25 Julho 2011
Aquele ato mecânico e repetido de puxar o gatilho faz com que esse assassino se pareça ao mecanismo de uma monstruosa linha de montagem. Naturalmente, ele também é um homem cuja humanidade não se esgota nos seus crimes, homem que deve ser perseguido, mas também protegido segundo a lei igual para todos, mesmo para os assassinos hediondos.
A opinião é do escritor italiano Claudio Magris, ex-senador da Itália, ex-professor das universidade de Turim e deTrieste, e prêmio Príncipe de Astúrias de Letras de 2004. O artigo foi publicado no jornal Corriere della Sera, 25-07-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Enquanto não surgirem provas incontroversas de uma conspiração terrorista – por enquanto altamente improváveis –, o inaudito massacre norueguês deve ser considerado como um fato das páginas policiais, embora de proporções imensas. Certamente, existem no mundo muitas e antitéticas associações terroristas capazes de qualquer atrocidade, mas também existe o crime – ainda mais misterioso e mais inquietante justamente porque muitas vezes é aparentemente desmotivado – que nasce, se organiza e se consuma na mente de um único indivíduo, para além de qualquer projeto político, mesmo que delirante.
Como Pierluigi Battista escreveu no jornal Corriere, buscar sempre o complô (racional do seu modo, mesmo na sua perversidade), a explicação política e sociológica, um projeto coletivo específico, é um modo inconsciente de se tranquilizar, identificando uma ordem, embora abjeta; um modo de se abandonar a fantasias sobre tramas enigmáticas, fundamentalmente assustadoras, mas também involuntariamente gratificantes, como também é muitas vezes gratificante se deter nas vagas imagens do pesadelo, do horror e do medo.
Interpretar ou tentar interpretar sempre dá conforto, quando não até uma complacência arrogante. Diante de tantos crimes ainda sem solução, os pareceres sobre as suas motivações mais ou menos escondidas parecem mais importantes (e ocupam mais espaço nos jornais) do que as investigações, que, ao contrário, são, naquele momento, a primeira e talvez a única coisa que importa.
Certamente, como dizia um slogan repetido e muitas vezes alardeado, mas verdadeiro, de 1968, "tudo é político". Ninguém chega da lua. Cada um é tecido pelo mundo em que vive, seja ele um solitário misantropo, ou o mais sociável dos homens; vive no mundo e pelo menos parcialmente o absorve, mistura ao seu próprio DNA aquilo que penetra consciente ou inconscientemente nele da realidade externa. Não há ideia, paixão, hábito, desejo, medo, comportamento que seja unicamente nosso.
É verdade que, como diziam os filósofos escolásticos, o indivíduo é inefável, ou pelo menos há em cada um algo de inefável, mas essa sombra móvel e fugaz do nosso coração é tecida de socialidade.
Dito isso, resta uma clara diferença entre o gesto individual de uma pessoa e um projeto, coletivo mesmo que posto em ação individualmente, de uma organização. O homicida norueguês parece comparável, com alta probabilidade, aos Landru ou a Jack Estripador – eles também, como todos, filhos do seu tempo – em vez dos assassinos do Italicus ou da Piazza Fontana. Seria infame usá-lo para denegrir um ou outro movimento político. O seu gesto atroz mostra a contínua latência do mal, a sua capacidade de se desencadear em qualquer momento inesperado. Revela a nossa convivência cotidiana, lado a lado, com o mal, sempre à espreita e às vezes assustadoramente em ação.
Esse massacre de seres humanos mostra também a infinita banalidade e idiotice do mal e da violência, que tantas vezes nos são mostradas quase envoltas em sedução, expressões de sabe-se lá quais verdades inferiores mas profundas. A faca de Jack Estripador parece ter fascinado muitas pessoas, assim como a espada de um anjo diabólico, embora certamente não os ventres esquartejados e os sofrimentos das mulheres que ele matou, as únicas e verdadeiras protagonistas dessa trágica história, em que ele mesmo é um coadjuvante miserável. É uma vergonha, mesmo que inevitável, memorizar o nome do assassino norueguês e não os das suas vítimas.
Aquele ato mecânico e repetido de puxar o gatilho faz com que esse assassino se pareça ao mecanismo de uma monstruosa linha de montagem. Naturalmente, ele também é um homem cuja humanidade não se esgota nos seus crimes, homem que deve ser perseguido, mas também protegido segundo a lei igual para todos, mesmo para os assassinos hediondos; um homem que provavelmente terá tido as suas obsessões, os seus sofrimentos, os seus medos. Pode-se e até se deve ter respeito – para além da qualificação jurídica dos seus atos e a pena por eles exigida – por ele, mas não – segundo a banal retórica do mal – porque ele é um assassino, mas sim apesar de ele ser um assassino.
O seu crime é a coisa não só mais horrível, mas também mais estúpida, mais mecânica, mais obtusa da sua vida. O assassino de mais de 90 pessoas parece ter se definido como "um fundamentalista cristão", termo desprovido de qualquer sentido. Muitas vezes, dentre outras coisas, identifica-se erroneamente o fundamentalismo com o integralismo, especialmente religioso, de uma ou de outra fé (hoje sobretudo a islâmica) e, em geral, com uma forma particularmente intolerante de tradicionalismo religioso.
O fundamentalismo tem pouco ou nada a ver com a tradição, mesmo com a mais zelosamente guardiã da observância e da imobilidade de um credo. O fundamentalismo não é um fenômeno tradicional, enraizado no passado, mas é um fenômeno tipicamente moderno, característico das sociedades de massa e da globalização, assim como – para dar um exemplo – o fascismo é um fenômeno totalitário moderno radicalmente diferente dos autoritarismos do passado.
Aquele dedo mecanicamente homicida não deveria induzir a reflexões sobre as sociedades ricas e tranquilas como a norueguesa ou a dissertações do tipo. Outras formas do mal – estas sim políticas, sociais, coletivas – vêm não só de sociedades atrasadas e bárbaras, mas também de sociedades abertas e civis, consideradas como modelos de democracia, como por exemplo a Holanda e alguns países escandinavos, em que avançam agressivos movimentos xenófobos em nítido contraste com a tradição dos seus países.
Se a xenofobia é mais forte na Holanda do que na Espanha, isso se deve talvez ao fato de que a cultura desta última, como a de outros países, conservou mais a fundo aquele sentido sagrado da vida que distingue fortemente os muitos, muitíssimos valores que devem ser postos em discussão por aqueles dois ou três valores essenciais (por exemplo, a igualdade de todos os cidadãos, independentemente da filiação sexual, étnica, religiosa ou de outro tipo) que devemos considerar como absolutos, não mais discutíveis e não mais negociáveis.
Muito, quase tudo, deve ser opcional, mas não tudo. Quando "tudo é possível", como escrevia Dostoiévski com horror, o mundo se torna horrível. Mas não se pode fazer disso uma culpa ao assassino norueguês, nem fundamentalista, nem cristão; é suficiente acusá-lo de mais de 90 homicídios.
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A infinita idiotice do mal - Instituto Humanitas Unisinos - IHU