. Porque o investimento vai cair um pouquinho, mas principalmente porque em commodity mineral a resposta da oferta é maior. Nos próximos três anos, a produção de minério de ferro no Brasil vai dobrar. E não vai ser só o Brasil que vai crescer, então o preço vai cair. Mas eu acho que a gente vai continuar exportando muito minério de ferro, muita soja, muita commodity. Esse viés da economia brasileira na direção de ser um grande produtor de commodities, e uma certa regressão da indústria, acho que é estrutural, não vai mudar. Eu acho que vai cair o crescimento potencial nosso, porque uma parte dele é redução da taxa de desemprego. Provavelmente, o que o país pode crescer está mais para 3,5% do PIB ao ano do que para 4%.
Luiz Carlos Prado: Equacionada a questão inflacionária, com o
Plano Real, a questão de crescimento volta a entrar em pauta, ou seja, daqui por diante, qualquer que seja o partido que estiver no poder vai ter que manter uma taxa de crescimento razoável. O que mudou, e isso é um pouco curioso, foi a questão externa. No passado, o Brasil não tinha como reduzir o tamanho relativo da sua indústria. Ou seja, para sustentar uma taxa de crescimento, tinha que aumentar o tamanho da indústria porque tinha que atender uma demanda doméstica nesse setor crescente, e se você aumentasse via importação, rapidamente caminhava para uma crise cambial. Como a gente ganhou espaço na área externa, de certa maneira é possível sustentar uma taxa de crescimento um pouco mais elevada com algum grau de desarticulação da indústria. E aí é onde entra o principal debate da sociedade brasileira. Que tipo de composição de produção doméstica nós queremos?
Pessôa: Eu tenho uma discordância básica: eu acho que a agenda ainda não é de crescimento, se sim de igualdade, de equidade. Vai crescer o que der para crescer depois de atingir os objetivos prioritários de equidade.
O sr. não acha que esse aumento da igualdade tem levado ao crescimento?
Pessôa: Acho que não. Tem um "trade-off" entre crescer mais e ficar mais desigual e crescer menos com igualdade. Acho que a
China está optando por um crescimento com mais desigualdade. Acho muito difícil crescer rápido com igualdade. Acho que em mais dez, oito anos a agenda vai passar a ser uma agenda de crescer. Porque a gente tem esse fenômeno fantástico, maravilhoso, das classes C e D, que estão entrando na sociedade de mercado. E acho que essa classe social, a médio prazo, vai ser conservadora, vai querer menos Estado e mais crescimento econômico.
Prado: Eu só discordo em um ponto. É interessante, você pega a literatura desde a década de 60, os clássicos,
Celso Furtado... um dos grandes pontos que se colocava era que a dificuldade de crescimento do Brasil era pelo lado da demanda e isso tinha a ver com a má distribuição de renda. Sem dívida nenhuma, quando você melhora a distribuição de renda você melhora a demanda. O que ele (
Pessôa) está dizendo é o seguinte: tudo bem, melhora a demanda, mas eu não tenho poupança, então eu não tenho oferta para atender e respondo a isso via importação.
Pessôa: Exatamente. Se o mundo quiser me financiar.
Prado: E esse talvez seja o ponto, tem a ver com mecanismos de expansão dos investimentos, que é a essência do debate sobre o crescimento no Brasil. Concordamos que precisamos aumentar o investimento. O que gera o aumento do investimento, de onde ele vai vir, quem vai financiar e como, essa é a natureza da discussão. Eu suspeito que hoje, talvez você pudesse ter uma taxa de crescimento um pouco mais alta se você tivesse um câmbio um pouco diferente.
Valor: A apreciação do real é sinal de fraqueza da moeda brasileira, incapaz de defender a competitividade da produção doméstica?
Pessôa: Acho que não dá para ter tudo na vida. Eu não consigo enxergar a indústria sobrevivendo no Brasil. Eu acho que é quase impossível a sobrevivência da indústria nos moldes que ela tem no Brasil. Vou dar um exemplo: pegue a indústria automobilística. A indústria automobilística está no Brasil há quase 60 anos. Ela existe na Coreia do Sul há 30 anos. É metade do tempo. Por que é que nossa indústria é uma porcaria perto da indústria coreana? Não é que seja ruim, é uma porcaria! Eu acabei de comprar um carro coreano. É uma coisa impressionante o desnível.
Valor: Será que é porque a indústria coreana é produto de pesquisa doméstica?
Pessôa: Não, eu acho que é porque na Coreia se estuda muito e no Brasil não se estuda. O coreano médio, se fizer a prova do
Pisa [medição internacional da capacidade do jovem de 15 anos de usar seus conhecimentos para enfrentar a vida], ele está no topo. A média brasileira é uma tragédia. O capital humano no Brasil é muito ruim. O custo de capital na
Coreia é muito mais baixo que aqui, porque eles poupam 36% do PIB e a gente poupa 18%, 17%. Eu não vejo como a gente vai sustentar essa indústria. Só se fechar a economia.
Valor: Como o sr. liga isso com o câmbio?
Pessôa: Vamos voltar para a questão da indústria, vamos pegar a indústria calçadista. Você tem lá o cara em
Franca, no interior de São Paulo, que está produzindo calçados. O empresário de
Franca acha que compete com o produtor de sapatos da
China, mas ele está errado. Ele compete com o produtor de soja de
Rondônia. Porque se nós não produzíssemos soja e nem minério, o câmbio seria R$ 5. O que estou dizendo é que dada a produtividade que temos para produzir commodities e a produtividade que temos para produzir sapatos, o câmbio que reflete a nossa vantagem comparativa em commodities mata o produtor de sapatos. Então, o único jeito que eu tenho para fazer sobreviver o produtor de calçado é fazer alguma coisa que imponha um custo grande à produção de commodities.
Valor: O sr. então acha que essa reprimarização não vai mudar?
Pessôa: Acho que é um fato permanente e a gente deveria ser meio que passivo em relação a isso.
Prado: Eu concordo que a educação no Brasil foi historicamente subfinanciada. Mas eu sou muito mais otimista quanto ao potencial de crescimento brasileiro e eu acho que o Brasil não pode abrir mão da indústria. Isso é quase que jogar fora nossa história, todo esforço que se fez para transformar a sociedade brasileira. E, mais do que isso, commodities, a longo prazo, não se sabe para onde irão as coisas. Você não tem como voltar atrás se alguma coisa der errada. Aí eu coloco uma outra questão: a
China tem uma outra diferença com o Brasil, tem superávit em relação ao resto do mundo, mas tem déficit com seus vizinhos. Ou seja, ela é integrada na região. O Brasil tem uma posição diversa: déficit em relação ao resto do mundo e superávit com referência aos seus vizinhos, o que dificulta o processo de integração regional. Até que ponto seria viável o Brasil partir não apenas para uma política industrial olhando para seu próprio umbigo, mas tentando integrar os próprios vizinhos? Se nós não conseguimos fazer alguns produtos ao preço necessário, por que não o
Paraguai ou a
Bolívia? Agora, seja lá o cenário que for, câmbio é uma variável fundamental. A história mostra que toda vez que você tem um câmbio excessivamente valorizado, isso gera problemas de industrialização. Não necessariamente você tem que fazer uma taxa de câmbio para sustentar qualquer tipo de indústria, mas certamente você tem que ter uma política um pouco mais ativa dentro desse setor para que essa taxa de câmbio seja compatível com a estratégia de manutenção de setores da indústria que você julga necessário.
Valor: O sr. acha que o programa Brasil Maior preenche de alguma forma essas necessidades?
Prado: Acho que é um começo, acho que está muito aquém do que é necessário. Que você tem que fazer alguma coisa nessa linha, não há dúvida, sou favorável a fazer mais. Ser mais ativo no que se refere a câmbio e ser também ativo no que se refere a estratégias de política industrial. O que eu acho é que nós temos que pagar o preço que for necessário, não podemos abrir mão de ter uma sociedade mais igual.
Valor: O sr. concorda que, para manter a indústria, as commodities têm que pagar um pouco desse preço?
Prado: Isso nós fizemos no passado com o café. Teve o famoso confisco cambial, que cumpriu esse papel. Eu não estou ainda convencido que você tem que fazer alguma coisa similar àquilo. O que eu estou convencido é que você tem que ter uma política que compatibilize as duas coisas. Eu compartilho, em parte, a visão do Samuel de que você vai ter dificuldade pelo lado do investimento. Você vai ter que levar investimento, portanto, vai ter que ampliar a linha de crédito. O desafio é como ampliar esse "funding" - e aí tem um pouco de discordância teórica sobre se é possível fazer um "funding" sem que você tenha previamente poupança...
Pessôa: Acho que essa não é uma discordância, não...
Prado: Não é uma discordância? Então tudo bem. Acho que você vai ter que ampliar o "funding" e existe um ponto do qual todo mundo compartilha: daqui por diante, os gastos de não investimento do Estado têm que crescer a uma taxa menor do que o crescimento do PIB, até porque não dá para crescer muito...
Valor: Estamos sentindo uma convergência...
Prado: Só que não estou dizendo que você tem que reduzir gasto social, pelo contrário, acho que isso é um ganho da sociedade brasileira. O que estou dizendo é que nós temos que aumentar a taxa de investimento pública e o "funding", que são os dois elementos para investimento. Disso nós não escapamos. O problema é como fazer, onde fazer.
Pessôa: Acho que crescimento não é uma coisa que eu, como economista, emita opinião. Acho que quem se pronuncia sobre crescimento é a sociedade. Agora, sempre que quero crescer mais, custa mais. Crescimento custa, crescimento dói. Ele exige envolvimento da sociedade e, muitas vezes, a sociedade não está disposta.
Valor: O sr. concorda?
Prado: É claro que você tem que fazer escolhas. Concordamos. Aliás, tenho que fazer escolhas para crescer e para não crescer. O problema é que se você não cresce, as escolhas são ainda mais duras do que quando você cresce. É claro também que você não pode crescer aquilo que gostaria. Não posso crescer 10%, se não tenho determinados elementos para isso. O que eu acho é que nós temos muitos ganhos de eficiência a fazer no Brasil, desde gestão pública até vários mecanismos de ampliação de linhas e crédito. Acho que temos espaço para crescer. As taxas de poupança no Brasil já foram mais altas no passado e não há nenhuma razão para dizer que a sociedade brasileira se alterou nesse sentido.
Pessôa: Quando a gente discute essa questão da poupança, tem a questão teórica que não tem jeito de não enfrentar, sempre vem. Tem aquele discurso que diz que tenho primeiro que ter a poupança, para depois ter o investimento. Isso é uma proposição dos anos 30, uma coisa superada. A gente sabe que a causalidade é do investimento para a poupança. Você investe e a poupança vem. Agora, acho que tem um ponto, e talvez aí haja uma discordância entre nós, acho que a institucionalidade vigente no Brasil faz com que, pelo menos nos últimos anos assim tem funcionado, a causalidade é inversa, o crescimento vem e junto com ele vem o investimento, reforçando ainda mais o crescimento, e a poupança não vem atrás. Ou quando ela vem, é de forma muito tímida, gerando um buraco que a gente tem que tapar com a poupança externa. O que eu acho? Como a agenda é de equidade e não de crescimento, sempre que o crescimento vem e o investimento vem, as demandas sociais vêm atrás. E essas demandas sociais impedem que esse mecanismo, que permitiria uma aceleração sustentada da nossa taxa de crescimento opere. Quando tenho que abrir mão do meu consumo adicional, que é produzido pela possibilidade do crescimento, não abro mão desse consumo e aí a poupança não vem atrás. E aí eu sou bem mais pessimista nisso. Quando a gente olha o Estado brasileiro, tenho uma avaliação que não há desperdício no Estado brasileiro. Se nós olharmos tudo que cresceu de gasto público como proporção do PIB nos últimos 12 anos, o gasto federal aumentou pouco mais de quatro pontos de porcentagem do PIB. Isso é muita coisa, porque o PIB cresceu. Agora, mais de 80% desse aumento de gasto é programa social, INSS, política de valorização do salário mínimo, investimento, custeio de saúde e educação. Não é custeio da máquina. O custeio da máquina caiu como proporção do PIB nesse período.
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Sobrevivência da indústria divide economistas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU