20 Junho 2011
O tráfico de lixo eletrônico sujo para países pobres cresce para escamotear a reciclagem. A Espanha reteve contêineres com resíduos com destino ao Paquistão e à China.
A reportagem é de Rafael Méndez e está publicada no jornal espanhol El País, 19-06-2011. A tradução é do Cepat.
No dia 24 de março de 2009, o cargueiro King Basil, com bandeira da Malta, sai do Porto de Vigo. Zarpa às 8h20 e quatro dias depois chega a Algeciras. São 10h25 de 28 de março quando, segundo o registro do porto, descarrega o contêiner POCU4012090. Sua carga: 10.380 quilos de resíduos, cerca de 2.000 compressores de geladeiras velhas, ainda com óleo contaminante e gás com alto poder de aquecimento. Segundo o Ministério do Meio Ambiente, a origem era a fábrica da Cespa, filial de meio ambiente da Ferrovial, na Galícia. E o destino, Port Kasim, o segundo maior porto do Paquistão, para serem desmontados para recuperar o metal, operação mais rentável que extrair previamente o gás e o óleo e tratá-los separadamente, algo obrigatório na Europa.
Na imagem da Cespa predomina o verde. A filial da Ferrovial se dedica à “prestação de serviços ambientais e à gestão e tratamento de resíduos”. Em Cerceda (A Coruña) tem uma planta de reciclagem de resíduos eletrônicos. Por lei, desde 2005, qualquer aparelho que tenha pilha ou tomada deve ser tratado: eliminando os materiais perigosos (gases, óleos, metais pesados...) para reutilizar o metal (ferro, aço, cobre...).
A Ferrovial tenta se desvencilhar do caso e não se explica como os compressores acabaram ali sem serem descontaminados: “O contêiner é propriedade de uma companhia paquistanesa que reutiliza os compressores das geladeiras para repará-los e vendê-los a particulares em seu país de origem, para encher pneus de bicicletas e ciclomotores domésticos. A venda dos compressores a esta companhia foi realizada com todas as autorizações pertinentes e como estando já descontaminados (sem gases nem óleos)”. A empresa afirma que não sabe como o óleo dos compressores apareceu e que não é responsabilidade sua.
O portal da empresa que comprou a carga, a paquistanesa Schion International, é o contrário da Cespa. “O lixo é um trabalho sujo, mas alguém tem que fazê-lo”, é seu lema. A cor que predomina é o marrom. Assim são os resíduos: verdes na Europa e marrons nos países em desenvolvimento.
Noaman Alam, diretor da empresa, mostra como prova um correio eletrônico de um responsável da Cespa em que explica que estão fazendo todo o possível para recuperar o contêiner e que foi o Governo que os impediu de exportá-lo por estar contaminado. “Pagamos 10.000 euros pelos compressores e estão no Porto de Algeciras. Que país é esse?”, se queixa Alam.
É um dos poucos casos em que a aduana espanhola deteve um contêiner de resíduos tóxicos com destino a países em desenvolvimento, prática crescente, segundo admite o Governo, o setor e a Promotoria de Meio Ambiente, que está com uma grande investigação aberta contra uma fraude massiva neste tipo de reciclagem.
O contêiner foi retido durante uma operação da Organização Mundial de Aduanas em 65 países. Allen Bruford, coordenador do projeto, explica por telefone: “O tráfico de resíduos para países em desenvolvimento é um fenômeno global e acreditamos que crescente. A Holanda e a Bélgica são os países que mais detectam, mas porque têm equipes especializadas”.
Na operação na Espanha colaboraram cinco portos: Vigo, Algeciras, Valencia, Barcelona e Bilbao, e em apenas alguns dias apareceu um contêiner. O que acontece no resto do ano? Por um lado, são pouco procurados e, por outro, muitas vezes estes carregamentos de lixo (computadores ou geladeiras velhas) são camuflados como aparelhos para a venda de segunda mão. Em dezembro de 2010, em Valencia, foi retido um contêiner com 1.050 monitores de televisão com destino à China, segundo fontes conhecedoras da operação. Isso é tudo.
Aduanas, do Ministério da Fazenda, admite que “nem sempre a linha de separação” entre resíduos e aparelhos de segunda mão “é clara”.
Que há mais exportações, ninguém duvida, porque os números não fecham. Em 2009, foram colocadas no mercado espanhol 702.000 toneladas de produtos eletrônicos e elétricos, mas apenas 124.987 (17%) foram tratados. Nem tudo o que é vendido em um ano é reciclado nesse mesmo exercício (os produtos duram vários anos). Contudo, a grande diferença entre o reciclado e o vendido dá a ideia de que algo está acontecendo. Muitas geladeiras e televisores acabam em sucateiros ilegais, há roubos nos pontos limpos dos Ajuntamentos... Sim, mas mesmo assim alguma coisa deve estar saindo do país.
Quatro responsáveis por plantas de tratamento de resíduos contam que recebem periodicamente telefonemas de empresas do Marrocos, China, Índia, Gana, Gâmbia... para comprar o lixo. Ramón Altadill, responsável pela Electrorecycling, uma planta de Barcelona, explica que no estrangeiro há intermediários que se interessam pela compra dos resíduos, e lembra um caso ilustrativo: “Telefonaram porque os salesianos haviam recebido como doação para a Bolívia um contêiner com material informático. Quando vimos eram caixas registradoras velhas, leitores de código de barra... quase tudo sem serventia. Tinha valor como lixo, mas na Bolívia só serviria para contaminar. Os desmontamos aqui”. Outras doações, sim, chegaram ao seu destino.
“Uma vergonha para a Europa”
A secretária de Estado para a Mudança Climática, Teresa Ribera, admite que há um problema na reciclagem de produtos eletrônicos: “Uma das maiores vergonhas da Europa é ver como o lixo eletrônico aparece desmontado ou abandonado nas zonas mais pobres do mundo. Isso gera problemas de saúde e de meio ambiente”. Ribera aceita que há “uma margem de melhora notabilíssima na reciclagem. É patético que em Gana haja cemitérios de lixo eletrônico. Não sei se a origem é a Espanha, a Holanda ou a França. O que está claro é que não saiu de Accra”.
Seguir o rastro destes materiais não é simples. Na UE circulam livremente, assim que o objeto interceptado em Roterdã pode ter vindo de qualquer parte. A Agência Europeia do Meio Ambiente admite que há material eletrônico que será vendido em países pobres, mas que em alguns casos o preço da mercadoria é tão baixo que só pode ser resíduo camuflado.
A Espanha ratificou um convênio internacional de 1992 que proíbe a exportação de resíduos perigosos, mas na prática não tinha instrumentos para cumprir o referido convênio. Até dezembro passado, o Código Penal não citava expressamente o tráfico de resíduos. A reforma de 2010 castiga com pena de até dois anos de prisão a quem, “desobedecendo as leis, transladar uma quantidade importante de resíduos”.
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Sua geladeira velha pode estar contaminando a África - Instituto Humanitas Unisinos - IHU