13 Agosto 2011
Sem a imunidade consular, o português Adelino D’Assunção Nobre de Melo Vera Cruz Pinto se tornou, na sexta-feira, um foragido da Justiça brasileira. Então vice-cônsul de Portugal em Porto Alegre, ele terá de prestar contas por um golpe que se estendeu ao longo de 2010 e terminou lesando a Arquidiocese de Porto Alegre da Igreja Católica em R$ 2,5 milhões. O dinheiro, a contrapartida brasileira para uma suposta ONG belga que reformaria igrejas da Capital e do Interior, foi desviado por meio da conta de Pinto em um esquema que ludibrou religiosos gaúchos e constrangeu autoridades lusitanas.
A reportagem é de José Luís Costa e publicada pelo jornal Zero Hora, 14-08-2011.
1. Antes, uma noiva enganada
Ao chegar a Porto Alegre como vice-cônsul de Portugal, no início de 2010, Adelino Pinto deixou para trás uma dívida de R$ 200 mil e uma mulher à beira do altar.
Os dois se conheceram no verão de 2005, no Algarve, litoral de Portugal. Ela, uma arquiteta de 56 anos (14 anos mais velha do que ele), solteira, sem pais e sem filhos, e sem jamais ter namorado aos 56 anos de vida. Ele, um português nascido em Moçambique, filho de família simples de Cabo Verde, formado em Relações Internacionais, funcionário de nível médio do Ministério dos Negócios Estrangeiros, disposto a se separar da companheira.
Dois meses depois já eram íntimos. Pinto falava em casamento e pedia dinheiro à amada para comprar casa (em que ela nunca morou) e carro (em que ela jamais andou). Ele sempre precisava de euros para viagens de última hora. Duas delas para a Inglaterra. A primeira para visitar um irmão, vítima de um tiro em Bagdá, no Iraque. A segunda, em uma noite de Natal, para o funeral deste.
À beira do altar, a mulher descobriu que Pinto não se casaria com ela. E as histórias, viagens, eram todas mentirosas. A cerimônia estava marcada, a igreja reservada, os convites distribuídos, e Pinto cancelou tudo e sumiu com a papelada e o dinheiro dos festejos. Com ajuda de um parente de Pinto, a vítima localizou o fujão e o fez assinar uma confissão de dívida, equivalente a R$ 200 mil. E, em 2008, a Justiça portuguesa mandou ele pagar a conta, descontando do salário dele até 2015.
2. Vinho e bacalhau no Piratini
Em fevereiro do ano passado, Pinto desembarcou na Capital gaúcha para chefiar a representação portuguesa no Estado, que estava sem cônsul havia quase um ano e meio. Por questões político-financeiras, Lisboa tinha rebaixado o status do escritório para vice-consulado, e, assim, foi mandado para Porto Alegre, em vez de um diplomata, um servidor de escalão inferior.
Mas Pinto não se sentia menos importante. Gostava de estar entre autoridades. Foi recebido pela então governadora Yeda Crusius e homenageado pelo ex-presidente do Tribunal de Contas do Estado João Osório.
Em 10 de junho, longe das comunidades portuguesas, as quais evitava visitar, comemorou o Dia de Portugal e de Camões entre a elite política gaúcha, no Galpão Crioulo do Palácio Piratini. Foram R$ 10 mil em vinho e bacalhau que teriam sido pagos por um amigo, Tirone Lemos Michelin.
Os dois se conheciam de uma reunião entre membros do Rotary Club no Interior, e Pinto havia pedido ajuda a ele para estreitar laços comerciais entre gaúchos e portugueses. Ex-consultor e procurador da Ulbra, Michelin era ministro de relações exteriores de uma loja maçônica, tinha experiência no ramo e acreditava nas boas intenções do vice-cônsul. Percorreram juntos 80 prefeituras, universidades e empresas gaúchas. Em nome do governo de Lisboa, Pinto sugeria intercâmbio e parcerias: silvicultura, reflorestamento, saneamento, indústria naval e até monitoramento eletrônico de presos.
3. A aproximação com a Igreja
Pinto falava de tudo, mas parecia não entender de nada e nenhum negócio empolgava. Nenhum, até Michelin transmitir um recado tentador aos padres da Arquidiocese de Porto Alegre: Portugal tinha milhões de euros para a restauração de igrejas de origem lusa.
Dias depois de um requerimento da Igreja bater à porta do vice-consulado, Pinto já se sentia à vontade para pedir favores ao administrador da Arquidiocese e pároco da Igreja da Conceição, padre Luís Inácio Ledur. O vice-cônsul precisava de um lugar para morar. O padre conseguiu, com um amigo, um apartamento no elegante bairro Moinhos de Vento, mobiliado e sem necessidade de fiador.
O carpete não agradou, e, enquanto fazia a troca, o vice-cônsul morou de graça, por duas semanas, em um dos alojamentos da Casa de Passagem da Igreja da Conceição. Depois lamentou que o vice-consulado passava por sérios apuros financeiros. Sensibilizado, o padre Inácio arrumou R$ 133 mil emprestados com amigos e repassou ao vice-cônsul, dinheiro que usava para pagar o aluguel do apartamento.
4. R$ 12 milhões acertados e uma estranha peruca
Pinto dizia que Portugal doaria R$ 12 milhões para reforma de paróquias de origem lusa. O dinheiro viria por meio de uma ONG de Bruxelas, ligada à Comunidade Europeia, dirigida por Teresa Falcão e Cunha, com quem Pinto negociava. Ele a colocou em contato, por e-mail, com o padre Inácio. A notícia da ajuda ganhou destaque na imprensa e no site da embaixada portuguesa em Brasília.
Em dezembro, o padre Inácio, o irmão dele, padre Luís Francisco Ledur, e o bispo de Montenegro, dom Paulo de Conto, acompanhados pelo vice-cônsul, foram a Lisboa buscar o dinheiro. A viagem dos padres seria paga pela ONG, mas na última hora a entidade não conseguiu as reservas.
A arquidiocese bancou as passagens, com a garantia de ressarcimento.
Na chegada a Lisboa, Pinto sumiu por três dias. Quando reapareceu, fez duas recomendações aos padres. A primeira: não falar com colegas de batina de Portugal sobre o motivo da viagem. Poderiam querer também dinheiro para restaurar as paróquias deles. A segunda: ficar longe da embaixada do Brasil. O embaixador era da Igreja Pentecostal e, por isso, poderia colocar olho gordo no negócio.
A diretora da ONG recebeu a comitiva em uma sala da Basílica da Estrela, paróquia-mãe da Igreja Católica nas colônias portuguesas. O encontro era ali, porque a ONG belga não tinha escritório em Lisboa. Quase não dava para ver o rosto de Teresa, que usava uma estranha peruca e óculos escuros.
5. Mont Blancs e o primeiro milhão
Teresa exigiu que a Arquidiocese comprovasse saldo para bancar a contrapartida para as obras – 30% do valor a ser doado. Alegou que Guiné Bissau recebeu verbas e não fez obra alguma. O padre Inácio disse que atravessaria a rua para pegar um extrato na agência do Banco do Brasil, mas Teresa só aceitava comprovação de um banco português. Começou um bate-boca, e Pinto ofereceu a conta do vice-consulado para colocar o dinheiro. Os padres ficaram em dúvida. Teresa garantiu não ter problema e pediu aos religiosos que comprassem cinco canetas Mont Blanc para o Ministro da Cultura português e assessores. Afinal, estavam bancando a doação. Pinto levou os padres a um shopping. Uma caneta custava R$ 4 mil, e os religiosos recuaram. Teresa, irritada, ligou cobrando os presentes.
De volta a Porto Alegre, os padres se reuniram com o arcebispo, dom Dadeus Grings. Pensavam em desistir do negócio. Eram necessário uns R$ 2 milhões. Pinto prometeu conseguir emprestados R$ 565 mil com um amigo embaixador. Em 21 de dezembro, a Arquidiocese depositou R$ 1,4 milhão na conta bancária de Pinto, e ele assinou certidão em cartório assegurando não tocar nos valores. O depósito deveria ser na conta do vice-consulado, mas Pinto alegava que o escritório não tinha CNPJ.
Três dias depois, Teresa reclamou, por e-mail, ao padre Inácio, que o saldo era insuficiente. Pinto se desculpou com o padre, alegando confusão do embaixador, que enviara dólares em vez de euros, e a Arquidiocese depositou mais R$ 570 mil na conta do vice-cônsul.
6. Após mais uma doação, dinheiro some
Em 28 de dezembro, Pinto transferiu o R$ 1,3 milhão da Igreja para a conta dele no banco BBVA, em Lisboa. No dia seguinte, Teresa mandou novo e-mail aos padres, pedindo mais R$ 1,5 milhão. Isso porque, além da restauração das paróquias da Conceição, na Capital, e as de Triunfo e de Viamão, tinha sido aprovada doação para a reforma da Cúria Metropolitana, o que surpreendeu os padres.
A Igreja não tinha recursos para outro projeto. Era período de férias coletivas, padre Inácio estava em Santa Catarina com a família, e o vice-cônsul foi atrás dele. Dizia que tinha arrumado um empréstimo com amigos e que faltariam R$ 574 mil para fechar o negócio. Mesmo desconfiadíssimos, os padres depositaram a quantia na conta de Pinto, somando R$ 2.544.000,00, e o vice-cônsul assinou uma nova certidão em cartório se comprometendo a não mexer no dinheiro.
Os R$ 12 milhões chegariam até 31 de janeiro. Mas surgiu outro problema. Desapareceram R$ 174 mil da conta de Pinto. O vice-cônsul se desculpou com os padres e alegou que funcionários do vice-consulado teriam emitido cheques por engano.
Ninguém mais acreditava no vice-cônsul. Sumido por 17 dias, ele telefonava para a Arquidiocese prometendo devolver parte dos R$ 174 mil. Dizia que estava a trabalho no Paraguai, no Uruguai. Mas o identificador mostrava chamadas vindas da Europa.
7. Viagens, churrascarias e estéticas
Pinto aproveitava para passear por Portugal e pelo Rio de Janeiro. Até a ex-companheira com os dois filhos deles vieram se divertir na Cidade Maravilhosa com R$ 200 mil depositados na conta dela em um banco no Leblon – há desconfianças de que ela seja Teresa, a misteriosa diretora da ONG.
Pinto não economizava em hotéis de luxo, shoppings, churrascarias, estéticas, eletrônicos e de artigos de surfe. Só num dia, gastou R$ 1,3 mil em uma loja de cosméticos.
Em 14 de fevereiro, ao voltar para Porto Alegre, o vice-cônsul admitiu aos padres que estava na Europa. Garantiu ter repassado o dinheiro da Arquidiocese para a ONG, a fim de agilizar a doação dos R$ 12 milhões. Por cinco vezes dom Dadeus cobrou explicações de Pinto, que alegava a necessidade de técnicos europeus inspecionarem as obras para o dinheiro ser liberado. Pressionado, o vice-cônsul emitiu quatro cheques (acima, o de R$ 1,4 milhão) com valores correspondentes ao que devia à Arquidiocese e ao padre Inácio, como forma de garantia de pagamentos futuros, mas foram devolvidos – três sustados e um com assinatura diferente.
8. Propostas indecorosas, desculpas transatlânticas
Em março, a Arquidiocese procurou a 1ª Delegacia da Polícia Civil (1ª DP) de Porto Alegre, que se viu em dúvida porque Pinto tinha imunidade consular. De Portugal, Teresa passou a mandar e-mails em tom de chantagem ao padre Inácio. E, Pinto, revoltado, fez ameaças a dom Paulo de Conto, de Montenegro. Depois, propôs um acordo com dom Dadeus: entregaria R$ 50 mil na mão do arcebispo em troca da anulação do registro policial, prometendo devolver o dinheiro aos poucos, R$ 500 mil por ano. Por fim, ofereceu a dom Dadeus uma viagem paga ao Vaticano, onde Pinto se empenharia para que o religioso fosse promovido a cardeal. Nada foi aceito por dom Dadeus.
Com o cerco se fechando, Pinto viajou para o Rio e, em 29 de março, para Lisboa, onde foi afastado das funções e é investigado pelo Ministério Público português.
Em maio, o diplomata Paulo Santos deixou Portugal e atravessou o Atlântico e passou dois meses acalmando os cerca de 30 mil patrícios no Estado e pedindo desculpas à Igreja e a autoridades gaúchas. Mas sem dar nenhum sinal de que o governo português pretenda ressarcir a Igreja. Com as investigações reabertas, por conta da quebra da imunidade de Pinto, a 10ª Vara Criminal de Porto Alegre decretou a prisão preventiva do ex-vice-cônsul, que vai comemorar 49 anos dia 22 com os milhões da Igreja em algum lugar do mundo.