03 Junho 2011
"É um movimento que cativa os que dele se aproximam. Sim, cativa, porque se vê o frescor", afirma o jesuíta Llorenç Puig, que relata a sua experiência de "indignado" na Praça Catalunha.
O artigo foi publicado no sítio Cristianisme i Justicia, 03-06-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Estamos vivendo nestes dias nas nossas praças e ruas um fenômeno novo. Não é evidente como interpretá-lo. Suscita debate e sobretudo perplexidade. Gera incompreensão e ceticismo por um lado, e, por outro, grandes esperanças. Tive a oportunidade de acompanhar muito de perto esse movimento durante estes dias e gostaria de compartilhar algumas impressões e reflexões. Farei isso a partir de minha dupla condição de cientista, de modo que a análise será fenomenológica a partir das observações feitas, e de jesuíta, com o qual a ênfase estará sobretudo na dimensão profunda, humano-espiritual, do que está acontecendo aqui.
Um desenvolvimento mais rigoroso em nível sociológico ou político precisará de mais tempo, mais perspectiva. Encontramo-nos diante de brotos ainda tenros que não sabemos que tipo de árvore darão. Mas esses brotos delicados têm características promissoras.
1) Algumas impressões desse movimento
Esse é um movimento que cativa aos que dele se aproximam. Sim, cativa, porque se vê frescor ("Você pode dizer que sou sonhadora, mas não sou a única", escrevia uma garota em um cartaz). Percebe-se o desejo de sair do beco sem saída do consumismo (um dos cartazes dizia: "Menos materialismo e mais humanismo"). Percebe-se espírito, apalpa-se esperança, respira-se humanismo. Fala-se nas assembleias, uma e outra vez, que esse movimento trata de, em primeiro lugar, "ampliar a consciência e ganhar a dignidade". Nisso, parece-me que se segue a linha proposta pelo velho mas esperançoso Hessel, quando recorda que "a pior das atitudes é a indiferença, o dizer `eu não posso fazer nada, eu dou jeito`".
Mas também se percebe indignação na linha construtiva e de resistência pacífica mas vigorosa de Stéphane Hessel. Crítica a um sistema que se vê como fracassou e, mais ainda, um sistema que se vê que está fracassa periodicamente. Encontramo-nos diante de espírito crítico – enfim, poderíamos dizer – que protesta contra as graves desigualdades do nosso mundo.
Como bem diz Hessel, "a brecha entre os mais pobres e os mais ricos nunca foi tão grande, nem a busca de dinheiro tão apaixonada". É assim. Mas, frente a isso, formou-se uma multidão de concentrações de pessoas que querem continuar sonhando. E querem fazer isso a partir de uma postura não ingênua, mas participativa, e a partir de um espírito crítico informado e formado. É por isso que, simbolicamente, foi montada, poucas horas depois do despejo brutal da praça, uma biblioteca com livros de análise sobre a realidade econômica, social e política...
Uma das coisas que mais se destacam do que estamos vivendo é a importância e a insistência dada à não violência. Já desde o início, esse convite à resistência pacífica esteve muito presente. Mas depois do brutal ataque dos Mossos [polícia especial da Catalunha], que se pode ver no vídeo que reflete muito bem como foi injustificada a ação policial, intitulado Los Invencibles de la Plaza Cataluña, o clima que se respirava na praça nessa mesma tarde era impressionante: pessoas limpando o chão da praça, novamente pequenos grupos de diáloogo, cartazes que iam sendo postos tranquilamente, e à noite uma assembleia com maior participação ainda do que as anteriores, na qual o tom foi de uma mistura de viva reivindicação, maior indignação e tristeza pelo que foi vivido na manhã.
A brutalidade da intervenção policial deu um caráter épico a esse acampamento. Isso fez com que se vivesse um reforço das reivindicações e, ao mesmo tempo, uma reafirmação do desejo de continuar com a resistência pacífica, essa resistência cheia de ar humanizador e esperançoso. Acho que se viveu o que tão bem diz Hessel: "É preciso preferir a esperança, a esperança da não violência. É o caminho que devemos aprender a seguir".
Outra coisa que chama a atenção desse acampamento é a forte organização existente. De fato, é bastante rigoroso o tempo nos turnos de palavras; a organização com base em comissões de trabalho é a base de tudo; e estão muito organizados os serviços de saúde, de cozinha e de segurança.
Com efeito, se vigia para que, nas assembleias, os corredores de evacuação (marcados no chão com fita) estejam livres... e foram dadas instruções muito concretas em nível de higiene ("a partir de agora devemos limpar o chão com alvejante, os pratos de plástico não serão reutilizados, não comer maionese nem atum enlatado...") e se deixou de usar gás butano na cozinha diante do perigo que poderia ocasionar a coincidência com a celebração da vitória do Barcelona na Liga dos Campeões.
Além disso, dentro das regras que foram estabelecidas nas assembleias (como o uso de linguagem gestual para concordar, dizer não ou para indicar que o discurso está sendo longo), chama a atenção o cuidado de buscar consensos ou pelo menos decisões bem meditadas. Com efeito, para a tomada de decisões, pede-se primeiro que as propostas sejam feitas por meio das comissões. E estas, após discussão interna, apresentam-nas à assembleia. Mas a votação não é imediata, mas são deixadas 24 horas antes de prosseguir com ela, para que se possam pensar e aprofundar as coisas. Parece-me uma boa maneira de tentar que as coisas vão se elaborando de forma progressiva e coletiva...
Mas o curioso é que, quando em um turno de palavras uma pessoa disse que fazia falta uma liderança para levar a cabo os objetivos que vão sendo propostos, um líder que havia ajudado a canalizar as coisas, a assembleia, de forma unânime, imediata e clara, manifestou a sua desconformidade. Não se querem líderes, pessoas individuais que conduzam o processo. "Em todo o caso, um grupo", diziam alguns ao meu redor... E, efetivamente, tem ocorrido uma certa rotatividade nas pessoas que iam moderando as assembleias e organizando as coisas.
Portanto, creio que, efetivamente, a experiência desses acampamentos tem um ar novo, fresco, diria até uma tonalidade "espiritual" e desejosa de humanização e de justiça para todas as pessoas. Vê-se realmente uma grande "sede de justiça", essa da qual nos falam as bem-aventuranças...
2) Perguntas que vão surgindo
De todos os modos, entre dessas observações que mostram por que eu acho que o que se vive nas praças cativa e emociona, surge uma série de interrogações.
a) A primeira é: qual será a evolução dos acampamentos e, mais ainda, desse movimento? Acho que ninguém tem a resposta. Parece-me que estamos diante de um sistema instável, como os sistemas físicos quase caóticos, nos quais minúsculas variações de alguma das condições podem produzir mudanças substanciais em seu estado. Não se pode predizer se tudo isso vai se consolidar, se tomará consistência ou se vai se esvaziar como um balão pelo simples esgotamento dos que estão mais presentes, ou porque o ambiente começa a se degradar.
Com efeito, parece-me ver alguns sintomas de perda do frescor inicial, da degradação que se vê, por exemplo, no aumento de pessoas de fora dos acampamentos, bêbadas, que sobem no palco e realmente interferem no que se faz. Não é nada sério, mas me parece que é um sinal de degradação que pode tornar cada vez mais marginal o que acontece nas praças.
Também começam a haver algumas vozes autocríticas (sim, a autocrítica é importante para avançar), que falam sobre o perigo de que os acampamentos percam o seu vigor reivindicativo e propósito séria, e passem a ser mais "circos" do que verdadeiras ágoras que tão bem iriam no nosso momento atual. Como diz um documento que circulou pela praça, "que a ação e a construção seja a nossa prioridade!". Parece-me que assim deve ser, e é preciso cuidar desses brotos...
Em sentido contrário, outra interrogação que me surge ao viver e observar tudo isso é se se terá a paciência e a perseverança suficientes para continuar a lutar. Claro, a primeira coisa é que, ao não se verem êxitos imediato e ao se ver o tamanho do "Golias" ao qual se enfrenta tudo isso, as pessoas que vieram entusiasmadas para a praça comecem a cair de novo na resignação ou no "não há nada para fazer", em um "foi bonito enquanto durou".
Isso me parece que seria realmente lamentável. Mas a outra possibilidade a que a falta de paciência poderia levar é acreditar que o que está errado é o método da resistência pacífica , e que se caísse na tentação de começar ações violentas ou que fosse rompido o espírito de consenso e de estar todos/as juntos/as, como agora.
Acho que o difícil equilíbrio a ser conseguido é este: manter-se em uma linha que mantenha os princípios fundamentais de integração, criatividade e de resistência e luta pacíficas, mas, ao mesmo tempo, com o ímpeto e a energia que deem a suficiente perseverança para seguir em frente ao longo do tempo. Falta tempo, ir passo a passo, e com criatividade para isso. E isso não é simples.
b) Outro grande desafio que permanece é o de estender o que acontece nas praças para as diferentes camadas da nossa sociedade e os diversos lugares da nossa geografia. Deve realmente se estender para os diversos bairros e cidades do nosso país... e também da geografia mundial. Com efeito, esse movimento novo deve ser global, em certa medida, porque a realidade que se questiona é global. Por isso, é importante aproveitar as redes sociais, fazer chegar a outros lugares as inquietações e os desejos daqui, e compartilhar o que se vive com outros lugares do mundo.
Isso já passou, e sem dúvida deve seguir: Islândia, a Grécia, os países do norte da África estiveram muitos presentes no imaginário dos concentrados... e agora a Espanha também estará em outros lugares. Acho que, por aqui, está se produzindo um "alargamento da nossa consciência", no sentido de que, hoje em dia, com as redes sociais, o que acontece em qualquer canto do mundo, de algum modo cada vez mais real, "acontece também conosco".
E sobre a incidência que tudo isso pode ter em nosso país, gosto de lembrar uma frase que ouvi em um dos primeiros dias e que tuitei porque me pareceu importante: "A chave é que o movimento permeie todos os níveis; senão, será marginal". Acho que isso é muito verdadeiro e deve ser levado em conta...
c) Finalmente, gostaria de lembrar também a necessidade de que se consolidem âmbitos de reflexão séria sobre a realidade do nosso sistema sócio-econômico-político. Mas não somente uma reflexão muito profunda e técnica, mas sim com elementos transversais, que leva em conta essa dimensão social e "humanizadora" que hoje é pedida aos gritos, e que também seja criativa, que busque novos caminhos e novos paradigmas.
Digo isso porque uma das críticas e das interrogações que todo este movimento desperta é se ele será capaz de levar em conta a complexidade da realidade de hoje.
O perigo de considerar toda essa complexidade é que nos deixe novamente parados e perplexos perante a magnitude da realidade diante da qual nos enfrentamos. Como sair daí? Parece-me que a única solução é mudar o nosso paradigma, a nossa maneira de entender e de focar as coisas pela raiz. Penso que essa é à qual novidade que se aponta em todo esse movimento, a que me parece que se reivindica de alguma forma, e talvez a única saída possível para a nossa situação. Talvez, a partir desse novo paradigma, as coisas sejam na realidade, mais simples do que nos parece.
3) Conclusão
Como conclusão, diria que eu espero que isso não fique em uma bela recordação enterrada em muita resignação, nem no início de "algo que começou bem, onde muita gente se sentia incluída, mas que depois se sectarizou e se marginalizou"...
Oxalá esses acampamentos sigam um curso positivo, que possibilite as novidades que necessitamos hoje, e que essas praças onde tudo isso é vivido sejam realmente novas ágoras das nossas cidades, onde se opina livremente, onde todo o mundo se sente convidado, onde se constrói cidadania, tratam-se dos problemas e buscam-se soluções construtivamente, entre todos e todas.
Oxalá possamos fazer caso do que, um dia, se disse em uma assembleia: "É preciso ampliar a alma e o espírito e não ter pressa: chegaremos longe!".
Veja aqui a galeria de fotos tiradas pelo jesuíta nos acampamentos.
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"Indignados": espírito novo, questões em aberto, esperança que continua - Instituto Humanitas Unisinos - IHU