26 Junho 2011
"E o pulso ainda pulsa...". O refrão entoado pelo cantor, Arnaldo Antunes, na música "O Pulso", cabe, na medida, para explicar o atual momento nos bastidores do Coletivo Fora Micarla. Nove dias depois da desocupação da Câmara Municipal de Natal, os estudantes, garantem, têm fôlego para muito mais. As manifestações, na rede mundial de computadores, e nas ruas, continua firme.
A reportagem é de Margareth Grilo e publicada pela Tribuna do Norte, 26-06-2011.
"Até que tudo cesse, nós não cessaremos", afirma Marcos Aurélio Garcia de Lemos, 28 anos, da Comissão de Imprensa do Coletivo. Marcos Aurélio faz militância política e social desde 1996. Ingressou no movimento estudantil aos 13 anos. "Esse foi o momento mais belo, mais marcante na luta de classes nesses 15 anos que me dedico à militância. Em onze dias o movimento ganhou consistência política e organicidade única".
O movimento que parou a sede do Poder Legislativo por dez dias reúne estudantes do ensino médio, universitários, sindicalistas, trabalhadores, militantes partidários e integrantes de segmentos organizados da sociedade civil. A maioria, jovens entre 17 e 35 anos, familiarizados com a conectividade, com o compartilhamento de informações e com os sites de relacionamento na internet. São adeptos do Twitter, do Facebook, do Orkut e de tantas outras redes.
Como muitos, em outros continentes e mesmo no Brasil, usaram essa "existência virtual" não apenas para manifestar e potencializar suas insatisfações, mas para mobilizar e fazer o movimento transbordar para as ruas. "O negócio era extravasar, ir para as ruas, mostrar que é preciso mudar a cultura política, essa representatividade falha. Não adianta ficar só criticando no Twitter", afirmou a concluinte do curso de Direito, Natália Bastos Benavides, 23 anos, integrante da comissão jurídica do Coletivo.
Em entrevista na manhã da quinta-feira, 23, feriado de Corpus Christi, Natália Benevides, Hélio Miguel Santos Bezerra, 25 anos, e Natália de Sena Alves, 23 anos, lembraram que, aqui, a mobilização social dos jovens teve como ponto de partida a luta pelo Passe Livre, em 2006. De lá para cá, o ativismo nas redes de relacionamento na internet se fortaleceu.
Em dezembro de 2010, foram as manifestações contra o aumento da tarifa de ônibus e este ano, em abril contra os preços dos combustíveis. Nos dois casos, os protestos migraram das redes sociais digitais para as ruas. "A internet foi uma ferramenta importante para mobilizar, principalmente a classe média, porque não é apenas quem usa a escola pública; o posto de saúde que está descontente", disse Natália Sena.
Nas últimas semanas, o movimento Fora Micarla ganhou destaque nacional e chegou a ser denominado pela revista Carta Capital, em reportagem sobre o assunto, como "ciberativismo". Os jovens que integram o Coletivo Fora Micarla preferem outra definição: "Ativismo Ciberinterativo". Na noite de quinta, 23, as manifestações no Rio Grande do Norte foram destacadas no programa "Entre Aspas", da Globo News.
Gil Giardelli, professor de pós-graduação na disciplina de Redes Sociais, da Escola Superior de Propaganda e Marketing e Marcos Nobre, professor de Filosofia da Unicamp falaram sobre o ressurgimento da mobilização de jovens e destacaram as mídias sociais como "a era das grandes verdades", que rompe um cinturão de autodefesa do sistema político.
Na entrevista, citaram a mobilização dos jovens no Rio Grande do Norte e no Espírito Santo, como um grande processo na construção de uma sociedade em rede. A exemplo do que acontece na Espanha, onde mais de 60 mil pessoas foram às ruas mobilizadas pelas redes sociais. "No Rio Grande do Norte, eles criaram, nas redes sociais, uma coordenação nova. Disseram olha está todo mundo reclamando, um de saúde, outro de educação, outro de transporte. Vamos nos juntar. Isso é um grande processo", destacou Giardelli.
Os manifestantes do Fora Micarla tem consciência da dimensão do ativismo que estão fazendo. "A interação com a população foi muito grande. O movimento ganhou vida orgânica. Até porque nossa luta é toda na vida real, no cotidiano. Nós somos ativistas das lutas reais da rua", argumenta Marcos Aurélio.
A grande diferença, em relação a momentos anteriores, completa, é que "agora, sabemos usar novas ferramentas de comunicação para nos mantermos mais conectados e mais interativos". Para Giardelli e Nobre os jovens estão dizendo o que todo mundo já sabia. "Eles estão falando assim: nossos sonhos não cabem mais em suas urnas", resumiu Giardelli.
Diversidade e pluralidade são a marca do grupo
Quem acompanhou de perto os dez dias de ocupação da Câmara Municipal percebeu que a diversidade é a marca do Coletivo Fora Micarla. Reúne do jovem ciclista e universitário, de 19 anos, Renato Galdino, a trabalhadores, como o guia de turismo, Rinaldo Sampaio de Andrade, 32 anos. Ele começou a militância sindical aos 14 anos, numa época - destacou - em que para mobilizar precisava gastar "muito gogó e panfleto".
Em 18 anos de militância sindical, disse que nunca viveu um momento tão marcante. "É bela essa ciberinteratividade com a população. Minha geração não tinha internet, facebook, twitter. Tinha que gastar o gogó mesmo", comentou Rinaldo. Depois de uma semana cansativa (a do acampamento), descansou. Dormiu a noite da sexta-feira e quase todo o dia do sábado, em casa. No dia seguinte, contou, já estava preparado para recomeçar. "Não tem mais como pensar a vida, sem o movimento. Ele está em primeiro plano. Agora, é arranjar mais força, mobilizar mais gente e expandir". Nesses dias, concilia o trabalho e as atividades do movimento. Na quarta-feira, 22, ele e outros manifestantes se envolveram em conflito com seguranças legislativos, inconformados com a limitação do acesso à Câmara.
Terminou com parte do rosto, próximo ao olho direito, machucado. Mas não desistiu. Permaneceu em frente à Câmara até final da sessão e comemorou a leitura do requerimento de instalação da CEI dos Contratos. Rinaldo classifica o momento como "fantástico". "Fico maravilhado, vendo realmente que um outro mundo é possível. Que podemos questionar e impor outro ritmo".
A horizontalidade, a pluralidade e autogestão são fundamentos que, segundo ele, fazem toda a diferença. "É uma coletividade rica pelas diferentes visões políticas e de vida. E é muito legal você vê dez comissões funcionando; vê companheirismo e unidade, mesmo na diferença; vê que a população está feliz por a gente estar representando simbolicamente a insatisfação de todos", resumiu.
Comissão jurídica está articulada
A Comissão Jurídica do Coletivo Fora Micarla arrancou do Poder Judiciário algo que poucos acreditavam: o habeas corpus coletivo preventivo, mais tarde derrubado pelo Pleno de Desembargadores do Tribunal de Justiça, mas, no final do mesmo dia, mantido pelo Superior Tribunal de Justiça. O trabalho foi desenvolvido em conjunto por Natália Benevides, Hélio Miguel e Natália de Sena. Já o recurso ao STJ, foi assinado pelo advogado Daniel Pessoa.
Nesta semana, os alunos retomaram a rotina das aulas, mas já com uma nova demanda na bagagem: acompanhar e fiscalizar os movimentos da CEI dos Contratos. "Nosso trabalho e o de todo mundo do Coletivo não parou e não vai parar". Outros estudantes de Direito devem entrar na comissão. "Muitos estão querendo participar mais de perto do Coletivo. Vamos poder fazer um revezamento e acompanhar mais atentamente tudo. É muito bom vê que inspiramos essa participação", disse Hélio Miguel, que agora retoma os projetos finais do curso.
Embora tenham alcançado vitórias, uma no campo político e outra no campo institucional, a experiência para os estudantes de Direito gerou decepção com o judiciário do RN. "Mostrou que o Pleno é uma aula de como o Direito não deve ser", sintetizam os três concluintes de Direito. "Toda aquela visão romântica do judiciário caiu por terra. Em parte, a confiança só foi restabelecida com a decisão de STJ", disse Hélio Miguel.
Natália Sena completou: "tanto a manobra da presidência da Câmara que extinguiu a CEI dos Aluguéis, quanto a decisão do juiz de suspender o habeas corpus no domingo foi uma lição que valeu para aprendermos a ter estratégias, a nos antecipar. Hoje, estamos cientes de que não devemos confiar cegamente. É para mudar essa cultura, que vê primeiros os interesses privados, antes do público, que vamos lutar".
Os três têm uma certeza: para eles, o exercício do Direito, depois dessa empreitada, será "dez mil vezes melhor". Natália Benevides acredita que a indignação e a esperança darão gás ao movimento. "Como dizia Paulo Freire a `justa raiva` é que move o cidadão e acredito que a possibilidade real de sermos sujeito de uma mudança e isso é que dará gás, dará força para voltar às ruas, quantas vezes forem necessárias. É isso que dá força a muitos estudantes em fim de semestre de colocarem a luta como prioridade".
Natália Sena resumiu o que pensa; "há uma unanimidade negativa latente em todas as classes. Poder compartilhar essa indignação e ir às ruas pedir mudanças, foi muito bom. Nunca pensei que um mês antes de me formar ia viver uma experiência como essa. É um momento histórico e não podia deixar passar. Tinha mesmo que sacrificar vida pessoal e acadêmica".
No caso deles, o projeto Lições de Cidadania, do curso de Direito, os levou a ter contato com a comunidade do Leningrado, onde puderem identificar os problemas estruturais, de saúde e educação. "Entramos no movimento com propriedade de conhecimento dos problemas da cidade", comentou Hélio Miguel.
"Senti medo da polícia, de levar pancada"
Alguns momentos no acampamento montado o pátio da Câmara foram tensos. Que o diga Renato Galdino, 19 anos. "Senti medo da polícia, de levar pancada. Todo dia era dia da polícia ir nos retirar. Mas não podia deixar que o medo me dominasse. Nossa mobilização era pacífica. E a gente precisava resistir e produzir".
Na manhã da última quarta-feira, 22, dia de instalação da CEI dos Contratos, ele fazia um trabalho em grupo, no setor I, do Campus. À tarde, tinha compromisso: acompanhar a sessão na Câmara. E foi um dos primeiros a chegar. Depois, participou da caminhada até a sede da prefeitura e, à noite, já estava sentado no chão da praça, na plenária dos manifestantes.
Ele foi um dos que enfrentou a família. "Minha mãe foi na Câmara, me viu deitado num canto de parede. Ela disse que eu tinha abandonado a família; que não concorda com aquela ocupação. Pegou minha mochila e foi embora", contou. Por um momento, disse, pensou em ir para casa, mas os companheiros deram força e ele resolveu ir atrás da mãe e conversar. "Foi mais de uma hora esclarecendo o movimento. Depois, ela entendeu, me abraçou e disse para eu ficar com Deus". Hoje, a mãe de Renato já está tranqüila. Ele voltou aos estudos. Faz o 3º período de Serviço Social.
Novas armas para chamar a atenção
Foi apoiada em pernas-de-pau de aproximadamente um metro, que a universitária Louise Caroline Gomes Branco, 22 anos, percorreu os 1.500 metros que separam a Praça Cívica da Câmara Municipal de Natal. A intervenção foi na quarta-feira, 22, às 15h20 e era mais uma das ações do Coletivo Fora Micarla. Louise estava ansiosa e animada para acompanhar a instalação da CEI dos Contratos. E não poderia ser de outra forma. A estudante do 7º período do curso de Ciências Sociais da UFRN participa das ações do Fora Micarla desde o primeiro ato, no dia 25 de maio. Esse ato reuniu centenas de estudantes no cruzamento das avenidas Salgado Filho e Bernardo Vieira. Depois, veio a segunda mobilização, no dia 09 de junho. Daí por diante, Louise se juntou aos que já estavam acampados no pátio do poder legislativo.
Permaneceu por lá até a sexta-feira, 17, quando foi firmado o acordo, garantindo a instalação da CEI. Na quarta, 22, ele chegou à Câmara, mas não conseguiu entrar. As galerias já estavam lotadas. Permaneceu na frente do prédio, portando nas costas uma grande borboleta colorida, fazendo barulho e protestando contra o governo municipal. Louise disse que comemora muito o fato dessa mobilização está acontecendo em Natal. "É um momento muito engrandecedor, novidade para um estado como o nosso, sem visibilidade". Num primeiro momento, antes das mobilizações de rua, Louise compartilhava no facebook sua insatisfação com a gestão municipal. Ela não tem filiação partidária. Declara-se "meio arquinista". Como muitos, abriu mão da família e de casa para se dedicar às mobilizações. "Minha rotina mudou toda. Abri mão de muita coisa, até faltei algumas aulas, mas isso faz parte da vida de quem é militante".
Antes da ocupação da Câmara, ela saia de casa às 7h. Ia pra faculdade e ficava por lá até meio-dia. Por um período chegou a trabalhar nos semáforos, na parte da tarde, fazendo malabares. Mas as atividades de rua estavam atrapalhando os estudos e ela decidiu parar e ficar em casa para estudar. Nas últimas semanas, se dedica, 24 horas, ao Coletivo Fora Micarla. "Após dez dias de acampamento, o cansaço bate, é normal, mas não significa que vamos abrandar", avisa a estudante.
Bate-papo
José Antônio Spinelli, Sociólogo
Como o senhor avalia o momento de politização dos jovens e uso das redes sociais na internet?
As mobilizações juvenis têm uma grande capacidade de contágio e geralmente antecipam movimentos que, depois, se espraiam para o conjunto da sociedade. E as redes sociais deram aos movimentos uma maior capilaridade, um poder de aglutinação sem precedentes, uma força mobilizadora potente e um nível de liberdade que escapa ao controle de qualquer um.
Esse fenômeno é uma tendência ou moda passageira?
Minha esperança é que seja uma tendência e não simplesmente uma moda. Pensando objetivamente, parece mesmo tratar-se de uma tendência que veio para ficar, haja visto o caráter mundial do fenômeno e a possibilidade muito concreta de a internet se massificar, incentivando a formação e a extensão das redes sociais.
O movimento #Fora Micarla é um exemplo da força das redes sociais na internet?
Com certeza. Foi a partir das redes que o movimento nasceu, se expandiu, cresceu, foi às ruas e ganhou apoio, simpatia e adesão do grosso da população, chamando a atenção da mídia tradicional.
Os jovens se sentem mais estimulados ao mobilizar por meio das mídias virtuais?
Sim, porque se trata de um meio dinâmico, instantâneo, ágil, flexível.
Do ponto de vista de comportamento, quais as mudanças que já se configuram e como lidar com elas?
Há muita controvérsia a esse respeito e os estudos de caráter científico sobre as redes ainda estão em sua fase inicial. Algo que se pode afirmar é que as redes sociais na internet [como qualquer rede social] reforçam os laços identitários entre seus participantes. Nas redes sociais na internet, a comunicação é interativa, favorecendo uma sociabilidade dialógica e o processo de construção de subjetividades que se enriquecem no processo de interreconhecimento.
Ao disseminar informações em rede, o jovem sente mais poder e mais coragem?
Sem dúvida. Eles podem se dar conta de que atuando em conjunto podem mudar a realidade, podem transformar pensamentos em forças sociais criadoras ou destrutivas.
Que diferença o senhor vê entre essa mobilização atual e outras do passado, como o Fora Collor?
As esperanças eram as mesmas: transparência na política, participação nas decisões que afetam a nossa vida, liberdade, democracia. Os meios é que são diferentes. Na época do movimento contra o ex-presidente Collor, assim como no movimento Diretas-Já, a mídia tradicional aderiu tardiamente e a comunicação entre os participantes do movimento se fazia na base do boca a boca. Hoje, com a internet, se dispõe de um meio instantâneo, que permite a comunicação imediata, em tempo real e relativamente livre da intervenção das autoridades. Mas movimento nas ruas, como passeatas e ocupações de espaços públicos, continua e continuará sendo um momento de celebração coletiva, de comunhão democrática.
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"Fora Micarla". Movimento nasceu e cresceu nas redes sociais - Instituto Humanitas Unisinos - IHU