No dia em que o primeiro carregamento de suprimentos com uma pasta à base de amendoim aterrissou na capital somali de
Mogadício, um micro-ônibus branco e precário chamado de “matatu” saiu da aldeia somali de Dhoobley, cerca de 500 km a sudoeste da capital. O veículo levava cerca de 30 refugiados, mas não era o primeiro transporte compartilhado a deixar a aldeia e nem seria o último. Alguns dizem que quase não há mais “matatus” na Somália. Outros dizem que logo não haverá somalis, com o país afligido por guerras e desastres naturais.
A reportagem é de
Fiona Ehlers, publicada pela revista
Der Spiegel e reproduzida pelo
Portal Uol, 03-08-2011.
O ônibus é carregado à sombra de uma acácia na praça abandonada de
Dhoobley, uma aldeia a 20 km da fronteira do Quênia, no Sul da Somália, uma região controlada por milícias radicais islâmicas. Os passageiros que lutam por espaço no ônibus incluem mulheres macilentas com roupas coloridas, como Maria, 40, e Hawa, 32. Elas andaram muitos dias para chegar a
Dhoobley de suas aldeias mais ao Norte, onde abandonaram suas casas e seus rebanhos de vacas e cabras. Elas andaram sob o calor abrasador, sem água ou comida e quase sem forças para continuar. Sentadas no ônibus, moscas andam por suas bocas, enquanto seus filhos ficam pendurados apáticos em seus peitos caídos.
Policiais somalis levando rifles de assalto AK-47 enferrujados, com o uniforme verde oliva pendurado em seus esqueletos magros, acompanharão as mulheres até a fronteira com o Quênia. Seu papel é proteger as mulheres dos ataques por grupos de bandidos que amarram os homens nas árvores enquanto estupram as mulheres.
O ônibus agora está correndo por uma nuvem de poeira pela fronteira aberta, a alguma distância do gordo policial de imigração do Quênia, que fica sentado em um jipe. Ele deveria monitorar o tráfego pela fronteira.
No
Quênia, o ônibus continua pela estrada empoeirada, passando por incontáveis quilômetros de campos desolados onde, há poucos anos, havia animais silvestres. Desde então, foram substituídos por um mar de sacolas plásticas rasgadas. A terra é vermelha escura e mesmo de madrugada, quando os refugiados chegam ao seu destino, ainda emite o calor de um dia de sol. Esqueletos de vacas, búfalos e camelos mortos de sede ladeiam a estrada, produzindo um cheiro horrível.
O único refúgio
As mulheres estão fugindo de uma seca que provavelmente é a mais devastadora a atingir o
Chifre da África em 60 anos. Elas esperam construir um futuro de paz no vizinho Quênia. Contudo, para os recém-chegados como
Deka, de 17 anos, da cidade portuária somali de
Kismayo, esta paz ainda é elusiva. Para jovens como
Ahmed, que cresceu no campo e não conhece nada além dele, viver no exílio tornou-se uma realidade há muito tempo.
E para o ex-ministro de defesa da Somália, o futuro não existe mais. O campo é o único refúgio ainda disponível para ele.
Este local inimaginável, o maior campo de refugiados do mundo, chama-se
Dadaab. É uma enorme cidade artificial, consistindo de assentamentos individuais, tendas, barracos de terra e casas de pedras vermelhas. O campo foi originalmente construído para acomodar 90.000 pessoas, no início dos anos 90, quando uma guerra civil eclodiu na Somália, e os primeiros somalis fugiram do país. Agora, no início de julho, após dois anos nos quais nem uma única gota de chuva de monção caiu na região, mais de 11 milhões de africanos do Leste estão enfrentando a fome. O campo já abriga 400.000 somalis e outros 1.300 chegam todos os dias. A Organização das Nações Unidas estima que haverá meio milhão de pessoas em
Dadaab até o final do ano.
Nos últimos dois meses,
Ahmed Hussein Abdullai, 28, vem tendo uma sensação recorrente de déjà-vu ao acompanhar os eventos que lembram seu próprio caminho torturante. Ele diz que seu coração parte ao testemunhar o sofrimento dos recém-chegados. Quando ele vê as crianças moribundas sendo carregadas nas costas das mães e novas covas consistindo de pequenos montes de terra vermelha constantemente aparecendo no cemitério na frente de sua casa, protegido por espinhos de acordo com a tradição dos pastores somalis, ele se lembra das próprias experiências quando deixou o país. As coisas estão exatamente como na sua época, diz ele. Nada mudou.
“O seu sucesso é o nosso interesse”
Abdullai tinha nove anos quando chegou a
Dadaab. Era o ano de 1992, meses após o início da guerra civil na capital Mogadício. Na época,
Dadaab mal tinha “mzungus”, como as pessoas aqui se referem aos brancos com calças cargo, antenas satélite e jipes de tração nas quatro rodas, que trazem doações do mundo todo. Naquela época, os refugiados recebiam uma tenda e deviam aprender duas línguas, swahili e inglês, caso quisessem se integrar em sua nova casa.
Hoje,
Abdullai é um homem de sucesso, professor de biologia e química em uma escola de ensino médio no campo Ifo, uma das três unidades do campo em
Dadaab. Ele também é o primeiro livreiro do campo. Sua loja chama-se “Ifting”, que se traduz como “luz”. A loja tem até um lema, que ele escreveu à mão no cartaz da loja: “Seu sucesso é o nosso interesse”.
Para um refugiado sem documentos, que nunca terá permissão para deixar o campo ou para trabalhar no Quênia, Abdullai se deu bastante bem. Um homem amigável e inteligente, de cavanhaque e com uma camisa passada, ele é um exemplo para os novatos. Ele diz: “Ser refugiado é um desafio. Os que conseguem fazer alguma coisa, que cursam uma escola ou uma universidade, podem mudar seu país – mesmo a partir do exílio.”
Abdullai ainda mora no mesmo lugar onde seu pai montou uma tenda para a família de cinco filhos no lote B15. Hoje, duas casas de esterco e terra vermelha estão em um terreno de terra limpo.
Sem intenção de retornar
Recentemente, ele se tornou pai e também completou o programa de treinamento para se tornar professor de resolução de conflito. Seu papel é ensinar as crianças sobre a paz e estabelecer um exemplo de um bom líder. As lições foram teóricas demais para seu gosto, diz
Abdullai, que diz preferir ensinar na prática em vez de dar palestras. Mas ele também é rígido com seus alunos e exige que de fato aprendam tudo. Ele acaba de ser eleito presidente da organização de jovens de Ifo, que encontra emprego para quem completa o ensino médio e ajuda-os a preencher os formulários para programas de bolsas no Canadá.
Quando termina o dia na escola,
Abdullai sempre vai para a livraria. A loja enche rapidamente com crianças de uniformes escolares amarelos, as mães usando véus e tatuagens de hena, o rapaz que faz “chapattis” e o vendedor de chá. Todo mundo fala dos preços do chá, leite e gasolina, que dobraram recentemente. Pouco antes de fechar a loja, Abdullai pega seu rádio de transistor preto
Grundig, levando-o ao ouvido, acompanha o noticiário da BBC que fala do carregamento para Mogadício. Eles discutem o futuro do
Chifre da África, mas apesar de preocupados com a Somália, também parece que esses refugiados deixaram o país há muito tempo e não pretendem voltar.
O cliente mais leal de
Abdullai é um homem com um terno folgado que raramente compra alguma coisa. Ele vem todos os dias e fica na loja apertada, entre os livros escolares e mapas da África. Seu nome é
Adan Ahmed Abdi, ele tem 61 anos e é ex-ministro da defesa da Somália. Ele também chegou a
Dadaab sem nada, após fugir pela fronteira em um “matatu” em um dia de abril há quatro anos, pouco depois de um dos inúmeros governos de transição o exonerarem e expulsarem de casa.
O ex-ministro e o vendedor de livros se tornaram amigos na diáspora. Enquanto o livreiro olha confiante para o futuro, o ex-ministro da defesa não tem nada além de memórias. Abdi é um político fracassado. Ele tentou salvar seu país, mas nunca acreditou que poderia mudar nada.
“Meu país está doente”
Ele nos guia pelo caminho da loja de
Abdullai, cruzando o mercado até seu barraco. “Eu nunca poderia ter imaginado que ia parar neste buraco”, diz ele.
Abdi, que era coronel do exército, serve chá sentado em uma esteira de bambu e manda o filho pegar sua antiga mala Samsonite. Ele puxa seu passaporte diplomático e mostra fotos de seus encontros com outros ministros do gabinete, fotos que mostram
Abdi com seus colegas de Gana, Congo, Níger e Nigéria. Ele mostra um relógio suíço de ouro que um outro coronel deu a ele em 2004:
Muammar Gaddafi, cuja imagem está gravada no relógio.
O ex-ministro fala baixo. Ele é fluente em italiano, idioma dos antigos governantes coloniais da Somália. Ele foi treinado em uma base militar perto de Bolonha e subiu na hierarquia dos militares somalis, tornando-se especialista em sistemas de defesa de mísseis. Oportunamente, foi promovido a coronel e nomeado ministro da defesa sob o ex-presidente
Abdiqasim Salad Hasan. Quando
Hassan renunciou em 2004,
Abdi subitamente se viu em maus lençóis com os sucessores e as milícias cada vez mais poderosas de al-Shabab, os verdadeiros governantes da Somália de hoje.
O ex-ministro perdeu seus pertences e foi forçado a assistir enquanto seus soldados eram mortos em plena luz do dia. Os radicais islâmicos cortaram as mãos dos ladrões, proibiram as pessoas de importar batatas do Quênia e forçaram as mulheres a usarem véu.
Abdi fugiu da Somália há quatro anos, após compreender que era sua única escolha. Quase ninguém sabe sobre seu passado no campo, onde o livreiro é seu único amigo.
O ministro vai morrer aqui. Não pode retornar à Somália e tampouco pode se tornar cidadão queniano. “Não há esperança”, diz ele com um suspiro, assoprando o chá. “Meu país está doente. A guerra entre os clãs, o reino de terror dos piratas, os radicais islâmicos – e agora a fome. Não tem fim.”
Uma prisão para a eternidade
Dadaab é uma prisão para a eternidade, um lar empobrecido para os membros dos cinco clãs governantes da Somália, que estão se combatendo em casa; um refúgio para lavradores empobrecidos e muçulmanos aterrorizados com os radicais e para os que há muito se consideram quenianos.
Todos os dias os recém-chegados se apresentam nos escritórios de admissão. Eles pressionam os dedos nas almofadas de tinta, esperam a foto de passaporte e imploram pelos cartões de ração de alimentos que permitem que tenham uma refeição quente por dia. Alguns pedem para ser aceitos em uma das enfermarias, onde em geral vão parar os casos mais desesperados, as crianças desnutridas com olheiras profundas e ossos frágeis feito vidro.
Atualmente, há 36 crianças com menos de três anos respirando com ajuda no campo de Ifo, que fica no meio dos outros dois. De acordo com um médico queniano que trabalha para a organização alemã de desenvolvimento GIZ, é possível que apenas dois terços sobrevivam à próxima noite.
Os moradores antigos que há muito vivem nos barracos e casas de pedra vermelha divididas em blocos numerados, andam pelos mercados e ruas estreitas com megafones, pedindo ajuda para os recém-chegados e coletando roupas, sapatos e mosquiteiros. Mas esta demonstração de solidariedade engana. Logo, os novatos começarão a brigar com os somalis mais estabelecidos por pasto para os animais, trabalho e a boa vontade das organizações de ajuda. A vida é dura no Hotel Somália no Leste do Quênia, um reflexo das condições no
Chifre da África.
“Corra, se tiver coragem!”
Deka, uma garota de 17 anos e rosto redondo, não consegue esquecer a Somália antiga e doente.
Órfã, chegou ao campo a pé, tão exausta que mal podia engatinhar no final da viagem. Ela chegou há quatro meses. Nos últimos dois, as assistentes quenianas vêm tentando convencê-la a não se ver como vítima, mas como mãe que tem que aprender a amar a criança que cresce em sua barriga.
Com um “chador” cinza, ela está sentada em um quintal fechado de uma organização de ajuda para crianças que cruzaram a fronteira para o Quênia sozinhas e sem proteção. Moscas pousam no rosto dela, mas ela não se esforça para tirá-las. Ela ainda está impactada com a memória da noite que foi atacada.
Talvez fossem soldados, ou membros da milícia
al-Shabab, ou de uma gangue de criminosos.
Deka não tem certeza, porque estava muito escuro. “Eram seis homens”, diz ela. “Estavam armados.”
O estupro durou metade da noite. Os homens se revezavam, e batiam e repreendiam a menina, gritando: “Corra, se tiver coragem!”
Quando acabaram de estuprá-la, deixaram-na nua ao lado da estrada. Dali, ela chegou até a casa de uma tia que já estava morando em Dadaab. Quando sua menstruação não veio após quatro meses, a tia levou-a à enfermaria do campo. O momento em que o médico contou que ela estava grávida foi o pior de sua vida, diz
Deka, pior até que a noite largada ao lado da estrada. A tia expulsou-a do barraco.
Outro pária
Em poucos dias, quando os primeiros refugiados somalis forem salvos pela pasta de amendoim do Ocidente, quando o mundo tiver voltado sua atenção para a crise do euro e os problemas da dívida dos EUA,
Deka dará à luz a seu filho – seu filho bastardo, um pária em um campo cheio deles.
Ela espera que seja menina para chamá-la de Ian. É um nome somali antigo, diz ela, e gosta do som.
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Maior campo de refugiados do mundo pode ser um lugar de esperança - Instituto Humanitas Unisinos - IHU