28 Junho 2011
"A ortodoxia foi derrotada intelectualmente", defende Bernardo Kliksberg ao se referir à renovação de ideias neoliberais na América Latina. De passagem pela Argentina, em sua residência atual em Nova York, o prestigioso economista destacado por seus trabalhos sobre pobreza e desigualdade na região, recebeu o Página/12. Elogiou os "programas que chegam ao universo dos pobres, a partir de um enfoque de direito. Não é uma assistência, mas trata-se de reintegrar o direito violado", afirmou. Kliksberg apresentou um novo livro, Escândalos éticos, no qual analisa as principais contradições deixadas pela crise financeira internacional. "A ética não é uma concessão gratuita dos empresários, mas responde a uma demanda histórica", assegurou. Sobre o tratamento da mídia da questão da insegurança, disse que "o nível de debate é de qualidade muito baixa".
A entrevista é de Cristian Carrillo e está publicada no jornal argentino Página/12, 28-06-2011. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
Você costuma criticar países como os Estados Unidos por fazerem mais do mesmo e esperar resultados diferentes. Considera que a América Latina, e em especial a Argentina, faz mais do mesmo?
Na América do Sul há motivos para ter esperança, porque são modelos heterodoxos que mostram que outra economia é possível, e com resultados positivos que lhes valeram a revalorização eleitoral permanente de suas populações. O Brasil tirou 30 milhões de pessoas da pobreza, o Chile criou creches para as mulheres trabalhadoras, o Uruguai disponibiliza o acesso à internet para os estudantes primários e secundários, e na Argentina há a Renda Universal por Filho e o programa de proteção às mulheres grávidas. São medidas que chegam ao universo dos pobres, e a partir de um enfoque de direito. Não é uma assistência, mas trata-se de reintegrar o direito violado.
Para alguns, voltar à ortodoxia é a única alternativa possível.
A ortodoxia foi derrotada intelectualmente. O fundamentalismo caiu em Wall Street. A ortodoxia é sinônimo de má economia; onde se implanta, destrói. Destrói no curto prazo e no médio, e concentra a economia em poucos beneficiados. Acontece que perdeu intelectualmente, mas não sua posição de poder econômico. É assim que estes que se beneficiam buscam restrições, como falar de desajustes passageiros, para manter essas ideias.
Uma preocupação que se coloca a partir da mídia é a delinquência, como algo divorciado da exclusão. É possível pensar uma sem a outra?
As pessoas na Argentina, como em boa parte da América Latina, estão desorientadas. O nível do debate é de qualidade muito baixa. A delinquência está crescendo e as pessoas têm direito a se queixar e a reclamar segurança. Mas o debate não se baseia em suas causas profundas, mas em mostrar episódios de violência extrema e ver se os infratores são presos ou se aumentam as penas. Uma coisa é o crime organizado. Sobre este deve cair todo o peso da lei. O resto são meninos com delitos menores. Neste caso, a variável ligada à sua diminuição é a igualdade de oportunidades. Não há relação entre prender os jovens pobres e a diminuição da delinquência.
Outro debate que a ortodoxia se nega a fazer é a redistribuição do ingresso.
Um dos escândalos éticos na América Latina é que a região produz alimentos para três vezes sua população, sendo o maior produtor per capita de alimentos do mundo, e 16% de suas crianças estão desnutridas. Não é um problema de produção de alimentos, mas de acesso, o que vem mediado pela distribuição de ingressos e a possibilidade de comprar alimentos e pelos circuitos especulativos na comercialização dos alimentos.
O senhor foi designado para assessorar a Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre os determinantes sociais da saúde. Em que consistirá o seu papel?
O tema da saúde sempre foi tratado como sendo do consultório em diante: as pessoas doentes chegam aos consultórios e a partir dali se organiza o sistema para atendê-las. Estamos mudando de paradigma. O novo se baseia nos determinantes sociais da saúde, onde as pessoas chegam a um consultório como produto de um histórico prévio que não tem a ver com o sistema de saúde, mas com o sistema econômico-social, que produz a doença.
Quais são esses determinantes sociais?
A água potável é um determinante fundamental e básico. Há hoje dois milhões de mortes de crianças por ingestão de água contaminada. A metade dos leitos hospitalares em todo o mundo está sendo ocupada por pessoas que adoecem por esta causa. Outro é a instalação sanitária, assim como também a desnutrição e as favelas.
É um problema de recursos ou de decisão política?
Os economistas ortodoxos o colocam como um tema de recursos e postergável. Consideram que primeiro devem aumentar as taxas importantes e depois haverá possibilidades orçamentárias para melhorar as redes vitais. Discordo há 30 anos dessa maneira de ver as coisas. É um tema basicamente de prioridades. Por mais limitados que sejam os recursos, sempre há prioridades. E não é postergável. Só se pode postergar deixando mortos pelo caminho.
Em seu livro fala da ética empresarial.
A ética do ponto de vista dos neoliberais ortodoxos é uma perturbação para o modelo econômico que eles aplicam. E, a partir dessa ótica é verdade, como se discute eticamente um pacote de ajustes? Não resiste à análise mais elementar. Contudo, não se viu em todo o mundo um lugar onde essas receitas curem uma economia. Favorece apenas os rentistas.
Mas, sem um Estado que as controle parece impossível.
A ética não é uma concessão gratuita dos empresários, mas responde a uma demanda histórica. A responsabilidade social empresarial aparece como resposta a uma demanda dos principais atores. A sociedade civil hoje pede uma qualidade de mundo melhor. A possibilidade de que o Estado regule a responsabilidade social empresarial não está madura na sociedade latino-americana. Ela não está madura para discutir a distribuição de benefícios, muito menos para isto. É preciso ganhar outras lutas anteriores.
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"A ortodoxia foi derrotada’’ Entrevista com Bernardo Kliksberg - Instituto Humanitas Unisinos - IHU