26 Agosto 2011
Os horrores perpetrados pelo Exército contra as comunidades maias durante o "quinquênio negro" (1978-1983) ultrapassam qualquer possível descrição. Os culpados foram condenados a 6.030 anos de prisão cada um.
A reportagem é de Prudencio García – pesquisador da Comissão de Esclarecimento Histórico da ONU sobre a Guatemala, fellow do IUS de Chicago e professor do Instituto Gutiérrez Mellado da UNED – e está publicada no jornal espanhol El País, 26-08-2011. A tradução é do Cepat.
Na sala do Tribunal de Alto Risco da cidade de Guatemala, sob a presidência da juíza Jasmín Barrios, a voz firme e serena da juíza vocal Patricia Bustamente soou especialmente rotunda quando leu: "Ficou demonstrado que os militares agiram de forma planejada, com fúria e perversidade".
A sentença se refere principalmente aos fatos acorridos no dia 7 de dezembro de 1982, quando uma unidade de kaibiles – tropas especiais – entrou no povoado de Las Dos Erres, pequena aldeia maia do Petén, ao norte do país. 201 camponeses, civis desarmados, em sua maioria mulheres e crianças, foram ali assassinados. 29 anos depois, quatro ex-kaibiles foram julgados por aqueles crimes e condenados em primeira instância a 6.030 anos de prisão cada um. De acordo com a lei, terão que cumprir 50 anos. A eles são acrescidos outros 30 anos por descumprimento de seus deveres para com a humanidade, somando 80 anos no total.
Os horrores perpetrados pelo Exército da Guatemala contra as comunidades maias durante várias décadas, mas especialmente no "quinquênio negro" (1878-1983), ultrapassam qualquer possível descrição. As descrições fidedignas existem, mas ninguém poderia acreditar nelas caso não fosse por sua constrangedora evidência em extensão, detalhe e concretude testemunhal. Aí estão as 1.500 páginas, em quatro pavorosos volumes, do relatório REMHI (Recuperação da Memória Histórica), emitido em 1998 pela ODHAG, Escritório de Direitos Humanos da Arquidiocese da Guatemala (24-04-1998). Páginas, por sua vez, corroboradas e extensamente ampliadas um ano depois (25-02-1999) pelas ainda mais brutais 3.800 páginas dos 12 volumes, ainda mais pavorosos, do relatório da CEH (Comissão de Esclarecimento Histórico da ONU sobre a Guatemala, à qual tivemos a honra de pertencer). Caso não existisse tão avassalador volume documental e testemunhal, ninguém poderia acreditar nos fatos neles registrados, dada a sua inaudita atrocidade.
Selvageria com as mulheres, inclusive as grávidas, brutalidade com as crianças, inclusive os bebês. Monstruosas mutilações masculinas e femininas, prévias aos assassinatos. Empalamentos, pessoas queimadas vivas, aberrantes formas de assassinar que asseguravam longos dias de agonia. Difícil tarefa a de descrever o indescritível. Mas trabalhosamente foi feito, e o resultado documental de ambos os relatórios citados está aí, e segue aí para a posteridade.
De acordo com os fatos analisados, os soldados – cerca de 40 kaibiles –, ao entrarem em Las Dos Erres, separaram as mulheres e as crianças dos homens. Estes foram reunidos na escola, onde foram torturados e finalmente assassinados. As mulheres com as crianças foram presas na pequena igreja evangélica da comunidade. Depois, as mulheres foram obrigadas a cozinhar e servir a comida aos seus verdugos, antes de serem violentadas e assassinadas por estes. As violações e assassinatos foram cometidos com especial sadismo, e os cadáveres foram jogados num poço, utilizado como vala comum. Da mesma forma, as crianças também foram assassinadas e jogadas no mesmo poço.
Dois ex-kaibiles, na época membros daquela unidade militar, hoje retirados, radicados no México e testemunhas voluntárias da Promotoria Pública, proporcionaram ao processo, por videoconferência, detalhes de arrepiar sobre a atuação dos acusados. Por exemplo, um dos criminosos agora condenados, o sub-instrutor kaibil Manuel Pop Sun, pegou uma menina e a levou à força até um matagal próximo do povoado, onde a violentou. Voltou com ela, decapitou-a e a jogou no poço. Outros detalhes igualmente horríveis vieram a configurar o conteúdo da sentença.
Recordemos um fato que nos foi relatado pessoalmente por um ex-membro do Governo do presidente democrata-cristão Vinicio Cerezo. Em 1986, ao ser nomeado ministro, lhe foi designado para escolta um ex-kaibil. Ao saber que a filha deste sofria de um grave problema de vista, com a probabilidade de ficar cega salvo não recebesse um tratamento muito caro e especializado, o ministro, compadecido daquela desgraça, sem solução para uma família de pouquíssimos recursos, recebeu esta tremenda resposta: "Agradeço os seus cuidados por minha filha, mas saiba que serão totalmente inúteis. Porque o que está acontecendo com a minha filha é o castigo que Deus envia a mim, pelas atrocidades que eu cometi contra as crianças maias quando era kaibil". Que horrores infanticidas teria cometido aquele sujeito para experimentar um remorso patológico desta magnitude?
Mas os acusados não são apenas militares de baixa ou nenhuma graduação. Nos últimos meses houve a prisão e o processamento de três caracterizadas autoridades já retiradas, mas que exerceram importantes tarefas repressivas na década de 1980. Um deles é o general Héctor López Fuentes, ex-chefe do Estado Maior do Exército (1982-1983). Contra ele pesam acusações de genocídio, crimes de guerra e contra a humanidade, perpetrados principalmente contra comunidades maias, crimes "nos quais seus povoados ficaram destruídos, seus habitantes de todas as idades foram assassinados, e as mulheres e crianças foram sistematicamente violentadas", precisa Margot Wallstrom, representante especial da ONU sobre a violência sexual nos conflitos. Outro chefe recentemente capturado e processado é o coronel Rafael Bol de la Cruz, ex-diretor da Polícia Federal, responsável pela prisão ilegal e desaparecimento, em 1984, do dirigente sindical e estudantil Edgar Fernando García, além de uma série de desaparecimentos forçados enquanto dirigiu aquele velho e corrupto corpo policial.
O terceiro chefe militar aludido é o também coronel retirado Marco Antonio Sánchez Samayoa, preso desde 2009 e já condenado a 53 anos de prisão como responsável pelo sequestro e desaparecimento definitivo de oito pessoas na aldeia de El Jute, em 1981.
Diante desta série de ações judiciais, a Associação de Veteranos Militares da Guatemala (Avemilgua), reduto do setor mais reacionário daquele Exército (um Exército que durante décadas eliminou destacados defensores dos direitos humanos), divulgou uma nota em que, rechaçando com indignação estas atuações judiciais, lança a seguinte advertência literal: "Advertimos estar dispostos a lutar novamente caso as circunstâncias o exigirem". Mas, o que significa "lutar novamente" para estes militares empenhados em assegurar sua própria impunidade e prolongar a dos piores torturadores, assassinos e violadores de mulheres e crianças?
Teremos que presenciar e assumir novamente que outros atuais defensores dos direitos humanos voltem a ser crivados de balas nas ruas, como o foram, entre outros, o diplomata Fuentes Mohr e o ex-prefeito Colom Argueta, ou apunhalados, como a antropóloga Myrna Mack, ou golpeados até seus rostos ficarem completamente desfigurados, como o bispo dom Juan Gerardi, assassinado após a apresentação do relatório REMHI acima citado? Teremos que presenciar a ressurreição dos abomináveis esquadrões da morte, novamente dispostos a sequestrar, torturar e assassinar? Essa nova luta anunciada pela Avemilgua vai requerer a patriótica repetição desse tipo de horrores?
A Avemilgua terminava a sua ameaçadora nota com este slogan: "Pela honra e a dignidade". Mas, que tipo de honra pode ser defendida mediante este tipo de crimes? E que tipo de dignidade se defende ou se defendeu, violando sistematicamente mulheres e decapitando crianças maias há três décadas?
Última notícia: os especialistas da Equipe de Antropologia Forense, que analisam para a Promotoria Pública os restos das vítimas, acabam de ser perseguidos e atacados em seu veículo, e ameaçados de morte em um repugnante escrito de palavras vulgares e tinta vermelha, cujo infame conteúdo nos leva de volta àqueles anos de chumbo de que alguns patriotas têm saudades e que ameaçam trazer de volta.
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Guatemala. Fúria e perversidade - Instituto Humanitas Unisinos - IHU