30 Agosto 2011
Em um movimento que alguns teólogos afirmam que irá minar a credibilidade da principal revista teológica católica de língua inglesa, o Vaticano pressionou-a para que publique um artigo acadêmico sobre casamento, sem edição e sem ser submetido a qualquer revisão normal de outros especialistas.
A reportagem é de Thomas C. Fox, publicada no sítio National Catholic Reporter, 29-08-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O artigo, que apareceu na edição de junho de 2011 da revista trimestral Theological Studies, publicada em Milwaukee sob os auspícios dos jesuítas, defende a indissolubilidade do matrimônio. Era uma resposta a um artigo de setembro de 2004 em que os dois teólogos defenderam uma mudança nos ensinamentos da Igreja sobre divórcio e a segunda união.
O Vaticano tem pressionado os editores da Theological Studies desde a publicação do artigo de 2004, de acordo com teólogos não ligados à revista ou à ordem dos jesuítas. O objetivo do Vaticano é eliminar as vozes dissidentes e forçar a revista a permanecer mais perto dos ensinamentos oficiais da Igreja.
Fontes teológicas, que pediram para não serem identificadas para não serem pressionadas pelo Vaticano, dizem que a Congregação para a Doutrina da Fé pressionou por mudanças políticas na Theological Studies. O editor-chefe da revista, Pe. David G. Schultenover, anunciou as mudanças, depois das palavras "Um esclarecimento" impressas em negrito na coluna do editor na edição de dezembro de 2010.
Ele, então, escreveu aos seus assinantes, em sua grande parte teólogos católicos que leem cuidadosamente cada edição para fins acadêmicos, uma explicação para algumas mudanças na política editorial na revista. Schultenover começou fazendo referência a um controverso artigo publicado na edição de setembro de 2006. Esse artigo, disseram as fontes, aumentaram ainda mais os níveis de tensão entre o Vaticano e os editores da Theological Studies.
Escreveu Schultenover: "Mesmo com os melhores protocolos profissionais e as intenções mais sinceras de oferecer uma revista a serviço da Igreja, pode aparecer em nossas páginas um artigo que alguns julgam que pode induzir alguns leitores ao erro. Esse parece ter sido o caso com o artigo Catholic Sexual Ethics: Complementarity and the Truly Human [Ética sexual católica: A complementaridade e o verdadeiramente humano], de Todd Salzman e Michael Lawler (setembro de 2006). Alguns leitores podem ter formado uma opinião de que, como esse artigo apareceu em nossas páginas, a revista favorece e até promove a sua tese, tese esta que não está em conformidade em todos os aspectos com o atual ensino oficial da Igreja. Para todos esses leitores, eu gostaria de esclarecer que esse artigo, na medida em que não adere aos ensinamentos oficiais da Igreja, não representa a opinião dos editores e dos promotores da Theological Studies. Ao mesmo tempo em que a revista, atendendo aos mandatos dos últimos papas de fazer teologia `nas fronteiras`, promove a teologia profissional para teólogos profissionais, ela não promove teses que contrariam o ensino oficial da Igreja, mesmo que – embora muito raramente – tais teses encontrem um lugar em nossas páginas. Se e quando o fazem, a nossa política será a de alertar os leitores e afirmar claramente o atual ensino oficial da Igreja sobre a questão específica abordada".
Convidado a explicar por telefone por que a revista agora sente a necessidade de alertar os leitores quando são publicados artigos que se acredita que contrariam os ensinamentos oficiais da Igreja, Schultenover se recusou a comentar o assunto. Quando lhe foi dito que outros teólogos disseram que o Vaticano havia pressionado a Theological Studies a fazer as mudanças editoriais, ele respondeu: "Estas afirmações não são minhas".
Em uma nota incomum publicada na Theological Studies que precedeu o artigo de junho de 2011, mandado pelo Vaticano, Schultenover escreveu que, "com exceção de pequenas alterações estilísticas, o artigo [sobre o casamento] é publicado como foi recebido".
Leituras
Essa nota editorial chamou a atenção de alguns leitores da Theological Studies para a natureza incomum do artigo. O Pe. James Coriden, advogado canônico, professor da União Teológica de Washington e coautor do artigo original sobre o casamento de 2004, disse que, ao ler a nota, ele imediatamente concluiu que Schultenover havia sido forçado a publicá-lo.
"É um precedente terrível", disse Coriden, referindo-se tanto à publicação do artigo "da forma como ele foi enviado" e a nova política editorial que distingue a teologia que não está de acordo com os ensinamentos oficiais da Igreja. Coriden é o ganhador do Prêmio John Courtney Murray 2011, da Sociedade Teológica Católica dos EUA, a mais alta honraria concedida pela Sociedade a um teólogo.
John Thiel, presidente da Sociedade Teológica Católica dos EUA, disse lamentar as intervenções do Vaticano, chamando-as de "equivocadas" em vários aspectos.
"Primeiro, isso assume erroneamente que o público leitor da revista, que são teólogos profissionais, é incapaz de fazer seus próprios julgamentos profissionais sobre as posições teológicas. Em segundo lugar, isso parece confundir teologia e doutrina, pensando equivocadamente que a tarefa da teologia é a repetição da doutrina. A longa história da teologia desempenhando um papel no processo do desenvolvimento doutrinário demonstra que isso não é verdade. Em terceiro lugar, a publicação de um artigo por meio de um `fiat`, em violação ao processo editorial, põe em questão a integridade do artigo publicado dessa forma, colocando seus autores em uma posição infeliz".
O Pe. Charles Curran, professor de teologia da Southern Methodist University, em Dallas, disse que a ação do Vaticano "é o ataque mais grave possível contra a teologia católica dos EUA, porque a Theological Studies é a nossa revista acadêmica de maior prestígio".
Curran, a quem a Congregação para a Doutrina da Fé declarou em 1986 não ser apropriado como teólogo católico por causa de sua discordância com o ensino moral hierárquico, observou que, "mais uma vez", a teologia moral e a ética sexual se tornaram o papel de tornassol da ortodoxia do Vaticano.
Ele disse que as ações do Vaticano poderiam ferir duplamente a Theological Studies, primeiro ao encorajar os teólogos que podem estar "trabalhando nas fronteiras" a ir para outro lugar, com artigos que eles podem pensar que já não serão publicados na revista, e, em segundo lugar, forçando os editores da Theological Studies a uma "dissensão restrita" na publicação.
"Definitivamente, há uma sensação de resfriamento aqui", disse. "E, se isso está acontecendo aqui, você tem que pensar que isso também está acontecendo em outros lugares, na Europa".
"A Companhia de Jesus tem uma relação boa e cordial com o cardeal William Levada, moderador da Congregação para a Doutrina da Fé", disse o padre jesuíta Thomas H. Smolich, presidente da Conferência Jesuíta dos Estados Unidos. "A Companhia apoia plenamente a Theological Studies e sua missão de investigação e pesquisa teológica. Sou grato pelo bom trabalho que o Pe. Schultenover tem feito como seu editor-chefe".
As origens da polêmica
O artigo que provocou a polêmica pela primeira vez em 2004 era de coautoria de Coriden e do padre franciscano Kenneth Himes, coordenador do departamento de teologia do Boston College e ex-presidente da Sociedade Teológica Católica dos EUA.
Em um artigo anterior da Theological Studies, Himes e Coriden defenderam uma abordagem pastoral que permitisse que os católicos divorciados e de segunda união participassem plenamente na Eucaristia sob certas condições. No entanto, no artigo de 2004, Indissolubility of Marriage: Reasons to Reconsider [A indissolubilidade do matrimônio: Razões para reconsiderar], eles vão muito mais longe e afirmam que o ensino da Igreja sobre a indissolubilidade do casamento deveria ser modificado.
"Acreditamos que o cuidado pastoral dos divorciados e dos casais de segunda união na situação atual atingiu o estágio em que a honestidade exige uma reconsideração da divisão continuada entre o ensino da Igreja sobre a indissolubilidade e as estratégias pastorais dos seus ministros", escreveram, questionando "se os ensinamentos da Igreja continuam sendo persuasivos".
"Ao fazer essa pergunta, no entanto, não queremos ser vistos como defensores do divórcio. O ensino da Igreja Católica de que o casamento entre pessoas batizadas é um sacramento que deve implicar em uma união de amor permanente e fiel entre marido e mulher é uma mensagem sábia e muito necessária no mundo moderno".
A reposta autorizada
Depois de anos de crescentes pressões e intercâmbios e pelo menos uma refutação, escrita pelo padre jesuíta Peter F. Ryan, rejeitada pela revista, o Vaticano determinou, finalmente, que a Theological Studies publicasse – sem edição – um artigo de coautoria de Ryan e do teólogo Germain Grisez, intitulado Indissoluble Marriage: A Reply to Kenneth Himes and James Coriden [Matrimônio indissolúvel:. Uma resposta a Kenneth Himes e Coriden James].
Ryan é professor de teologia moral no seminário da Mount St. Mary`s University, em Emmitsburg, Maryland. Grisez é professor emérito de ética cristã na Mount St. Mary`s University.
Em seu artigo, os autores oferecem uma defesa vigorosa da doutrina da Igreja sobre o casamento, dizendo que ela nunca pode ser mudada. "Sob o risco de parecermos presunçosos, argumentaremos que uma revisão substantiva é, de fato, impossível", escrevem, criticando os argumentos de Himes e Coriden.
Não é incomum que a Theological Studies publique uma resposta a um artigo. Normalmente, no entanto, essas respostas têm a metade do tamanho ou até menos do artigo original. A resposta de Ryan e Grisez é uma exceção, escrita no espaço de um artigo completo.
Schultenover assumiu como editor-chefe da Theological Studies em janeiro de 2006, sucedendo o padre jesuíta Michael Fahey, que atuou por 10 anos nessa posição. A Theological Studies diz ter assinantes em cerca de 80 países. Ela tem um conselho de diretores jesuítas e 13 consultores editoriais que ajudam Schultenover na leitura e a escolher entre os manuscritos. A revista diz que, em geral, costuma receber cerca de 200 artigo não solicitadas anualmente, d0s quais cerca de 35 são publicados.
Essa não é a primeira vez que o Vaticano pressiona significativamente uma publicação jesuíta norte-americana. Em maio de 2005, o padre jesuíta Thomas J. Reese, editor da revista America, renunciou, a pedido de sua ordem, depois de anos de pressão pela sua destituição, por parte da Congregação para a Doutrina da Fé. Nesse caso, o Vaticano também disse que a revista America havia se desviado muito dos ensinamentos oficiais da Igreja.
A Congregação para a Doutrina da Fé não respondeu às perguntas do NCR a respeito da Theological Studies.
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Vaticano pressiona revista teológica dos EUA - Instituto Humanitas Unisinos - IHU